Recentemente fui abordado por um amigo que me perguntou como eu poderia explicar o futebol do Messi. Surpreendido com a pergunta, lhe respondi que genialidade não tem explicação. De qualquer forma, passei a refletir sobre a questão a partir do livro Mozart: sociologia de um gênio, do sociólogo alemão Norbert Elias. Nesta obra, Elias analisa a questão do conflito trágico entre a genialidade de Mozart e uma sociedade que pretendia controlá-lo. Apesar do título do livro, o sociólogo não se atreveu a fornecer ao leitor explicações sobre a genialidade do músico.

mozart_elias

De fato, talento é algo que não se explica. O sujeito nasce com ele. E o aprimora com treinamento. Do ponto de vista sociológico, não temos como explicar o futebol de Messi. No entanto, Messi tem algo que podemos ter como pauta para uma pesquisa futura. Trata-se de sua personalidade introspectiva, tímida, sem aparições na mídia, com poucas palavras, quase mudo, o que faz dele um ídolo singular, distinto dos demais, nesta característica de “não celebridade”.

Observemos que, mesmo em campo, ele ignora tanto os adversários quando recebe faltas, quanto o árbitro quando não as marca. Quase nunca o vemos reclamando de alguma coisa. Calado, mas com um talento extraordinário, é idolatrado mundialmente e, talvez, mais ainda na Argentina. No Barcelona é ídolo e herói, pois possui várias conquistas em sua carreira. Essa distinção se faz necessária, já que heróis vivem de conquistas, que são compartilhadas com a comunidade, no caso a torcida do time em questão ou a da seleção de seu país. Neste quesito de heroísmo, Messi estaria devendo um título mundial a seu país. Caso não o conquiste seria, parafraseando o colunista esportivo, Fernando Calazans, ao referir-se a Zico, “um azar para a Copa do Mundo”. E aí Maradona continuaria sendo o maior herói dos argentinos.

43830 - Cópia
Messi, do Barcelona, disputa bola com o zagueiro brasileiro David Luiz, do Paris Saint-Germain. Foto: C.Gavelle – PSG.

O antropólogo Hugo Lovisolo e eu já observamos, em artigo acadêmico publicado faz alguns anos, que a Argentina tem uma tendência a cultuar heróis com características mais “dionisíacas”. Figuras “imperfeitas”, como Evita, Perón, Che Guevara, Gardel e Maradona, por exemplo.

O que aconteceria se Messi ganhasse uma Copa? Como a imprensa argentina iria “construir” narrativas em torno deste herói? Ele não é “dionisíaco”, como Maradona, tampouco “apolíneo” como Pelé, por exemplo. Talvez seu extraordinário talento futebolístico estaria mais próximo da categoria “apolínea”, tal como a definiu Gilberto Freyre em artigo famoso publicado no Diário de Pernambuco em 18 de junho de 1938, que tinha como objetivo explicar a idiossincrasia do futebol brasileiro. Mas sua personalidade caminha na contramão da tendência padrão que vemos no universo de celebridades em um contexto cada vez mais midiático. As narrativas midiáticas em torno de ídolos se alicerçam frequentemente em comportamentos destes na vida pública (algumas vezes até na vida privada). Mas o que sabemos de Messi fora dos campos de futebol? Ele não aparece em público, quase não dá entrevistas, e quando as dá é monossilábico.

alemanha-campea20140713_0001 - Cópia
Na Copa de 2014 Messi e a Argentina terminaram a competição em segundo lugar. Foto: Marcello Casal Jr. Agência Brasil.

Estamos diante de um dilema que pode nos ajudar a entender melhor a relação entre ídolos e mídia. O poder da mídia esbarraria nas ações do atleta. A “construção” midiática de narrativas em torno de ídolos/heróis futebolísticos necessita da ação compartilhada do atleta em questão, dentro e fora dos gramados.

Messi é um gênio. Maravilhamo-nos e deleitamo-nos com suas atuações. Se vier a conquistar uma Copa do Mundo, a imprensa argentina terá que se utilizar de recursos distintos ao que se utilizou para narrar a trajetória heroica de Maradona. Messi é o ídolo mais “fora do ninho” dentro do universo contemporâneo de celebridades. Talvez por isso, muitos o admirem ainda mais.

Este artigo saiu originalmente no domingo, dia 17 de maio de 2015, na seção Opinião do jornal O Globo sob o título “Explicação para o inexplicável Messi”:

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Ronaldo Helal

Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979), mestrado em Sociologia - New York University (1986) e doutorado em Sociologia - New York University (1994). É pesquisador 1-C do CNPq, Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (2006). Em 2017, realizou estágio sênior na França no Institut National du Sport, de L'Expertise et de la Performance. É professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi vice-diretor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (2000-2004) e coordenador do projeto de implantação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj (PPGCom/Uerj), tendo sido seu primeiro coordenador (2002-2004).Foi chefe do Departamento de Teoria da Comunicação da FCS/Uerj diversas vezes e membro eleito do Consultivo da Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uerj por duas vezes. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: futebol, mídia, identidades nacionais, idolatria e cultura brasileira. É coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura (www.comunicacaoeesporte.com) e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte - LEME. Publicou oito livros e mais de 120 artigos em capítulos de livros e em revistas acadêmicas da área, no Brasil e no exterior.

Como citar

HELAL, Ronaldo. Messi: sociologia de um gênio. Ludopédio, São Paulo, v. 73, n. 1, 2015.
Leia também:
  • 172.29

    La tierra tiene vida, un archivo de vivencias

    Santiago Baraldi
  • 168.24

    EE. UU. sacude el tablero de la geopolítica del deporte con el fichaje de Leo Messi

    Xavier Ginesta Portet
  • 167.16

    Um último tango? A trajetória de Lionel Messi e a seleção argentina na Copa de 2022

    Gabriel Sulino Martins