164.1

Metade homem, metade cavalo: Mancuso, o híbrido!

Fabio Zoboli 1 de fevereiro de 2023

O termo híbrido tem sua raiz etimológica no grego hybris, nome de uma deusa que para os gregos personificava o exagero e o atrevimento. O híbrido nos remete à ideia de ligação, em que a mistura de elementos de ordem distinta resulta em algo excessivo ou em falta. Um corpo híbrido seria um corpo fronteiriço, pois é um corpo de mistura, um corpo no qual ocorrem sobreposições de seres. Uma mescla entre organismos (ou entre organismos e coisas), em um permanente devir que não se deixa apreender na solidez da caracterização. A ideia desta crônica é estabelecer uma relação imagética híbrida entre o jogador argentino Mancuso e o cavalo. Consideramos Mancuso um ser “metade homem e metade cavalo”, na medida em que esse volante personificou a mistura desses seres enquanto jogador do Flamengo.

Alejandro Mancuso é um futebolista argentino que iniciou a sua carreira em um clube de Buenos Aires, situado em um bairro chamado Caballito. Bom, as origens já lhe rendem uma relação com o cavalo, afinal, Caballito em espanhol significa “cavalinho”. Assim, enquanto potro[1], Mancuso atuou pelo clube Ferro Carril Oeste, e posteriormente, ainda na Argentina, vestiu a camisa do Vélez Sarsfield e do Boca Juniors. No Brasil, atuou inicialmente no Palmeiras, em 1995, e depois foi para o Flamengo, onde jogou em 1996 antes de voltar à Argentina, em 1997, para jogar no Independiente. Em 1999, Mancuso ainda jogou no Brasil pelo “terror do Nordeste”, o Santa Cruz de Recife/PE. Como jogador da seleção argentina foi campeão da Copa América de 1993, além de defender a albiceleste na Copa do Mundo de 1994. Mancuso trabalhou de auxiliar técnico da Argentina na Copa de 2010, realizada na África do Sul. Na ocasião, fez parte de uma equipe que uniu duas lendas do Futebol daquele país: no banco, seu amigo, o então treinador Diego Armando Maradona; em campo, o camisa 10 Lionel Messi.

No Flamengo, Mancuso foi um jogador que de imediato conquistou a torcida, afinal, esse homem-cavalo trazia no seu “puro sangue” a raça. Esse componente químico (e alquímico) o ligou fortemente à nação rubro-negra. Sua passagem pelo Flamengo foi muito rápida, um ano apenas. Mas não importa, reza a lenda que Alá[2] beliscou o vento, e assim criou o cavalo (RAMOS et al, 2005), talvez isso explique por que os cavalos passam sempre de modo tão veloz. Pelo Flamengo foram 66 jogos e 5 gols no período de 1996 e parte de 1997. Com o manto sagrado conquistou o título invicto de campeão carioca de 1996, na equipe que também figuraram Sávio e Romário. A escrete que conquistou esse campeonato pode dizer que a carruagem do Flamengo foi puxada por uma espécie de “cavalo solar”, que trouxe a luz dourada à Gávea.  Mancuso, o cavalo reluzente de Hélio[3].

Mancuso
Fonte: reprodução

O cavalo rubro-negro sempre falava que não sabia como tinha jogador que chegava no Flamengo e tremia com o peso da torcida nas costas. Dizia ele: “Eu adorava jogar com essa torcida nas costas, porque eu virava um bicho, era muita vontade, eu dava o sangue por essa camisa e por essa torcida. Não era só no pé que eu colocava a chuteira, mas também no coração. Se jogar no Flamengo sem coração não fica na história do clube”. Essas palavras de Mancuso nos remetem aos ritos sacrificiais em que o cavalo (ou partes dele) é apresentado como oferenda aos deuses. Esses rituais estavam ligados à fertilidade, afinal, a força e a virilidade do cavalo estão culturalmente ligadas à sexualidade e à agricultura. Isso explica, por exemplo, termos como “garanhão” e “potranca” ou os usos dos verbos “montar” e “cavalgar” associados ao ato sexual. Em algumas regiões do Japão, as mulheres estéreis iam ao templo tocar uma escultura de cavalo, feita de bronze e em tamanho real, na esperança de enfim engravidar (RAMOS et al, 2005). Na agricultura, a cabeça, o rabo e o casco são oferendas comuns. Em muitos rituais, a cabeça do cavalo era ofertada aos deuses em um prato com grãos. O rabo era cortado e ofertado para celebrar a colheita do milho. Na Grécia, Poseidon (o deus das águas e dos mares), enviava cavalos para a Terra e estes, com a força de suas patas, golpeavam o solo e faziam brotar a água – elemento central, junto com a terra, para o plantio e o cultivo agrícola.

O volante Mancuso era corpulento, um amontoado de músculos e cabelos que mais pareciam crinas quando corria. Era forte, valente, corria muito e ficou marcado no Flamengo por sua entrega em campo. A torcida organizada Raça Rubro-Negra parodiou a música Frevo Mulher, de Zé Ramalho, referenciando em um trecho a raça do homem-cavalo da Gávea: “Quando Mancuso sacode a cabeleira, a Raça toda vermelha, o Sávio pega na bola e a Raça pede mais um”.

O cavalo é um animal que aparece muito no contexto de guerras e batalhas e suas menções podem ser vistas, inclusive, na bíblia. O livro de Jó nos apresenta um trecho que serve tanto para fazer alusão a cavalos em batalha, como para Mancuso em campo com a camisa do Mengão: “[…] Impacientes, eles cavoucam o chão com as patas e correm para a batalha com todas as suas forças. Eles não têm medo. Nada os assusta, e a espada não os faz recuar. Por cima deles, as flechas assobiam, e as lanças e os dardos brilham. Tremendo de impaciência, eles saem galopando e, quando a corneta soa, não podem parar quietos. Eles respondem com rinchos aos toques das cornetas; de longe sentem o cheiro da batalha e ouvem a gritaria e as ordens de comando” (JÓ 39, 21-25).

A imagem do cavalo nos remete sempre à ideia do selvagem, logo, do inconsciente. Por isso, o cavalo tem uma relação histórica com a arte de “domar”, ou seja, a ideia de domesticar, de amansar. A volúpia de Mancuso em campo muitas vezes o colocou na posição de “jogador violento”, passando a ideia de um “homem-cavalo” incontrolado que não tinha domínio de seus “instintos”. No entanto, para nós rubro-negros, Mancuso sempre será um cavalo alado, o Pégaso[4] do Mengão. Quando a mitologia coloca “asas” em algum cavalo, a ele é concedida uma capacidade de superação inconsciente, um animal que transcende sua condição terrenal.

Por falar em mitologia grega e em híbridos homens-cavalo, não podemos esquecer dos centauros. São seres com dorso, braços e cabeças de humano e com pernas e troncos de um cavalo. Os centauros representam o misto e a junção entre inteligência humana e instinto animal. Nas narrativas mitológicas helênicas, os centauros são seres ligados ao mal, porém, o mais bondoso e famoso deles é Quíron. Quíron, a exemplo de Mancuso, é um centauro civilizado, pacífico e um grande gênio das artes da caça e da guerra. No caso de Mancuso, da arte de caçar os adversários que tentavam se aproximar da área e da meta do Flamengo. Quíron é famoso por ajudar e educar vários heróis gregos, dentre eles Hércules e Aquiles. Ele também tinha o dom da cura por ser detentor dos saberes da medicina. Quando ferido em batalha, Mancuso sucessivamente recorria a Quíron, sua entidade sincrética e protetora.

Mancuso
Fonte: reprodução

A adivinhação e a clarividência sempre foram poderes destinados à mítica equina, “conta-se que os cavalos param obstinadamente nas encruzilhadas ‘assombradas’, não obedecendo ao chicote e à espora” (RAMOS et al, 2005, pág. 96). Xanto, o cavalo do guerreiro grego Aquiles tinha o poder da clarividência, e a deusa Hera então lhe deu o dom da fala. Xanto não podia mudar os presságios divinos, a ele cabia tão somente comunicar aos humanos tais prognósticos. Sobre isso, vale a menção da profecia que Mancuso fez ao seu pai. Certa vez, o patriarca do gringo foi ao Maracanã para ver a final do Carioca de 1996, mas pouco antes da partida ele passou mal e o segurança precisou levá-lo ao vestiário para falar com o filho. Ali, o pai revelou que não conseguiria ver o jogo junto à torcida porque a emoção estava muito forte em meio à quantidade de gente. Mancuso então acalmou o pai e profetizou: “Pai, fica tranquilo que ao final da partida eu vou te procurar e nós vamos comemorar juntos o título de campeões”. Logo em seguida, Mancuso abraçou seu pai, que seguiu para um camarote levado pelo segurança, e, ao final do certame, dito e feito: o Flamengo era campeão. O homem-cavalo, outra vez, usou de seus poderes.

Mancuso era conhecido por nunca ter trocado a camisa do Flamengo ao final das partidas. O ato cortês entre os adversários, muito comum na cultura futebolística, era burlado pelo argentino.  Dizia ele aos oponentes: “Se você quiser me dar a sua, eu aceito, mas a camisa do Flamengo eu não troco por nada”. A camisa do Mengão é para Mancuso um objeto apotropaico, assim como a ferradura do cavalo o é para algumas culturas. Dizem que a ferradura é um símbolo que afasta os maus presságios e o azar, além de proteger o lugar onde é pendurada. Na Gávea, na sala de troféus do clube, tem um espaço onde são exibidas as ferraduras de Mancuso. Quando Mancuso, com suas asas de Pégaso, partir para o reino dos céus, São Judas Tadeu (o santo padroeiro do Mengão) também terá um cavalo, a exemplo de São Martinho e São Jorge. Mas por ora, Tadeu, vai se virando com as próprias pernas.

Notas

[1] Potro é o nome que se dá a um cavalo macho com menos de um ano de idade que ainda não foi totalmente domado.

[2] Alá ou Alláh em árabe é o termo utilizado para designar “Deus”.

[3] Hélio era o deus grego do Sol e trazia em sua carruagem uma bola de fogo. A carruagem era puxada por cavalos solares de cor avermelhada. “Em várias culturas, a cor do cavalo está intimamente relacionada com a posição do Sol e da Lua. A noite escura é apresentada pelo cavalo negro, que ao amanhecer torna-se cinzento até finalmente surgir claro e brilhante, libertando das trevas o Sol ou o herói solar” (RAMOS et al, 2005, pág. 103). Por isso, o branco (claro) e o vermelho (brilhante e reluzente) são as cores de cavalos mais escolhidas para o sacrifício, já que os cavalos negros ou cinzas têm uma relação com as trevas.

[4] Pégaso é um cavalo alado da mitologia grega. Ele nasceu do sangue de Medusa quando ela foi decapitada por Perseu. Trata-se de um cavalo branco de asas douradas.

Referências

BÍBLIA SAGRADA, A.T. JÓ. In: BÍBLIA SAGRADA. Tradução Centro Bíblico Católico. 70 ed. São Paulo: Editora Ave Maria, 1992.

RAMOS, D. G.; DE BIASE, M. C. BALTHAZAR, M. H. M.; RODRIGUES, M. L. P.; SAUAI, N. M. L.; SAYEGH, R. R.; MALTA, S. M. T. C. Os animais e a psique: baleia, carneiro, cavalo, elefante, lobo, onça, urso (vol. 1). 2 ed. São Paulo: Summus, 2005.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Como citar

ZOBOLI, Fabio. Metade homem, metade cavalo: Mancuso, o híbrido!. Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 1, 2023.
Leia também:
  • 177.17

    O Ninho: Vivendo e morrendo Flamengo

    Eduarda Moro, Alexandre Fernandez Vaz
  • 177.5

    Sob a guarda de Ogum: a luta de Stuart Angel contra as demandas da ditadura

    Fabio Zoboli, Perolina Souza
  • 175.9

    Flamengo x Vasco 1999: a origem do ‘vice de novo’

    Gabriel de Oliveira Costa