Todos os domingos, o time da minha rua disputa um campeonato de várzea. Equipes de bairros próximos são as mais odiadas. Outras, de lugares para lá do centro, não dão tanta graça. É melhor zoar os vizinhos que os visitantes mais raros.
Fernando é nosso artilheiro. Ou o Fê, como uns e outros o chamam. Evito apelidos com quem não tenho intimidade, tanto mais se a evito. É o caso do camisa 9.
Sua qualidade é inegável. Categoria e senso de posicionamento em campo invejáveis. Pena que a televisão não capta os grandes momentos do futebol amador. Vi gols de bicicleta, de fora da área, rabiscando a grande área adversária. Fernando balança as redes de todas as formas possíveis e por isso é figura certa na escalação de domingo.
Também testemunhei seus dias esmurrando zagueiros e torcedores sem razão alguma, senão uma cornetada típica do futebol. Ouvi boatos que os óculos escuros da esposa não têm a ver com o sol do meio-dia, mas com pancadas do artilheiro.
Ninguém quer falar nisso. Não é problema meu, dizem.

Também alegam desinteresse em outra fofoca, a de que o filho da Silvia, uma moça de curvas da rua de trás, é dele. Os traços são idênticos, não dá para negar. A forma como ele o pega no colo, com um brilho diferente nos olhos, também levanta mais suspeitas.
Não é da minha conta, respondem os questionados.
Não conheço alguém capaz de perguntar ao Fernando se ele é pai da criança sem pai. Tampouco pedir sua opinião sobre o abandono paternal de tantos milhões de crianças no país em que vivemos. É capaz de me agredir, como no dia em que ele e mais dois grandalhões empurraram um conhecido malandro para dentro de um carro. Foram para um lugar desconhecido. Tão desconhecido que o gaiato nunca mais foi visto. Ouvi falar em uma dívida alta, coisa assim.
Não quis saber. E nem quero que saibam meus pensamentos sobre as atitudes do Fernando fora de campo. Porque se eu for julgar o extracampo, periga não conseguirmos ir até o fim dessa competição.
Acompanho o time desde a primeira rodada e sou incapaz de contar nos dedos das mãos o número de jogos salvos por ele. Quando parecia impossível, foi lá e fez, salvando nossa vida.
Prefiro gritar um pouco mais alto quando o artilheiro cumpre sua função. Fico calado diante de seus erros. Temo apanhar se não bater junto com ele nos dias de confusões – e, olha, não são poucos.
Vez ou outra, alguém é incapaz de não separar o artista da obra e é voto vencido. Deixa de seguir o time, surgem uns boatos estranhos sobre a conduta do acusador.
Durante a semana, vejo o Fernando como um grande babaca. Aos domingos, evito me olhar no espelho.