151.25

Meu nome é Joe (Ken Loach, 1998)

Joe – É realmente importante. Podem nos tirar do campeonato. É grave!

Sara (agente comunitária) – Isso não é grave!

Joe  –  Sim, isso é grave! Não leve para o lado pessoal, mas sabia que o sol brilha para além do seu rabo? Eu sei que é só futebol. Mas é importante para nós!

My name is Joe

Ken Loach assinou a direção de mais de 50 títulos, entre produções cinematográficas e para a TV. É um cineasta reconhecido. Ganhou diversos prêmios, incluindo a Palma de Ouro de Canes, em duas ocasiões (2006 e 2016) e um Leão de Ouro por sua contribuição ao cinema, em 1994. Nascido em 1936, o cineasta inglês conta 86 anos e continua nos apresentando produções recentes e impactantes, como os ótimos Você não estava aqui (2019) e Eu, Daniel Blake (2016: estes dois disponíveis para quem tem acesso ao Telecine), além de clássicos como Terra e Liberdade (1995), Kes (1969) e muitos outros (Ken Loach Biografia. Disponível em: https://www.imdb.com/name/nm0516360/).

Meu nome é Joe (1998) é um belo filme de Loach, que retoma temas e ambiências comuns do cineasta. Trata-se de um lado menos explorado (cinematograficamente) do Reino Unido: do drama e dificuldades estruturais da parte menos favorecida da população. Joe Kavanagh, interpretado por Peter Mullan (melhor ator em Canes por conta dessa performance) é um alcoólatra que se encontra sem beber há dez meses. Sem fonte de renda, vive do seguro-desemprego. Ademais, treina um time de futebol amador, e esse é o link com o tema do esporte.

Como de costume, o futebol, aqui, não é apenas um jogo, mas um (raro) canal de confraternização e ludicidade. O principal da película não é a relação com o desporto, diga-se prontamente, mas sim as desventuras e os enredamentos sucessivos e dilacerantes em condições de desemprego, tráfico e consumo de drogas e poucas alternativas. A história se passa em um bairro pobre de Glasgow. Além de Joe e seus amigos, logo passamos a contar com a presença de Sara Downie, vivida por Louise Goodall, uma espécie de agente comunitária. A sensação de que seu trabalho expressa um constante enxugar de gelo é nítida e incômoda. De qualquer forma, a personagem é descrita por Joe como uma mulher que tem emprego e até um carro: alguém, portanto, muito acima dos padrões do protagonista. Não obstante, um romance acontece e constitui (a conturbada relação de Joe e Sara) parte importante do desenvolvimento narrativo.

Evidentemente as coisas não terminam bem. Conflitos com a seguridade social, dificuldades comezinhas e o envolvimento com o traficante/bandido local geram uma espiral de inter-compometimentos que conduzem à tragédia. É uma pancada, mas é ótimo cinema. Voltemos ao futebol.

Não sendo um elemento fulcral, o futebol, mesmo assim, ocupa um papel significativo na dura vida de Joe e seus pupilos (como o trecho em epígrafe deixa explícito). O time de Joe faz sua primeira aparição, logo no início da película, em um uniforme da Alemanha, imundo, quase irreconhecível. Na primeira partida enfrentam um adversário, fora de casa, trajando vestimenta idêntica (porém limpíssima). Como são visitantes, mesmo sob protestos, têm que iniciar o jogo sem camisa. E começam levando um gol. Devem ter sido derrotados, não temos como saber. Aliás, nenhum resultado nos é dado a conhecer: sabemos apenas que os jogos acontecem e são “importantes”, como Joe deixou claro.

O esporte (futebol) funciona como claro contraponto. Paralelamente ao afunilamento das tensões temos uma sequência de pura molecagem. Sem o conhecimento de Joe (que também faz as vezes de motorista de van), os quase-atletas orientam um trajeto até a frente de uma loja esportiva que está a receber mercadorias. Em uma ação de incrível e coordenada maestria, conseguem furtar algumas caixas (para inicial desespero de Joe). O conteúdo desses packs nós vemos no plano seguinte: tratava-se de uma equipagem completa com jogo de camisas do Brasil de 1970. Em uma alegria de meninos, vemos um “Pelé” branco e careca e um “Rivelino” que entrega um aparelho dentário (?) ao treinador. Dada a discrepância entre aquele escrete e os craques de 70, alguém vaticina:

– Isso é um sacrilégio!

Pode ser, mas também é o segmento mais divertido e jocoso dessa película. E é importante propor que, aqui, se foge a qualquer princípio de verossimilhança. Em uma obra cujo teor é fundamentalmente realista, roubar camisas em uma loja esportiva da cidade, em plena luz do dia, usando a própria van que era o meio de deslocamento rotineiro da equipe e à vista dos entregadores seria um convite ao duro enlace da Lei. Daí o papel/função do futebol como contraponto. Nesse sub-universo fílmico, não vale a mesma crueza da denúncia social. Na parte cinematograficamente dedicada ao futebol, à brincadeira, cabe uma outra lógica. E o jogo entre a gravidade da situação social e a gravidade (seriedade) da necessária e correlata brincadeira constitui parte importante desse grande filme.  

Referências:

COUTO, José Geraldo. “Meu Nome É Joe”: Filme é drama ético em terra devastada. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u1378.shtml?origin=folha. Consultado em 03/01/2022.

KEN LOACH – biografia (1936, Inglaterra…). Disponível em: https://www.imdb.com/name/nm0516360/bio?ref_=nm_ov_bio_sm. Consultado em 03/01/2022.

KEN LOACH – Filmografia (55). Disponível em:  https://www.imdb.com/name/nm0516360/. Consultado em 03/01/2022.

VALENTE, Eduardo. Meu Nome É Joe, de Ken Loach. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/criticas/meunomeejoe.htm. Consultado em: 03/01/2022.


Artigo publicado originalmente em História(s) do Sport.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Luiz Carlos Sant'ana

Professor, pesquisador do SPORT – Laboratório de História do Esporte – UFRJ/IFCS/PPGHC. Doutor em história comparada (UFRJ), com a tese O Futebol nas telas: um estudo sobre as relações entre filmes que tematizaram o futebol, duas ditaduras e promessas de modernidade, no Brasil e na Espanha – 1964/1975 (contato: [email protected]).

Como citar

SANT’ANA, Luiz Carlos. Meu nome é Joe (Ken Loach, 1998). Ludopédio, São Paulo, v. 151, n. 25, 2022.
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