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#MeuRival: A alma tricolor e o amor inútil

Alexandre Lyrio 29 de março de 2020

Série do Puntero Izquierdo chega ao clássico Ba-Vi: houve um dia em que um rubro-negro quis ter nascido tricolor

Ilustração: Jesus Guaré.

No dia 7 de agosto de 1994, quis ter vibrado por um time de qualidade questionável, cujo técnico fosse um já cansado Joel Santana e o craque um reserva que vestia a 15. No dia 7 de agosto de 1994, quis ter entrado pelos portões do Dique do Tororó, sentado não à sombra, mas ao sol, onde fica a principal torcida organizada mandante, e gostaria de ter sentido o mais alto grau do calor inclemente daquela tarde. No dia 7 de agosto de 1994, no ano do tetra, quis ter experimentando sensação semelhante a de um torcedor uruguaio na final de 1950, só que não após um triunfo de virada, mas depois de provar o sabor delicioso de um empate. No dia 7 de agosto de 1994, quis ter nascido tricolor.

Aos 46 minutos de um segundo tempo levado em banho-maria por um Vitória superior, a bola resolve pererecar para todo o lado. Chutão de Missinho, toques de cabeça de Advaldo e Souza. Olha a trupe de “famosos” heróis! Pela primeira e última vez na minha vasta história em estádios, levantei alguns minutos antes do apito final. Um pré-adolescente estreando sozinho na Fonte Nova. Meu pai, companheiro velho, estava adoentado. Para evitar a muvuca dos 97.240 pagantes (o maior público da história do maior clássico do Nordeste), tomei a direção da saída no início dos acréscimos. Já comemorava o título: 1 x 0, gol de Dão, com o qual não tinha perdão, era bola no cordão.

Não vi, mas, de costas, ouvi tudo. Em altíssimo volume, conheci ao mesmo tempo o barulho estrondoso de um desastre e os acordes do surgimento de um mito. Um mito que só a torcida do Bahia é capaz de criar. Conhecesse o feito, Drummond publicaria errata de seu miniconto: “O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols como Pelé. É fazer um gol como Pelé”. Amigo, difícil, difícil mesmo, é fazer um gol como Raudinei. No Ba x Vi dele, Raudinei, o Adriano Gabiru do ludopédio nordestino, fui apresentado à alma tricolor, encarnada no que Freud chama de amor inútil.

Sim, porque Gabiru deu um título mundial ao Inter diante do Barça. Raudinei deu um Baianinho ao Bahia. Só mais um Baianinho para a sua coleção de mais de quatro dezenas de títulos estaduais. Mas, para se tornar ídolo do Bahia, para ter a admiração incondicional da torcida, não é preciso oferecer quase nada em troca. O amor é inútil, diz Freud, assim como todas as coisas importantes da vida. O amor verdadeiro não envolve interesses e nem serve de moeda de troca. Amar é tão inútil quanto ser feliz. E o torcedor do Bahia sabe ser feliz com o que tem.

Freud diz que a paixão é um estado de loucura. E, por isso mesmo, ninguém consegue estar apaixonado o tempo todo. A não ser que seja louco. A não ser que seja Bahia. Eu não sei se é bom ser louco. Eu não sei se é bom ser feliz o tempo todo. Eu não sei se é bom ser Bahia. Nem nunca vou saber. Eu nunca vou saber o que é transformar um Nonato em Dadá Maravilha, um Titi em Aldair ou, mais recentemente, um Feijão em Falcão. Isso desde Beijoca, caneleiro imortalizado como cracaço. Para o tricolor obcecado (ou seja, quase a totalidade dos tricolores), Hélder é Zidanélder. Léo Gamalho é Léo Gamalhovic. Fahel é Fahelbregas. E Ernane é o Kaká do Nordeste.

Mas nenhum deles é comparável a Raudinei. Além de tudo, Raudi foi o responsável pela renovação de um conceito tão certo e questionável quanto a própria ideia de baianidade. O baiano lento e dengoso, cheio de axé, hospitalidade e alfazema é, afinal de contas, uma realidade ou invenção coletiva? Como a mineiridade, o gauchismo — a baianidade é um personagem originado do imaginário popular, da música, da literatura. Na Bahia, porém, há outro personagem que, para mim, rubro-negro, não pode ter sua existência posta em dúvida: a mística tricolor.

Esta, uma versão afro-baiana do Sobrenatural de Almeida, talvez convocada por atabaques dos terreiros, entra em campo por vezes para empurrar a pelota para o gol adversário, para evitar o tento do rival ou, como no caso de Raudinei, para emendar uma assistência certeira. Com Raudinei, a ideia do Bahia que não se entrega, que faz gols improváveis nos finais das partidas, se renovou por mais 100 anos. Não só a mística tricolor como o próprio tricolismo ultrapassaram incólumes a década perdida. Entre 2001 e 2012, nem um estadualzinho sequer. Aguentou firme dois tris e um tetra do Vitória, que em 93 quase belisca o Brasileiro.

Nada abalou o amor inútil enraizado nos corações azuis, vermelhos e brancos. Talvez Dinei, nos 7 x 3 da final de 2013, tenha fiibrilado o peito de alguns deles. O Vitória é assim. Quando tem condições de atropelar, atropela. Vence porque é superior. O Bahia, não. O Bahia vence com mística. Por isso, não adianta espernear. Depois daquele 7 de agosto, podem esperar mais 100 anos de “Bora Baêa Minha Porra” no pé do ouvido.

Quer dizer, a porra de “lá eles”, como recomendamos por aqui para fugir do esparro, da pegadinha sexual. O fato é que, com as duas estrelas conquistadas pela porra lá deles, uma estima de respeito enraizou-se no “eu” tricolor. Enraizou-se de tal forma que destruiu seu ego. Freud diz que o ego é responsável pela diferenciação que o indivíduo é capaz de realizar entre seus processos interiores e a realidade que se lhe apresenta.

Na tríade do modelo psíquico, composto por ego, superego e ID, o torcedor do Bahia é desprovido do primeiro. Só tem o terceiro: seu instinto nato, seus desejos, vontades e pulsões primitivas. É por isso que um ex-sogro dizia: “O Bahia nunca perdeu um jogo sequer em toda sua história. Só deixou de ganhar”. A verdade é que nós, rubro-negros críticos, entusiastas da paixão que flerta com a racionalidade, donos de egos aguçados e inteligentes — apesar de também termos nossos exemplares primatas — invejamos os homens das cavernas da torcida rival.

O amor é inútil. Ele se alimenta das contrariedades, dos desfavores das relações. O tricolor inveterado consegue vivê-lo no limite, ainda que o objeto de sua paixão não lhe proporcione prazer. Tem a necessidade, inclusive, de dizer isso ao mundo inteiro. Freud explica o torcedor do Bahia. Já o rubro-negro comum é platônico, guarda para si a explosão, reprime o impulso e não lida bem com a frustração. Sim, como eles, gostaríamos de cantar o nosso hino nos aniversários, festas de 15 anos e batizados. Gostaríamos de gritar “Sou Rubro-Negro” na muralha da China, nas catacumbas do Egito e em La Bombonera. Mas, achamos arriscado demais. Vai que, aos 46 do segundo tempo, Raudinei aparece entre os zagueiros e, com o pé izquierdo, faz a gente querer ter nascido com a alma do rival.

[A série idealizada pelo Puntero Izquierdo propõe crônicas em que torcedores escrevem sobre a alma de seus rivais].


Publicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2018, que é uma revista digital de publicação de histórias de futebol.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Lyrio

Sou repórter especial do Jornal CORREIO da Bahia. Vencedor do Prêmio Petrobrás de Jornalismo e menção honrosa no Prêmio Wladimir Herzog de Direitos Humanos, é autor de Juliano Moreira: o Terapeuta do Afeto, biografia sobre o médico baiano e pai da psiquiatria brasileira.

Como citar

LYRIO, Alexandre. #MeuRival: A alma tricolor e o amor inútil. Ludopédio, São Paulo, v. 129, n. 36, 2020.
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