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#MeuRival: O menino que ama o jogo

André Uzêda 15 de março de 2020

Série do Puntero Izquierdo chega ao clássico Ba-Vi, e um tricolor mergulha na ansiedade por um título nacional rubro-negro

 

Vitória
Ilustração: Jesus Guaré

 

De cócoras, quatro meninos brincam em torno de um círculo formado pelos seus desleixados corpos. O tabuleiro gasto, herdado do avô de um deles, pousa-se ao centro. O mais roliço dos guris, em extensa vantagem na coleção de fichas, debocha. A humilhação arde na bochecha do mais velho. Os pensamentos correm.

Há duas saídas óbvias. Na primeira, se traveste de um batoteiro. Usa a influência da idade para mudar as regras, forçar um favorecimento imediato ou incriminar a má conduta dos adversários, ali naquele Jumanji disputado a fundo perdido.

O segundo cenário se projeta mais radical. Ele levanta, bicuda as peças para longe e amaldiçoa aquele espetáculo idiota. Naquela medida abala o mundo mágico do jogo, trinca a redoma da ilusão necessária para que a disputa exista. Se um deles diz que aquelas fichas são de marchetaria e que aquilo é perda de tempo, em ato contínuo, o tanglomanglo se desfaz.

Sem ilusão, não há jogo.

O Esporte Clube Vitória é o protetor e vigia da existência do jogo. É o mais longevo dos clubes da Bahia e um dos mais antigos do Brasil. Foi fundado ainda no século XIX, exatamente onze anos após a Lei Áurea e o fim da escravidão. Nasce como clube de elite e luta para manter essa pecha durante bom tempo.

Quando, anos depois, os negros começaram a serem aceitos nas agremiações desportivas, o Vitória chuta longe a tábua e sai da disputa. Funda a Liga dos Brancos e defende a manutenção do futebol apenas para os bem-nascidos.

Da infância mesquinha e desenganada, no entanto, nasce o homem altruísta. O decano é campeão de remo, basquete, futebol feminino, boliche, vôlei de praia. Na construção do Barradão, 1986, nega o passado racista no futebol e se amalgama com a patuleia. O estádio se ergue em um antigo lixão, em Canabrava, zona extremamente pobre de Salvador. As taças, até então guardadas com folga, amealham-se a partir dali aos magotes, obrigando um reparo urgente na sala de troféus: novas prateleiras.

O Barradão é sepulcro do rival, o Bahia. A rivalidade entre eles até então tinha contornos de dominação, assujeitamento, hegemonia. O Bahia, fundado mais de três décadas depois, decide seu destino vencendo a Taça Brasil de 1959, fulminando recordes estaduais em sequência quase rítmica e conquistando o Brasileiro de 1988. O Barradão vem para expurgar o medo dos Ba-Vis.

Calibã, escravo humilhado criado por Shakespeare, era xingado no idioma do seu suserano. Não entendia uma palavra dita, mas sabia se tratar de injúrias. Após tanta subjugação, autodidata, aprende o dialeto e, num ato de fúria, desacata o senhorio na língua materna deste. O efeito Calibã é o Vitória trazer o medo para quem sempre usou deste sentimento como linguagem. O Barradão é o coringa tirado do morto desenganado de cartas. A verdade, sim, é que o Bahia treme.

De sete títulos baianos com jogo final disputado no Barradão, o Vitória venceu seis. Não há cria da base mais temido, artilheiro mais implacável ou arqueiro mais seguro. O Barradão é o domínio do fogo na evolução rubro-negra.

Mesmo com o ponto de inflexão sobre a (sua própria) história, torcer para o Vitória continua sendo, acima de tudo, um sacerdócio. É sentir as orelhas queimarem diante da constatação dos títulos nacionais, em qualquer divisão, de Joinville, Criciúma, Tuna Luso, União São João, Operário, CSA, Americano, Santo André, Juventude, Paulista — clubes infinitamente menores, mas muito mais afortunados.

O sentimento de que esta estrela está destinada e irá chegar alimenta uma paixão religiosa. O título, quando vier, redime toda timeline rubro-negra: do marco fundador aos bilhões de anos futuros, quando a Terra for habitada por outras espécimes endotérmicas.

Jamais haverá, em qualquer parte do mundo, conquista mais comemorada e libertadora que esta. Há uma certeza insofismável na cabeça do rubro-negro de que ela virá. Mesmo que, justo esse torcedor mais persistente, nem esteja mais aqui para ver. O Vitória será campeão brasileiro. E se ele será é porque, antes da materialização do concreto, antes de tudo, 40 minutos antes do nada, ele já é.

O menino mais velho sufoca o impulso desmancha-prazeres que habita sua fúria. Aguenta a gozação, reclama a posse do tabuleiro, mas, acima de todos, zela pela continuidade do jogo.

O passatempo não pode parar.

Há um título para vencer.

[A série idealizada pelo Puntero Izquierdo propõe crônicas em que torcedores escrevem sobre a alma de seus rivais]. 


Publicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2018, que é uma revista digital de publicação de histórias de futebol.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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André Uzêda

Jornalista e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Como citar

UZêDA, André. #MeuRival: O menino que ama o jogo. Ludopédio, São Paulo, v. 129, n. 15, 2020.
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