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Mídia, Justiça e o estigma dos torcedores organizados

torcedororganizadoPelas arquibancadas brasileiras, observamos bandeiras com os símbolos das torcidas organizadas de futebol destacando que “Torcedor Organizado não é vagabundo”, uma contestação dos próprios “organizados” em relação ao poder da mídia e da justiça em estigmatizá-los enquanto “vagabundos” ou “marginais”. Desde os anos 1960, uma série de estudos sobre os comportamentos desviantes vem sendo demonstrados com a finalidade de compreender os motivos pelos quais a sociedade, a mídia e a justiça apreendem e condenam um determinado segmento da população. Dentre eles, destacamos a “teoria da rotulação” formulada por Frank Tannenbaum e Edwin Lemert e consolidada através dos estudos sobre os outsiders de Howard Becker (1960).

Estes autores demonstraram que o rótulo atribuído ao indivíduo como, por exemplo, “vagabundo” aos torcedores organizados pode ser internalizado e constituir uma identidade para o sujeito. Becker demonstrou que para ser um desviante não basta transgredir a lei, mas é preciso que a sociedade reaja de maneira negativa em relação ao indivíduo. No Brasil, o processo de rotulação através de características negativas em relação aos torcedores organizados como “vagabundos” evidencia a tentativa de estigmatizar um determinado seguimento da torcida. Mas, é preciso perguntar por que os torcedores organizados são tão estigmatizados pela mídia e pela justiça.

Em 2007, o Brasil foi escolhido para sediar a Copa do Mundo. Com isso, o poder público alterou o Estatuto de Defesa do Torcedor contemplando “sobre medidas de prevenção e repressão aos fenômenos de violência por ocasião de competições esportivas”[1]. Assim, se qualquer indivíduo arremessa objetos no campo de futebol, na torcida adversária ou trava confronto com os demais torcedores, mas não é identificado pelos operadores da segurança pública, a torcida organizada é punida através da proibição de bandeiras, faixas, camisetas ou qualquer simbolismo que identifique os membros ao grupo nas arquibancadas durante um período de tempo.

Maurício Murad (2007) ressalta que a violência no futebol é praticada por alguns membros “infiltrados” nas torcidas organizadas que possuem como objetivo agredir ou exterminar os rivais. Porém, ao contrário do que indica esse autor, observamos que as agressões não são provenientes somente dos torcedores organizados. Os mais diversos conflitos são ocasionados nos diferentes setores das arquibancadas, apesar de não serem noticiados na mídia e do aparato de vigilância da polícia militar (PM) ser marcado pelo apaziguamento de conflitos sem usos de artefatos de contenção. Verificamos um procedimento completamente diferente quando os confrontos acontecem entre os torcedores organizados e a polícia militar. O que se observa, nesses encontros, é uma postura mais repressora e espetacular por parte da PM que, na maioria das vezes, utiliza cassetetes e bombas de gás lacrimogênio na tentativa de dispersar o conflito. Nestes episódios, a mídia mostra através das imagens televisivas e reportagens jornalísticas o quanto que os torcedores organizados são “marginais”, o que propicia a construção do tipo ideal do torcedor considerado como “vagabundo”, isto é, os “organizados”.

Tudo leva a crer que para garantir a segurança de um novo público nos Estádios, o aumento do preço dos ingressos, as cadeiras numeradas e a imposição de um padrão de comportamento “disciplinar” através das normas estabelecidas pelo Estatuto de Defesa do Torcedor constituíram estratégias destinadas para impedir a presença de jovens com baixa renda no interior dos estádios de futebol. E esse estigma que associa o torcedor organizado à pobreza, delinquência e violência é repercutido nas reportagens da grande mídia e nas condutas da justiça que na maioria das vezes rotula os torcedores organizados de “vagabundos” e os impõem a tratamento diferenciado em relação ao torcedor “comum”.

Como bem formulou Becker em seus estudos, os “empreendedores morais” são agentes que legitimam quais comportamentos são considerados como “desviantes”, conhecidos por “reformadores cruzados”, que constroem as normas sociais através da lei jurídica, e os “impositores de regras”, que são as instituições responsáveis pelo controle social formal, isto é, os policiais que possuem autonomia para atuar como desejam mediante uma determinada situação, distanciando o conteúdo da regra com a prática (BECKER, 2008, p. 161).

Destacamos que não é a rotulação que ocasiona os atos desviantes, mas quando o indivíduo ou grupo é rotulado ou estigmatizado como “vagabundo”, há uma interiorização desse rótulo afetando o curso “normal” da vida. Se a grande mídia e a justiça estigmatizam os torcedores organizados é justamente porque nestes grupos podemos encontrar a presença de jovens com baixa renda. Tanto a mídia quanto a justiça, atuam segundo as distinções estabelecidas pela sociedade sobre o que é considerado “normal” e “desviante” e sobre quem é o tipo social considerado “vagabundo” ou “marginal”. Assim, os torcedores organizados que se encontram nos estádios de futebol para realizar a festa na arquibancada com bandeiras e faixas, bem como possuem maior empenho em cobrar sobre a atuação dos jogadores, técnico e clube se diferenciam do comportamento dos demais torcedores, fato que proporciona à mídia e à justiça a tratá-los de maneira diferenciada. Além do mais, eles são compostos, em sua maioria, por jovens do sexo masculino, de baixo status socioeconômico e de moradores de vilas ou favelas, atributos (ou estigmas) imprescindíveis para definir os indivíduos como “marginais”, orientando a prática da mídia, dos agentes policiais e do poder judiciário.

A partir dos anos 1980, uma série de estudos vem sendo realizado com a perspectiva de desmistificar a associação entre delinquência, marginalidade e pobreza. Dentre eles, ressaltamos como os operadores da segurança pública constroem um tipo social de “marginal” ou “vagabundo”, isto é, o perfil de marginalizado são os homens, negros, pobres e moradores de vilas e favelas. É por isso que as estatísticas policiais não refletem, de fato, a criminalidade no Brasil, pois os dados apontam que somente os estigmatizados pela sociedade, mídia e justiça são apreendidos pelos policiais militares[2].

Assim, os indicadores dos crimes refletem a cultura policial no que diz respeito às suas práticas ideológicas, políticas e até mesmo as condições operacionais. Se há uma série de registros realizados na corporação, os agentes necessitam localizar os criminosos e, assim, os estereótipos dos indivíduos com baixo status socioeconômico possuem uma maior probabilidade de serem incriminados pela polícia. Como resultado, as estatísticas oficiais são incapazes de retratarem o real problema da criminalidade encobrindo a cultura da organização policial[3].

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“Torcedor organizado não é vagabundo”. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Nesse sentido, é necessário entender que a associação entre crime e pobreza e os estereótipos constituídos em relação ao indivíduo com baixo status socioeconômico e negro, acarreta profundas implicações sobre a institucionalização da democracia brasileira[4]. As desigualdades socioeconômicas distribuídas nas mais diversas hierarquias de poder e a atuação policial em busca da clientela provoca, cada vez mais, a vulnerabilidade das classes subalternas e, por conseguinte, na sua maior vigilância por parte dos órgãos responsáveis pelo controle social. Se, de um lado, a constituição brasileira prevê princípios de garantias de cidadania, por outro, o poder judiciário classifica e discrimina os indivíduos que possuem menor poder aquisitivo. A arbitrariedade policial nada mais é que um reflexo da cultura jurídica. Em outras palavras, a justiça atribui as mais distintas formas de cidadania e humanização aos diferentes segmentos da população[5].

Aos agentes da segurança pública cabe a tarefa de selecionar os indivíduos que agem conforme a legalidade e aqueles considerados como “marginais”. Com isso, a lei passa a ser aplicada pelos policiais de acordo com a trama de interesses entre os policiais, a sociedade, a justiça e o “vagabundo”. Assim, é necessário responder à mídia “sensacionalista” em relação à violência no futebol, incriminando os torcedores organizados. Porém, percebemos o quanto eles sofrem com tais estigmas e tentam mostrar a sua importância nas arquibancadas. A própria bandeira com a frase “Torcedor organizado não é vagabundo” remete a um apelo político do grupo na perspectiva de se mostrarem resistentes às diversas incriminações sofridas por eles. Além disso, observamos que a participação dos torcedores organizados não se limita a festa na arquibancada, pois eles possuem diversas atuações pela cidade como ações sociais em creches, asilos, doações de sangue, campanhas do agasalho que não são valorizadas pela mídia, pois como bem expressa um membro “isso não dá ibope”.

[1] BRASIL. Lei nº 10.671 – Dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.671.htm> Acesso em 29 de set. 2015.

[2] CAMPOS COELHO, 1978.

[3] PAIXÃO, 1983.

[4] PAIXÃO, 1988.

[5] PAIXÃO, 1988.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei nº 10.671 – Dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.671.htm> Acesso em 29 de set. 2015.

BECKER, H. S. (1928). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. 1.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 231p.

CAMPOS COELHO, E. (1978). “A criminalização da marginalidade e a marginalização da criminalidade”. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, 12(2)139-161.

MURAD, M. A violência e o futebol: dos estudos clássicos aos dias de hoje. 1ª ed. Rio de Janeiro. FGV Editora, 2007. 194 p.

PAIXÃO, A. L. (1988). Crime, controle social e consolidação da democracia: As metáforas da cidadania. In: REIS, F. & O’Donnel, G (eds.). A democracia no Brasil. São Paulo, Vértice. p. 168-199.

PAIXÃO, A. L. Crime e criminosos em Belo Horizonte, 1932-1978. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio (org). Crime, violência e poder. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983. p. 11-44.

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Flávia Cristina Soares

Realiza estágio de pós-doutoramento Interdisciplinar em Estudos do Lazer na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutora e Mestra em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em Gestão Social pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro (2010). Formação em Psicanálise pelo Instituto de Psicanálise e Saúde Mental. Coordena o curso de pós-graduação em "Esporte e Sociedade: perspectivas interdisciplinares" da UNESAV; Professora de "Psicossomática", "Teorias e Técnicas de grupo" e "Psicologia aplicada à Saúde" pela Faculdade Pitágoras. Participante do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) e Grupo de Estudo e Pesquisa em Políticas Públicas de Esporte e Lazer (NeoPolis) na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (EEFFTO) da Universidade Federal de Minas Gerais.

Como citar

SOARES, Flávia Cristina. Mídia, Justiça e o estigma dos torcedores organizados. Ludopédio, São Paulo, v. 96, n. 1, 2017.
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