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Minorias no esporte?

Wagner Xavier de Camargo 2 de setembro de 2018

Tempos atuais têm deflagrado certas inconsistências em relação à vida em sociedade, pelo menos no que diz respeito às opiniões comuns sobre assuntos cotidianos. Em primeiro lugar, muita gente opina sobre coisas que não conhece ou julga corretas informações passadas por terceiros – e, a partir disso, pela ausência de checagem sobre a fidedignidade dos fatos, tais pessoas inundam o mundo com as fake news, ou notícias inventadas, irreais, falsas. Em segundo lugar, como se não bastasse a proliferação desses absurdos, há em dadas áreas, uma reprodução de opiniões naturalizadas, que são tão perniciosas quanto as notícias falsas. Eis uma delas que ouvi na academia de musculação, dia desses: “Hoje, cada vez mais, minorias exigem seus lugares de direito no esporte.”.

A luta pelo reconhecimento de direitos, que na sociedade contemporânea aparece quase cotidianamente nos meios de comunicação, não apenas faz parte do modo de funcionamento dos discursos de grupos excluídos da atual fase do capitalismo pós-industrial, como é um mecanismo legitimado, há tempos, na própria história da Humanidade. Quando opiniões se voltam, especificamente, contra sujeitos que habitam quadras, piscinas, tatames, pistas ou raias e que não se adéquam à normatividade instituída (isto é, a valores como magreza, beleza, masculinidade, feminilidade, músculos à mostra, e, sobretudo, heterossexualidade), elas decidem agregar todos esses corpos sob a denominação “minorias”, em relação à adjetivação “sexuais”, “sociais”, ou mesmo, “étnicas”.

Ora, quem seriam essas “minorias” no esporte? Seriam os autoidentificados homossexuais masculinos da ginástica artística, da equitação e do salto ornamental, que participaram dos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016? Ou seriam os/as atletas transgêneros que fizeram parte do mesmo certame? Ou ainda, seriam os jogadores estrangeiros de futebol de campo presentes na Copa do Mundo da Rússia, em 2018? As “minorias no esporte” seriam identificadas numericamente e a partir de megaeventos? Como classificá-las? “Minorias” em relação a que ou a quem?

O modelo hegemônico instituído e que informa o senso comum acerca de um “padrão” legítimo de comparação com o “resto” é baseado no homem branco, magro e musculoso, belo, heterossexual e cristão. Qualquer dissidência relativa a estas características é colocada no caldeirão das exceções, das “anormalidades”; em uma palavra, as “minorias”.

Aqui no Brasil se toma o futebol de campo masculino como a referência e aquele praticado por mulheres passa a ser a cópia do modelo, tão minoritário e tornado insignificante, que mobiliza, inclusive, ódio e desconsideração dos homens brasileiros. Ora, o mesmo futebol no Canadá é esporte nacional de mulheres e, de modo amplo e irrestrito, ocupado por elas (dos gramados aos cargos de comando). Mulheres seriam minorias nesse caso ou haveria, aí, um olhar do “macho futebolista”, que orienta as considerações das mídias ocidentais?

Bandeira (LGTB) é hasteada na Embaixada do Reino Unido para marcar o Dia Internacional contra a Homofobia e Transfobia, celebrado neste sábado (17) (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Bandeira (LGTB) hasteada na Embaixada do Reino Unido para marcar o Dia Internacional contra a Homofobia e Transfobia. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

No mesmo futebol de campo ou mesmo no voleibol, casos de homofobia e transfobia têm sido veiculados constantemente, pelo menos, há mais de uma década. No momento nos debatemos com o caso de Tiffanny Abreu, mulher-trans no voleibol profissional, que é julgada como não sendo sujeito de direito desse lugar esportivo, pois supostamente estaria “enganando” todas outras competidoras com suas “vantagens” naturais de um corpo que, afinal, seria “fisiologicamente masculino” (sic).

No mínimo, é de se questionar o termo “minorias” frente ao modelo hegemônico quando temos a maioria dos jogadores no futebol de campo brasileiro sendo negros ou pardos; quando uma seleção nacional como a francesa, dentro de uma Copa do Mundo, tenha a maioria de seus jogadores com origem africana; quando há um evento de caráter olímpico como os Gay Games, agregador de mais 10 mil competidores LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, pessoas transgênero, e demais) sistematicamente a cada quatro anos; ou quando tenhamos, cada vez mais, expressões institucionalizadas de grupos excluídos participando do mesmo sistema esportivo hegemônico, como os Jogos das Populações Indígenas, Olimpíadas de Idosos ou mesmo Jogos Paralímpicos (para pessoas com deficiência).

Um ponto delicado é que o modo pelo qual as chamadas “minorias” são apresentadas e consideradas na mídia hegemônica (esportiva, por exemplo) tem impacto direto sobre a maneira como as tratamos no dia-a-dia. E nem pensamos nisso…  As opressões contra as “minorias sociais, sexuais e étnicas” são tantas e sistemáticas, que operam em vários níveis, todos claramente perigosos para o convívio social: na linguagem, na veiculação imagética, na edição de discursos, na reprodução de falas descontextualizadas, nas imagens apelativas capturadas, todas as formas como esses sujeitos são mostrados e tratados por uma mídia, cuja ética é a da audiência e do apelo ao espectador mediano.

A ideia deste pequeno texto é desestabilizar as certezas dos argumentos relacionados à temática “minorias no esporte”. Colocar em suspeição nominações usadas pelos meios de comunicação e reproduzidas pelas pessoas sem aparato crítico. As “minorias no esporte” não são tão minoritárias assim, se tomadas sob olhar clínico. O que qualifica tais pessoas como “minorias” se, em tomadas juntas, possivelmente ultrapassam em número as expressões do modelo hegemônico (as “maiorias”)? Pensar a partir de “outros minoritários” no esporte pode ser a chave para talvez postular, criticamente, outro modelo esportivo – e, como consequência, novos modelos corporais destas práticas esportivas. Mas esse é tema para uma próxima coluna!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Minorias no esporte?. Ludopédio, São Paulo, v. 111, n. 2, 2018.
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