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Misha, o urso que mudou a história dos mascotes olímpicos

Copa Além da Copa 1 de fevereiro de 2021

As Olimpíadas de Moscou, em 1980, foram as primeiras disputadas em um país comunista, algo que só aconteceria novamente nos Jogos de Pequim, em 2008. Devido à atuação da União Soviética na Guerra do Afeganistão, os Estados Unidos lideraram um boicote aos jogos, que contou com países como Alemanha Ocidental, Japão, Chile, Argentina e Canadá.

Dessa forma, apenas 80 países participaram dos jogos, o que foi a menor adesão desde as Olimpíadas de Melbourne, em 1956.

A memória mais marcante de Moscou, no entanto, talvez tenha sido não de uma prova esportiva específico, mas de Misha, um urso que não somente teve uso político, como acabou se tornando o primeiro mascote esportivo campeão de vendas de merchandising – algo no mínimo curioso para uma Olimpíada em solo comunista.

Esse texto é um complemento ao podcast Copa Além da Copa de fevereiro de 2021, que tem como tema o esporte na União Soviética. Para ouvi-lo, basta clicar aqui.

Os países em azul boicotaram os Jogos de 1980. Imagem: Wikipédia

Influências da Guerra do Afeganistão

Em 1978, um golpe de Estado no Afeganistão levou ao poder o partido comunista local. No entanto, houve grande instabilidade política e diversos conflitos civis no país, que ficava às portas da União Soviética – e que, portanto, no contexto da Guerra Fria, estava em sua zona de influência.

Os soviéticos decidiram intervir diretamente na contenda e os grupos rebeldes, por sua vez, receberam apoio dos EUA e de outros países incomodados com a ação da URSS, como a China, o Irã e o Reino Unido. 

Embora os Jogos Olímpicos estivessem marcados para Moscou desde 1974, o estouro de um conflito tão às vésperas do evento fez com que o presidente estadunidense Jimmy Carter, pressionado pela Revolução Iraniana no ano anterior e com uma eleição a ser disputada em 1980, ameaçasse um boicote. A condição para que os EUA participassem seria a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão, o que não aconteceu até 1988.

Sabendo do efeito negativo que isso teria para os atletas de seu país, Carter ainda propôs que as Olimpíadas fossem permanentemente sediadas em Atenas. Na sua visão, isso ajudaria a acabar com a politização da escolha da sede olímpica. Afinal, Los Angeles tinha perdido a disputa para Moscou pelos jogos de 80, embora fosse sediar as Olimpíadas seguintes. 

O Comitê Olímpico Internacional, é claro, rejeitou a ideia. Sobrou ao presidente dos EUA fazer campanha pelo boicote, chegando até a recrutar o ex-boxeador Muhammad Ali para viajar pela África e conversar com chefes de Estado do continente.

Breve histórico dos mascotes olímpicos

O primeiro mascote de uma Olimpíada de que se tem registro é o cão Smoky, nascido na vila olímpica pouco antes dos jogos de Los Angeles em 1932. Mas, é claro, não se tratava de um mascote oficial. 

Essa tradição começou mesmo nas Olimpíadas de Munique, em 1972, quando o evento esportivo já estava bem estabelecido e havia se tornado uma espécie de conferência mundial. A organização alemã, percebendo que o público estava ávido por consumir souvenirs daquela edição, criou então o primeiro mascote oficial, Waldi, também um cachorro.

Dessa vez, porém, havia um diferencial: tratava-se de um dachshund, um salsicha, como se diz no Brasil, uma raça típica da Alemanha e muito popular em Munique. Fazia sentido que, a partir dali, os mascotes sempre representassem os locais onde as Olimpíadas eram disputadas.

Nasce Misha, o urso

O urso pardo euroasiático é um animal muito ligado à identidade soviética e, mais especificamente, russa. Desde o século XVI, há registros de ursos sendo utilizados no Ocidente para representar o então Império Russo. Embora seja um animal forte e imponente, na maioria das vezes, ele foi utilizado para representar uma nação “grande, brutal e atrapalhada”.

Na preparação rumo às Olimpíadas de 1980, o comitê organizador promoveu um concurso para selecionar o melhor desenho de um urso. Ao final, Victor Chizhikov, um ilustrador de livros infantis, foi o vencedor.

O personagem que ele criou era um urso pardo com um cinto com as cores da bandeira olímpica, cuja fivela era composta pelos cinco anéis. Seu nome, Misha, é um diminutivo do nome russo Mikhail. Com aquela imagem, os organizadores pretendiam propor uma nova ideia sobre a União Soviética: sai o urso feroz e impiedoso, entra o urso fofinho e sorridente. 

Misha seria muito usado nas Olimpíadas a partir dali.

Selo com o mascote Misha. Imagem: Wikipédia

O sucesso de merchandising que vem da União Soviética

Não há ironia maior na história dos mascotes olímpicos do que o sucesso comercial que Misha se tornou. Harold A. Nizamian, presidente da indústria de brinquedos chamada Dakin, achou o urso simpático e comprou junto ao COI os seus direitos para o mercado norte-americano. Produziu 240 mil unidades em pelúcia que vendiam como água no deserto. E isso ainda em 1979, a um ano dos jogos.

Além dos ursos de pelúcia, Misha estava em camisetas, bonés, canecas, pôsteres, pins e muito mais. O mascote não era apenas um urso, mas uma figura incrivelmente simpática que poderia, enfim, amolecer a União Soviética aos olhos do ocidente.

Então, veio o boicote. Comercializar um mascote de um evento que seria boicotado pelos países ocidentais vendendo como água no deserto não fazia mais sentido. Todos os produtos já confeccionados com a figura de Misha precisavam sumir dos Estados Unidos e dos demais países que desistiram de participar das Olimpíadas de Moscou. As empresas donas dos direitos protestaram.

Nizamian maquiou o mascote, tirando seu cinto e colocando uma camiseta com a frase “just another bear”, ou “apenas mais um urso”. Apesar de alguns exemplares do novo brinquedo serem vendidos, não era nem perto do que acontecia com Misha. Grande parte do estoque encalhou e foi doado a instituições de caridade.

O que era um sonho para o empresário se transformou em um terrível prejuízo de 1 milhão de dólares.

As Olimpíadas de Misha

Fora dos países do boicote, porém, Misha ainda era uma estrela pop. O mascote tornou-se incrivelmente querido não só pelos russos, mas também pelas crianças de todas as partes do mundo que não participavam do boicote.

Na cerimônia de abertura daquelas Olimpíadas de Moscou, Misha estava por tudo: dezenas de pessoas fantasiadas como o urso fizeram uma coreografia marcante no gramado do Luzhniki Stadium. Era o início oficial daqueles jogos.

Durante as Olimpíadas, Misha foi a maior celebridade do planeta. Junto aos atletas que quebraram recordes e se superaram em cada uma das competições, ele aparecia como o rosto da nova União Soviética. Se o boicote atingiu países importantes do mundo ocidental, não foi uma unanimidade. Boa parte da Europa, por exemplo, participou dos jogos.

A corrida esportiva foi uma das mais intensas da Guerra Fria. Cada nova olimpíada representava uma disputa intensa entre norte-americanos e soviéticos. Em Moscou, a ideia era ter uma performance catártica dentro de casa para se colocar à frente dessa disputa. O boicote não permitiu que isso acontecesse e, no final das contas, a liderança no quadro de medalhas com quase o dobro de ouros da Alemanha Oriental, que veio em segundo lugar, teve um gosto de dever cumprido, mas de maneira melancólica.

Misha já tinha conquistado o mundo antes e durante os jogos, mas foi na cerimônia de encerramento que deu seu golpe final nos corações humanos: a imponente presença de 4700 pessoas formando mosaicos nas arquibancadas foi belíssima e emocionante, encantando ainda mais quando tomaram o formato do urso. Aos lados, um letreiro com a frase “dobrovo puti”, ou “foi uma linda jornada”.

Uma lágrima escorreu de um dos olhos do mascote no mosaico. Um balão com o seu formato foi lançado e desapareceu no céu de Moscou enquanto Lev Leshchenko e Tatiana Ansiferova cantavam “Farewell, Moscow”.

Nunca haveria outro mascote olímpico como Misha.

Cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos 1980. Foto: Wikipédia

Havia quem não gostasse de Misha: seu criador

Victor Chizhikov continuou sua carreira após criar Misha, o icônico urso. Antes e depois de seu mais famoso trabalho, ilustrou mais de cem livros infantis.

Misha fez com que a imagem da União Soviética melhorasse perante o mundo. Muitos analistas não imaginavam inicialmente que isso poderia, de fato, acontecer, mas o fato é que a criação do ilustrador foi tão simpática e marcante que deu um ar mais leve a como os ocidentais viam os soviéticos.

Tamanho sucesso deveria ser uma alegria na vida e na carreira de Chizhikov, mas a verdade não poderia ser mais diferente: “Eu odeio falar sobre mascotes”, disse em uma entrevista já na década de 2010. “Eles são como um espinho em meu calcanhar”.

O motivo é simples: Chizhikov se sentia enganado pelo governo soviético sobre os direitos autorais de Misha. Ele recebeu um cheque inicial pelo seu trabalho, mas apenas isso. Nunca teve um centavo além do primeiro valor, mesmo após o mascote se transformar em um imenso sucesso mundial.

Chizhikov contou que o valor que recebeu nesse cheque, cerca de 2 mil rublos, era irrisório na época. Ele não podia falar a ninguém sobre o que estava fazendo, com o projeto sendo chamado de “ursinho divertido”. Depois que venceu o concurso, tentou fazer algo sobre os direitos de sua criação, mas sempre foi rechaçado pelo governo.

Mais tarde, Misha foi transformado e reciclado. Sua figura aparece em muitos lugares. No Museu do Comunismo de Praga tem uma expressão ameaçadora, segurando um rifle Kalashnikov. “Para mim, Misha era um símbolo de paz”, disse o desenhista, triste tanto por causa das apropriações indevidas de sua criação, como por nunca ter sido reconhecido financeiramente por ela.

Victor Chizhikov morreu em 2020, aos 84 anos de idade. Misha é eterno.


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Como citar

COPA, Copa Além da. Misha, o urso que mudou a história dos mascotes olímpicos. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 2, 2021.
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