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Monólogo paulistano no Itaquerão

Max Filipe Nigro Rocha 16 de junho de 2014

Como estudioso do futebol e dos fenômenos que o cercam, é cada vez mais difícil entender determinadas posições políticas que insistem em assumir que o esporte em questão é única e exclusivamente um instrumento de arregimentação das massas nas mãos das camadas dominantes. Mais uma vez a já clássica proposição de Roberto DaMatta na qual o futebol é responsável por dramatizar as relações sociais – às vezes anunciando as suas tensões, às vezes omitindo-as – é fundamental para avaliarmos os eventos ocorridos na abertura da Copa do Mundo no Brasil.

A disputa simbólica que gira em torno do esporte é de uma riqueza vastíssima para o cientista social. De um lado do campo, desde longa data as correntes progressistas à esquerda denunciam de forma veemente as condições de organização do torneio e todos os seus impactos sociais, seja em eventos paralelos como a Copa Rebelde, seja em protestos nas ruas das grandes cidades (que ganharam ainda mais força após as jornadas de junho). A má gestão do dinheiro público – que, diga-se de passagem, ultrapassa e muito as frágeis barreiras do discurso anticorrupção, vide os casos de isenção fiscal para as grandes empresas, as tímidas alíquotas de imposto de renda sobre grandes fortunas e tantos outros descalabros – não é um elemento novo, mas a partir do momento em que ela pode ser identificada no universo futebolístico, o debate e a consequente politização atingem altos graus de mobilização social.

No entanto, o planejamento estratégico de algumas dessas correntes à esquerda parece incidir em um erro já cometido anteriormente, que consiste em tomar o futebol espetacularizado como um canal de manifestação unilateral de interesses da CBF, da FIFA ou do capital internacional. Essa linha interpretativa nos parece um tanto ingênua, já que não reconhece toda a polissemia que cerca os clubes e a seleção brasileira em particular. Como produto cultural, o esporte nacional deve ser visto como um campo de disputa no qual as diversas projeções sociais encontram-se para um embate político. A recusa de alguns desses grupos de “dividir essa bola” por meio da bravata anunciada de que “não vai ter copa” fez com que o time jogasse desfalcado. Nesse aspecto, o um tanto esquecido lema “Copa pra quem?” nos parece mais poderoso, pois passa a ser capaz de aglutinar toda a massa de insatisfeitos, com a vantagem de não perder o seu potencial reivindicatório original com o começo efetivo da competição.

Foto: Diogo Moreira – A2 Fotografia.

Do outro lado, embalados pelo ufanismo nacionalista que aflora a cada Copa do Mundo, as camadas mais conservadoras da sociedade utilizam-se do momento para omitir as suas propostas políticas por meio de um discurso supostamente apolítico em defesa de uma moral, em tese, inquestionável. Se as manifestações de oposição à Dilma na abertura da Copa do Mundo se limitasse às vaias, seria politicamente legítima, completamente autorizada – e necessária – em um regime democrático.  No entanto, os xingamentos direcionados à presidente e a catarse que se seguiu por meio da divulgação de vídeos do ocorrido nas redes sociais apontam em outra direção.

A ação de uma parcela dos torcedores presentes no Itaquerão ao ofender a presidente está repleta de significados e não ocorreu por acaso em um estádio de futebol, espaço do confronto de ideias políticas, de paixões e de emoções. Em primeiro lugar, não podemos deixar de considerar o elemento sexista e misógino no ato de mandar a presidente tomar no c… Dilma não foi enfrentada como figura pública, condição na qual o gênero não deveria ser elemento de diferenciação. A presidente foi ofendida no âmbito pessoal por meio de xingamentos que estão associados ao reforço de uma masculinidade e heteronormatividade autoritárias tão comuns nas arenas de futebol.  

O segundo ponto a ser levado em conta é o processo de maquiamento das propostas políticas dessas camadas. Em nome da restituição de supostos valores morais perdidos, esse grupo se traveste de verde e amarelo e, segundo sua auto-avaliação, assume a condição de porta-voz de uma nacionalidade vilipendiada e usurpada. Com isso, estariam legitimados a fazer frente a todas àquelas leituras de mundo que não se encaixam em sua visão de mundo. A bandeira de movimento supostamente apolítico ganha força então na medida em que se escora em um conceito de moral extremamente vago e fluido que defenderia uma maioria invisível.

Foto: Diogo Moreira – A2 Fotografia.

No entanto, o ato de xingar a presidente é fruto de um projeto também político que reflete uma série de inquietudes de grupos historicamente consolidados no topo da sociedade, e que atualmente precisam sair da sua zona de conforto uma vez que parte dos seus privilégios estão sendo colocados em cheque. Assim, levantar bandeiras contra a Dilma ou o PT, e unicamente contra eles, por conta da má gestão do dinheiro público, é uma crítica limitada que despolitiza o debate, já que assume uma suposta luta do bem contra o mal. Diferentemente de algumas críticas recentes que alegam que esses setores que ofenderam a presidente são dominados pela ignorância, creio ser possível identificar na ação desses grupos os anseios por um projeto autoritário que se recuse a respeitar o jogo político que legitimou Dilma como presidente eleita pela maioria da população brasileira.

Ou seja, envoltos na encantadora experiência estética de ir a um estádio de futebol – pela primeira vez? – devidamente higienizado pelas políticas de altos preços dos ingressos, maravilhados com o desbravamento da periferia de uma grande cidade garantido por um ostensivo aparato policial em uma sociedade extremamente fragmentada geograficamente e imersos em uma uniformidade social e ideológica, a torcida bissexta de Copa do Mundo se apaixonou pela sua própria ação e pela ideia de pertencimento de grupo. Com isso, passam a interpretar que a imposição de um pensamento autoritário único que flerta com o fascismo é sinônimo de exercício de um direito democrático, conforme foi alardeado nas redes sociais. Deixo o alerta de que não podemos nos esquecer do grande contingente de insatisfeitos que ficaram excluídos tanto dos estádios quanto do suposto debate político, pois o que se viu no Itaquerão durante a abertura da Copa foi um monólogo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Max Filipe Nigro Rocha

É graduado e mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realiza pesquisa de doutorado sobre futebol e política pela USP. Editor do site Ludopédio (www.ludopedio.com.br)e pesquisador do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) que integra pesquisadores da USP, Unicamp, Unesp e Unifesp.

Como citar

ROCHA, Max Filipe Nigro. Monólogo paulistano no Itaquerão. Ludopédio, São Paulo, v. 60, n. 5, 2014.
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