136.31

“Moral oficial” e “moral clandestina”: resultados da pesquisa sobre corrupção no futebol

Wesley Barbosa Machado 13 de outubro de 2020

Este é o quarto texto da série “Corrupção no Futebol“, publicada com exclusividade no Ludopédio e resultado da pesquisa de dissertação para o mestrado em Sociologia Política na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). A pesquisa qualitativa com entrevistas semiestruturadas foi realizada nos anos de 2018 e 2019 e resultou ainda na publicação em 2020 do e-book “Corrupção no Futebol“, deste autor, com prefácio de Juca Kfouri.

Foram entrevistados na pesquisa empírica os que categorizei como participantes sociais do futebol: atletas, treinadores, preparadores físicos, árbitros, dirigentes, cronistas esportivos e torcedores. Dos 47 entrevistados, apenas um entrevistado, um atleta, não respondeu a pergunta sobre se eles consideravam que existe corrupção no futebol. Mas ele não respondeu que não existe corrupção no futebol, apenas se esquivou da pergunta. Os outros 46 entrevistados afirmaram que existe sim corrupção no futebol. 15 entrevistados citaram a manipulação de resultados como uma forma de corrupção no futebol. O termo específico “apostas” foi citado por cinco entrevistados. Um outro entrevistado citou o que chamou de “Máfia dos Apostadores”. Seis entrevistados, quando perguntados sobres casos de corrupção no futebol, citaram a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Cinco entrevistados citaram a FIFA.

Na análise das entrevistas, verificou-se ainda que quatro entrevistados citaram o caso da Máfia do Apito no Brasil em 2005, que tratou-se de um escândalo de manipulação de resultados via site de apostas esportivas. Três entrevistados citaram federações estaduais. Dois entrevistados citaram outras confederações do mundo. Dois entrevistados citaram especificamente o “futebol italiano”. Dois entrevistados citaram o caso do clube Barra Mansa de 2017. Dois entrevistados usaram o termo “mala branca” para falar de corrupção no futebol. Um entrevistado citou a Rede Globo de Televisão. Um entrevistado citou a venda da Vila do Curumim do Goytacaz e a venda do estádio Godofredo Cruz do Americano como corrupções no futebol. Um entrevistado citou a final do Campeonato Campista de 1966. E um entrevistado citou o escândalo das Papeletas Amarelas, que envolveu o Flamengo na década de 1980.

Três jogadores quando perguntados mais especificamente sobres casos de corrupção no futebol fugiram do assunto e desconversam. Um dos dirigentes entrevistados, quando perguntado se a relação dele com o futebol mudou quando tomou conhecimento de casos de corrupção no futebol, afirmou que “a paixão continua a mesma”. Um treinador, quando perguntado também se a relação dele com o futebol havia mudado após as descobertas de casos de corrupção no futebol, afirmou que passou a ficar com “mais atento” com os “cartolas”. Um jogador, quando perguntado se para ele a corrupção no futebol acontece mais no Brasil e nos países periféricos ou nos países do centro também, disse: “Na Europa a gente não vê muito, não sei se eles acobertam.” Mas 95% dos entrevistados consideraram que a corrupção no futebol acontece “em todos os lugares”. Este foi um termo muito repetido pelos entrevistados.

Um preparador físico entrevistado (escolaridade: pós-graduação) fala em “internet” e “comunicação global” para comentar o que chamou de “detecção” de casos de corrupção no futebol. Cita dois casos, um do futebol italiano e a Máfia do Apito no Brasil em 2005 (um dos casos mais lembrados pelos entrevistados), mas no geral é muito vago em suas falas, parecendo querer fugir do assunto, o que revela que o tema é polêmico e difícil de ser abordado, sendo que este entrevistado em específico foi bastante abstrato em suas considerações.

Um torcedor entrevistado (ocupação: professor, escolaridade: ensino superior completo) afirma que “a sociedade é corrupta” e que o futebol, que faz parte do sistema societal e que reflete esta corrupção da sociedade. Ele cita o que chamou de “teia”, que pode ser interpretada como uma rede de corrupção sistêmica. Este entrevistado fala que a relação dele com o futebol não mudou com a corrupção, o que mostra que o esporte não pode ser observado apenas pelas questões econômicas (GIULIANOTTI, 2002), configurando-se como cultura, numa visão antropológica (DAMATTA, 1982).

Para um torcedor entrevistado (ocupação: jornalista, escolaridade: ensino médio) a corrupção no futebol é mais nítida no que chamou de “futebol nos seus níveis menores”, o que podemos chamar da “ralé do futebol”.[1] Este entrevistado sugeriu que havia manipulação de resultados na Europa, principalmente na Espanha, antes da deflagração do escândalo em 2019 – a entrevista foi realizada em 2018. Ele considera “difícil falar de corrupção no futebol”, por se tratar de um tema polêmico e, para ele, um pouco desconhecido.

Um torcedor entrevistado (ocupação: servidor público, escolaridade: ensino superior) cita a corrupção na política também e considera a corrupção como um “mal mundial”. Para um jogador de futebol entrevistado (escolaridade: ensino médio): a corrupção no Brasil é mais “explícita”. Ele diz considerar que na Europa os escândalos podem ser “acobertados”. Outro torcedor entrevistado (ocupação: não respondida; escolaridade: ensino médio) também considera que a corrupção no Brasil é “mais visível”.

Um jogador de futebol entrevistado (escolaridade: ensino médio) traz à baila “notícias” como o meio para tomar conhecimento de escândalos de corrupção e disse acreditar que é um assunto “que não dá para esconder”. Ao mesmo tempo, um paradoxo, diz não ter conhecimento sobre o “FIFAgate”, que é considerado um dos maiores escândalos de corrupção mundiais, não só do futebol.

Três entrevistados citaram o que eles consideram como outros tipos de corrupção no futebol. Um entrevistado (ocupação: motorista de aplicativo, escolaridade: ensino médio) citou o favorecimento de determinados jovens atletas por parte de empresários em avaliações técnicas, as chamadas peneiras – um segundo entrevistado (ocupação: cronista de futebol, escolaridade: pós graduado) também citou este tipo específico de corrupção no futebol relacionada à participação de empresários de atletas. E, por fim, um último entrevistado, um dirigente de futebol (escolaridade: ensino médio) citou a entrada do árbitro de vídeo (VAR) no futebol à medida que mais pessoas passam a ter o poder de interferir no resultado de uma partida.

Aproximadamente 20% dos entrevistados afirmaram que a corrupção no futebol está relacionada à presença do dinheiro. “Onde tem dinheiro tem corrupção” foi uma afirmação que apareceu em muitas das entrevistas. Destacamos a afirmação de um entrevistado, cronista esportivo, que disse que “Hoje o futebol é o maior negócio do mundo”.

O que observei a partir das percepções dos participantes sociais do futebol é que a corrupção é um tema moral, que em princípio incomoda os entrevistados que vão falar sobre o assunto, mas eles têm uma opinião formada de que a corrupção no futebol não deveria existir, bem como na sociedade em geral. 

Aproximadamente 25% dos entrevistados consideraram que a corrupção está no futebol porque o futebol faz parte da sociedade e não está alheio ao que acontece na sociedade. O fenômeno da corrupção relacionada ao futebol está atrelada ao alto quantitativo de dinheiro envolvido no esporte, o que torna o futebol vulnerável para a prática de corrupção e lavagem de dinheiro, o que foi atestado pela pesquisa “Money Laundering through the Football Sector”, do Financial Action Task Force – FATF (2009).

Imagem: Pixabay

As percepções sobre corrupção no futebol foram uma forma de aferir que os atores sociais, os quais categorizei como participantes sociais do futebol, são contra a corrupção no futebol, um posicionamento moral. Claro que devemos desconfiar de suas falas, afinal como tratam-se de posicionamentos morais sabemos que estes podem não condizer com o que realmente pensam ou praticam. Esta é uma questão delicada, que está relacionada com a moral de cada um. O que posso afirmar é que a corrupção é considerada pelos entrevistados como algo contrário às regras morais, portanto imoral. Conforme pensava, nenhum entrevistado teve uma postura imoral em sua fala.

De acordo com PILZ (1999, p. 10):

“Em que pese a forte defesa das funções sociais e educativas do esporte no sentido de uma educação para o fair play, o cavalheirismo, a honradez e a camaradagem, o esporte de rendimento é muito mais uma instância de aceitação da falta de fair play, da violência e da fraude. O esporte associativo já na juventude ensina que em favor do sucesso esportivo é válido o desrespeito às regras”. PILZ (1999, p. 10) 

Ainda segundo PILZ (1999, p. 10-11) citando BETTE (1989, p. 199-200):

“Bette (1989: 199 e seg.) identifica como as organizações do esporte se posicionam em relação a esses problemas segundo três ‘morais especiais’. As duas primeiras são a moral oficial interna do esporte de alto rendimento, cujos principais elementos são o fair play e a codificação das regras, e uma moral ‘cuja imagem é necessariamente opaca e secreta, uma moral clandestina’, que procura impor arbitrariamente seu próprio código. ‘O doping, as atitudes vinculadas à farsa e ao engano, além de outras formas de ilegalidade útil’ são, segundo Bette (1989: 200), ‘expressão dessa moraI que assume formalmente o código oficiaI, mas que na prática abdica de colocá-lo em prática’. Ao lado disso encontra-se o contínuo interesse do esporte convencionaI em dissimular a existência dessa moraI que lhe é, na verdade, imanente. O infringir das regras não é, nesse sentido, observado como condição necessária à disputa de competições, mas imputado individual à exagerada sede de vitória dos atletas. Corresponderia a essa atitude o surgimento de ‘uma moral externa, que se cruza de maneira difusa com a interna, e que critica e sanciona as normas da moral clandestina’ (Bette, 1989: 200). Essa mente moral é ativada, sempre de forma cuidadosa, quando, através de indiscrições e escândalos, desmistificam-se valores sociais positivos imputados ao esporte, ou ainda quando esses valores são desmascarados como mera aparência. E em grande parte mérito das pesquisas de sociologia do esporte, nesse campo, ter desmascarado declarações das federações esportivas a respeito do esporte de alto rendimento para crianças, do problema do doping e das iniciativas de promoção do fair play como álibis e formas de tranquilizar e confundir a opinião pública. Essas táticas deveriam, por um lado, tranquilizar os espectadores e outros grupos ligados ao esporte (sobretudo patrocinadores), e por outro apenas servir à manutenção do esporte de alto nível, incluindo sua moral clandestina do ‘ou tudo ou nada’”. PILZ (1999, p. 10-11)

Esta categorização de BETTE (1989, 199- 200), citada por PILZ (1999, p. 10-11), das três “morais especiais”, a “moral oficial”, a “moral clandestina” e a “moral externa” podem explicar porque os participantes sociais do futebol entrevistados na pesquisa empírica se esquivam de comentar escândalos de corrupção que poderiam ser do foro de competência de suas atuações, como no caso dos ex-árbitros, que revelam ter recebido propostas de subornos, mas que não teriam aceitado.

Uma outra fala que corrobora a ideia de uma “moral oficial” é a fala do dirigente que coloca a culpa pela corrupção no futebol na arbitragem. No que um ex-técnico de futebol considera como possíveis “culpados” os dirigentes, o que também foi afirmado por um ex-jogador.

A “moral clandestina” seria a de ganhar a “qualquer custo”, afinal os atletas jogam em busca da vitória e os torcedores não querem ver o seu time perder. Para tanto não aceitam, por exemplo, quando o jogador do seu time coloca a bola para fora quando um jogador adversário está caído em campo. Após o reinício do jogo, a bola é devolvida ao adversário. É o chamado fair play, o jogo limpo. Este fato pôde ser observado na final da Copa de 1998 quando o Brasil perdia para a França na final e o jogador Rivaldo colocou a bola para fora, no que o jogador Edmundo vociferou contra o colega de time. Portanto o que se fala é muito diferente do que se pratica. 

Bourdieu (2003: 237) escreveu sobre o problema da pesquisa sobre “as questões que giram em torno dos problemas da moral” e dos “problemas que são encarados como problemas éticos à medida em que se desce na hierarquia social, mas que podem ser considerados como problemas políticos pelas classes superiores”.

O universo estudado, de 47 pessoas, é apenas um panorama do que pode vir a ser estudado quantitativamente. Os participantes sociais do futebol entrevistados, no caso dos atletas e membros de comissões técnicas, trabalham/trabalhavam em organizações, como clubes de futebol, do município de Campos dos Goytacazes-RJ, com apenas três casos, de um atleta e um treinador, que trabalhavam, respectivamente, nos municípios de Castelo e Venda Nova dos Imigrantes, ambos no estado do Espírito Santo; e um preparador físico, que trabalhava no município de Muriaé-MG. Os torcedores moravam em sua maioria no município de Campos dos Goytacazes-RJ, exceto quatro deles, que moravam na cidade do Rio de Janeiro, em Niterói-RJ, União da Vitória-PR e Hamamatsu, Japão.

Leia os outros textos da série “Corrupção no Futebol“. No quinto e último texto da série, no próximo mês com exclusividade no Ludopédio, serão abordados recentes escândalos de corrupção no futebol no Brasil e no mundo.

Notas

[1] Termo cunhado pelo professor de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) de Campos dos Goytacazes-RJ, Rodrigo Monteiro, que fez parte da banca da defesa do projeto de dissertação em novembro de 2018.

Referências 

BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Fim de Século: Lisboa, 2003.

DAMATTA, Roberto; FLORES, Luiz Felipe Baêta Neves; GUEDES, Simoni Lahud; e VOGEL, Arno. Universo do Futebol – Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.

GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do Futebol – Dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2002.

MACHADO, Wesley. Corrupção no Futebol. Campos dos Goytacazes-RJ: Edição do autor, 2020.

PILZ. Gunter A. “Sociologia do Esporte na Alemanha. Revista Estudos Históricos, v. 13, n. 23, Rio de Janeiro, 1999.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Wesley Barbosa Machado

Nascido no dia 23 de junho de 1981 em Campos dos Goytacazes-RJJornalista, Escritor e Compositor.Torcedor do Botafogo do Rio de Janeiro, do Roxinho de Campos dos Goytacazes-RJ e do Arsenal da Inglaterra.Co-Autor do Livro de Crônicas do Botafogo, "A Magia do 7" (Editora Livros Ilimitados, 2011) e Autor dos Livros "Saudosas Pelejas: A História Centenária do Campos Athletic Association" (Edição do Autor, 2012), "Botafogo, Roxinho e Outros Textos Sobre Futebol" (Edição do Autor, 2020) e "Corrupção no Futebol" (Edição do Autor, 2020).Autor das Músicas sobre Futebol: "Oração do Futebol", "Samba do Senta" e "Gol do Maurício"; e do Hino Oficial do Campos Atlético Associação (Roxinho).Criador e Administrador dos Projetos Campos OnLine (@campos.online no Instagram); Campos de Bola (@camposdebola no Instagram); Bola Carioca (@bolacarioca no Instagram e /bolacarioca2020 no Facebook), Coleção Botafogo(/colecaobotafogo no Facebook); Blog Campos Fichas Técnicas (camposfichastecnicas.blogspot.com.br); Blog Pérolas Futebol e Causos (perolasfc.blogspot.com.br); e Blog Estrela Solitária no Coração (estrelasolitarianocoracao.blogspot.com). Fundador, Autor e Editor do Site Viva La Resenha (vivalaresenha.wordpress.com). Produtor do Podcast Camisa Oito (@camisaoito no Twitter).

Como citar

MACHADO, Wesley Barbosa. “Moral oficial” e “moral clandestina”: resultados da pesquisa sobre corrupção no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 31, 2020.
Leia também:
  • 178.19

    Atlético Goianiense e Vila Nova – Decisões entre clubes de origem comunitária

    Paulo Winicius Teixeira de Paula
  • 178.17

    Onde estão os negros no futebol brasileiro?

    Ana Beatriz Santos da Silva
  • 178.15

    Racismo no Futebol: o golaço do combate ao racismo pode partir do futebol

    Camila Valente de Souza