– Ai, Lena, eu fiquei tão triste quando soube.
– Nem me fala, Má.
– Foi um descanso, né? Ele sofreu tanto…
– Ah, isso sim. No fundo, a gente até espera. O Marcos tava definhando já.
– Imagino.
– Pontos corridos não é nada fácil. Faz a gente ficar ali, concentrada em quem a gente ama, o tempo todo. Qualquer melhora dá um certo ânimo, a gente pensa que tudo vai ficar bem dali pra frente, mas quando chega o momento ruim é ladeira abaixo. Pior que ele ainda falava muito das vezes que ele se descuidou, lá no começo da vida…
– Nossa, ele morreu de pontos corridos, né? Mas tenta não pensar assim…
– Mas até que é verdade. Se a gente se cuidasse desde o começo, o sofrimento seria menor. Ou então conseguia descobrir antes, sei lá.
– Ao menos você foi se despedindo com o tempo, diferente de mim.
– Foi de mata-mata que o Paulinho morreu, Maria?
– Foi sim. De uma hora pra outra, numa quarta-feira. A gente pensando que tava tudo bem e do nada ele foi embora. A gente nem suspeitava que aquela pequena dor de cabeça fosse pra tanto. Quando vi a gravidade do problema, já não dava tempo pra mais nada.
– Complicado, ele era tão legal…
– Legal, intenso. A morte foi o estilo de vida dele. Sempre dizia: quero morrer de mata-mata, de uma vez só. Bebia, fumava, comia feijoada uma vez por semana, curtia uma noitada.
– Ah, o Paulinho era um típico brasileiro.
– Sim, sim. Disso não posso reclamar. Viver com ele era intenso e tenso.
– Que coisa louca, não é? Vi uma reportagem semana passada, ainda com o Marquinhos. Cada vez mais gente morre de pontos corridos por aqui.
– Sério?
– Seríssimo, Má.
– Nossa, que coisa estranha, de europeu.
– Também acho. Era isso que o Marcos falava também. “Por que morrer de pontos corridos? Logo eu, Senhor?” Os médicos vinham consolar, dizer que o mais importante era ter tempo para se planejar. Mas é tão estranho.
– Frio?
– Eu não, tá quente aqui, Má.
– Não, sua louca. Tô perguntando se era um ambiente frio.
– Ah, sim, claro que é. Todo o pessoal que morre de pontos corridos diz isso. É um ambiente frio, nem parece que se está morrendo. Passam os dias, um atrás do outro, como se fossem iguais. A gente nem percebe que a morte tá chegando. É esquisito, não é nosso.
– Verdade. Pra nós a morte tem que ser trágica, na hora, naquele dia. Sorte a minha.
– Sorte a sua. Lembro você me avisando, chorando, mas ao mesmo tempo conformada.
– Sim. Até hoje lembro o Paulo falando: vou morrer de mata-mata.
– Ele falou uma vez isso pro Marcos, não foi?
– Foi sim! Num churrasco aqui em casa.
– Não…
– Minto, foi no enterro do Santana.
– Verdade, verdade.
– Ai Lena, não é fácil ficar só.
– Vou saber como é agora. Espero que os dois estejam bem, não é?
– Sim. E você, prefere morrer como?
– De jeito nenhum, prefiro não morrer…
– Ai, sério.
– Olha, eu prefiro morrer de uma vez só. Quero morrer de mata-mata.
– Sei. Depois que meu Paulinho se foi, acho que ando vivendo em pontos corridos.
– Sério?
– Muito sério!
– Para com isso! A vida tem que ser mata-mata.
– Nem sempre.
– Nem sempre, mas na maioria das vezes…
– Sei lá, sei lá.
– Olha que louco: o Marcos viveu e morreu de pontos corridos, o Paulo viveu e morreu de mata-mata.
– Verdade, né?
– É. Vamos tomar uma naquele barzinho que a gente ia na época de solteira?
– Vamos, precisamos respirar um pouco.
– Tem jogo hoje?
– Deve ter, é quarta-feira.
– Isso. Acho que é alguma final, vi o comercial na TV.
– Tomara.
Crônica retirada do livro “De Letra: o futebol é só um detalhe“, disponível para compra AQUI.