157.29

Muito além da geração Neymar (infelizmente)

Fabio Perina 28 de julho de 2022

“É uma mistura de egoísmo, alienação e indiferença. Já ficou claro que o povo brasileiro não pode esperar nada da maioria dos jogadores, que fazem como o presidente e jogam só para os próprios apoiadores, sem pensar no povo brasileiro. Depois, fingem que não sabem porque são mais criticados e vaiados.” 

“E como eu posso ter empatia com atletas que apoiam o presidente? Giba, que foi condenado por não pagar pensão às filhas? Neymar e Lucas que apoiam a chacina no Rio. Independentemente dos antecedentes criminais, existe pena de morte no Brasil? E Neymar já se acertou com o fisco? E Chu Santos que reserva o Inferno aos gays. Inclusive suas colegas de time? E André Calvelo, pego no doping? E Wallace e mais um do vôlei, fazendo 17 antes da eleição? (…) E, como cidadão, tenho o direito de torcer contra. A vitória deles não é a vitória do Brasil. É a vitória de quem está transformando o Brasil em pária do mundo.”

O texto a seguir pretende ser uma breve retrospectiva de fatos e personagens marcantes nos últimos meses que reflete a raiva que eu e muitos torcedores temos com a atual geração da boleiragem (sobretudo seus membros mais estrelados) ser tão individualista, pouco profissional e sobretudo tão despolitizada. Como se vivesse na sua própria bolha de privilégios, regalias e “passadas de pano” entre outros colegas de boleiragem: eventualmente dirigentes, mas sobretudo outros jogadores, bajuladores da imprensa e “parsas” do “staff” (como se diz ironicamente, sem eles um craque sequer conseguiria fazer check-in em um vôo ou em um hotel!). Entre a geração Neymar e a geração Ronaldinho, conforme já tratado em outras crônicas, restam ainda vários outros craques-celebridades igualmente detestáveis. Em comum entre as duas gerações parece haver na dimensão individual um misto de permissividade com imaturidade (mesmo depois de aposentados). Assim como um pano de fundo em dimensão mais ampla: a representação ainda recorrente na mídia e na opinião pública do estilo de jogo “futebol-arte” que tende a tratar os craques em campo como meninos inocentes ou até indefesos fora dele. O que aliás também é muito conveniente aos dirigentes, pois essa representação de resquícios de amadorismo dificulta a organização política autônoma dos jogadores e os faz dependentes de um paternalismo generalizado. Assim a recorrência dos casos sugere muito mais um problema da geração do que caso isolado individual, por isso a justificativa do título.

Nessa última crônica citada, tendo como mote a prisão de Ronaldinho, no início de 2020, mencionei alguma reflexão sobre as categorias marxistas de consciência e condição de classe aplicadas à boleiragem. Também mencionei o obstáculo do tão cotidiano “resultadismo” esportivo (na linguagem da boleiragem é o tão famoso: “Jogou aonde? Ganhou o que?”) para uma politização cotidiana dos jogadores. E agora acrescento que é possível mencionar que esse elemento também pode ser transferido a um certo “resultadismo” político, ou seja, bastaria algum craque-celebridade ter ganho muitos títulos dentro de campo para que tivesse um salvo-conduto eterno de fazer o que quisesse fora de campo. Pelo contrário, pela premissa de serem pessoas públicas suas vidas privadas são sim fatos políticos e, portanto, devem assumir as consequências como qualquer outro cidadão. (Obs: como ressalva, o tom de desabafo meu e dos vários cronistas que chamo a meu auxílio tende a usar o termo “anti-política”, embora seria mais preciso identificar que a boleiragem faz um uso cínico e oportunista da questão, ou seja, variando caso a caso conforme se identificam ou não com algum político ou causa). O fragmento a seguir trata de Daniel Alves (o qual evidente não será poupado), mas também caberia a vários outros para entender esse cenário geral:

“É sempre decepcionante quando atletas com trajetórias vitoriosas e inspiradoras no esporte se comportam como capachos de extremistas golpistas. Ser ídolo vai muito além dos feitos esportivos. Empilhar troféus não impede qualquer cidadão de ocupar a lata de lixo da história”.

Gabigol
Foto: Wikipédia

Eis que mais recentemente Neymar encontrou em Gabriel Barbosa (o “Gabigol”) não só um cunhado e um “parsa”, mas sobretudo um “discípulo” para sua visão anti-política e sua atitude de “tudo pode” fora de campo. Vide em fevereiro de 2021 o escândalo mais emblemático de ter sido flagrado, em pleno auge da pandemia, escondido embaixo de uma mesa de um cassino clandestino durante blitz policial! E depois alegando a desculpa esfarrapada que foi lá para jantar! Um caso importante para se evitar algumas individualizações, pois o mais importante é avaliar mais os atos do que as pessoas (embora a recorrência inspire pouca confiança nas pessoas em questão). A primeira, não é somente Neymar quem passa vergonhas assim, mas ele é o símbolo da maior parte de sua geração boleira. A segunda, assim como é preciso ter em vista a conivência dos jornalistas (bajuladores?) e pior ainda dos dirigentes do Flamengo ao alegarem mais uma vez em casos similares ser “assunto pessoal” ou “tem direito a se divertir como qualquer um”, o que como se diz no provérbio popular: “passam a mão na cabeça de meninos mimados”.

“É um moleque, é um irresponsável. O Flamengo passou a mão na cabeça e vai ficar por isso mesmo. Ele é discípulo de Neymar, pela sua irresponsabilidade, a maneira de se comportar na delegacia, querendo levar vantagem e ofender a polícia. Ele e o Neymar são jovens, talentosos, vieram de uma camada pobre da população. Ganham muito dinheiro, tornaram-se ídolos, mas não sabem se comportar”.

Também ao longo de 2021 outro personagem ainda mais emblemático desse perfil da boleiragem anti-política (e até mesmo anti-profissional) foi Daniel Alves, sobretudo enquanto esteve no São Paulo. Daniel sequer esteve em campo no momento mais importante do clube no ano quando precisava sair da fila de títulos na final do Campeonato Paulista, em maio. Se até ali, em quase 2 anos de contrato, esse projeto de marketing não era dos melhores dentro de campo, logo depois, sobretudo entre julho, agosto e setembro, que veio seu “show de horrores” de polêmicas. A começar por novamente desfalcar o clube (dessa vez em mata-mata da Libertadores e da Copa do Brasil) em nome de estar em um local ainda mais blindado que é a seleção olímpica em Tóquio diante da fachada de um “sonho” (onde podia se sobressair como um medalhão rodeado de garotos potenciais bajuladores). Após essa aventura, Daniel como sempre postou uma declaração vaga e covarde de pedir respeito pela seleção. Embora não tenha nenhum respeito pelo povo que ela deveria representar. Por falar em patriotismo, logo depois ao postar o mote eleitoral de Bolsonaro, em pleno 7 de setembro, se mostrou mais um de seus apoiadores. A seguir um fragmento essencial para recordar a discussão de consciência e condição de classe que escancara essa e outras gerações da boleiragem:

“Qual a porcentagem de cidadãos brasileiros que ganham mais de R$ 1 milhão por mês que são apoiadores de Bolsonaro? 99%? Daniel é um deles. Está defendendo sua classe. Muitos outros jogadores estão do mesmo lado. O lado deles. O futebol é uma forma de ascensão social. Pessoas pobres, através da bola, vão subindo de vida. E muita gente vive a ilusão de que se manteriam fiéis aí seu passado, à sua história. Não. Podem até visitar a cidadezinha onde nasceram, bater uma bola com antigos amigos de infância, fazer caridade e só. (…) Ao crescer socialmente, o jogador de futebol assume os ideais da sua nova classe social: individualismo e manutenção do que está. E não é só Daniel Alves. Júnior Capacete, preto e nordestino como ele, também apoia Bolsonaro, que não gosta de preto e nordestino. Mas gosta de rico. Lucas Moura. E quantos mais! E, sejamos justos. Quantas pessoas conhecemos, que tiveram muito mais oportunidades de estudo e conhecimento de um garoto pobre que driblava e chutava bem e fez disso o seu futuro, agem igual?”.

Seleção Olímpica
Foto: Wikipédia

Após o ouro olímpico, Daniel voltou ao Brasil e teve que enfrentar a pressão da torcida do clube após esse passeio. (Aliás, o que levanta um debate atual bem mais amplo que o caso, pelo qual vários craques-celebridades se sentem como maiores que os clubes em que jogam. Pior ainda, vários dirigentes aceitam a submissão de decisões em que um “atleta” faz o que quer dentro do clube). Conforme o próprio Daniel declarou mais de uma vez, que graças a ele o clube retomou um papel de visibilidade internacional! Assim foi a prolongada demora da diretoria tricolor em finalmente rescindir seu contrato no início de setembro. No fim das contas, se a margem de negociação do clube diante do jogador é pequena diante de sua dívida com ele, então que ao menos parasse logo de prorrogar esse desrespeito diário. Evidente que nem com o fim do contrato o egoísmo teve mais fim, pois o próprio Daniel fez “leilão” de sua próxima transferência ao negociar com 6 clubes brasileiros (já declaradamente para usar um como “escada” para a seleção e, portanto, ser desfalque certo) e não fechou com nenhum. Para depois postar com previsível demagogia que “não é por dinheiro, é por valores” diante do desfecho do caso com o retorno a outro ambiente blindado para ele desde o vestiário à diretoria: o Barcelona.

(Obs: ainda no final do ano surgiu o caso de Douglas Costa no Grêmio como jogador quase tão odiado quanto Daniel no São Paulo. Afinal ele chegou ao clube também com uma carta branca de “ter vencido na Europa”. Porém, além de ficar devendo muito em desempenho esportivo foi ainda pior em comprometimento profissional nos últimos dias da luta do clube contra o rebaixamento: insistir em participar de uma festa de casamento no Copacabana Palace e, pior, desrespeitar a torcida comemorando gol mandando beijinhos!). Como atualização, em meados de 2022, novamente o Barcelona não serviu a Daniel para uma renovação, quem novamente foi mal agradecido, e encontrou um novo contrato no Pumas-MEX apenas para não deixar o treinador Tite mais constrangido de levar para a Copa do Mundo no final do ano algum jogador sem clube.

“Incentivados a não amadurecerem. Incentivados a serem espertos. Incentivados a não levarem desaforo pra casa. A ludibriar, ter vantagem, sair por cima, ficar com a última palavra, ganhar sempre, perder jamais. Vencer a qualquer custo, não olhar para os lados, passar por cima se preciso for, não se mostrar vulnerável. Gerações inteiras de homens-moleques. Eterno gamer de um jogo vazio e sem objetivo”.

Falando em Olimpíadas, felizmente para a análise e infelizmente para a política vimos, conforme a citação inicial no texto sugere, que a elite da boleiragem do futebol não está muito pior do que o restante da elite esportiva de outras modalidades diante de egoísmo e alienação. A pandemia ao menos serviu para deixar cair a máscara de vários que se escondiam atrás das cores nacionais e alegando que o patriotismo os isentaria. Vide também durante o torneio mundial se descobriu que existe “o Neymar do surfe”: Gabriel Medina. Quem deu um show misto de individualismo e negacionismo dentro de sua própria bolha, pois foi para as Olimpíadas exigindo caprichos para seu “staff” pessoal ao desconsiderar o regulamento, a tradição do torneio e a representação a um país (e não a si mesmo, conforme seu próprio delírio momentâneo). E logo depois não podendo participar uma etapa do circuito mundial da categoria por se recusar a se vacinar! Falando em negacionismo, essa postura esteve muito presente em diversos outros atletas de outras modalidades (vide o mais recente escândalo internacional em janeiro de 2022 envolvendo a deportação para fora da Austrália do tenista sérvio Djokovic, também um orgulhoso reincidente) e diversos jogadores de clubes brasileiros (de diversas idades) flagrados em baladas clandestinas no início de 2021 (muito próximo ao “caso cassino” já comentado)!

Ao lembrar de Ronaldinho é preciso lembrar também de Ronaldo, já uma geração mais velha e cujos erros correm o risco de sempre esquecidos com o passar do tempo conforme novos casos levam à percepção que quanto mais nova a geração pior ela seja em sua despolitização. Pois os últimos anos de Ronaldo como profissional, logo após o Penta com a seleção brasileira, foram de pouco rendimento em campo e muita ostentação e negociação fora dele, respectivamente, no Real Madri “galáctico” e no Corinthians. Sendo que nesse último foi quem trouxe uma série de patrocínios e marketing para encher cada pedaço da camisa do clube. Sua atuação pública a partir de 2011 após a aposentadoria vai além da vergonhosa declaração de “não se faz copa do mundo com hospitais” e também passa por frequentes blindagens midiáticas à elite da cartolagem e a seus ‘parsas’ como Aécio Neves e Neymar. Durante a Copa de 2014 ficou ainda mais explícito seu conflito de interesses, pois foi membro do comitê organizador e ao mesmo tempo fornecedor de assentos nas arenas. Ou seja, um conflito entre público e privado. Assim como o conflito de interesses de sua agencia de marketing cuidar da carreira de atletas que tem suas partidas comentadas por Ronaldo na Rede Globo. Ou seja, um conflito entre Entretenimento e Esporte. Duas “jogadas” que articuladas se assemelham com o “tudopodismo” dos casos anteriores, embora bem mais avançadas do que as versões infantilizadas por envolver uma nova “habilidade” nos negócios de transitar por “portas giratórias” com tantas facilidades. Em suma, como se diz no provérbio popular: “atende a Deus e ao diabo ao mesmo tempo!”

“fenômeno do ativismo em causa própria (…) Ronaldo deixa cada vez mais claro que só entra em campo na boa, jogando para a torcida até o ponto em que o vento sopra a seu favor.(…) A aventura de militante na política se resumiu a lançar uma pedra ao mar e correr dos respingos.(…) Ronaldo não se constrange em trocar as bandeiras que levanta de acordo com aquilo que lhe convém. Basta lembrar 2008, quando fazia juras de amor ao Flamengo, que assegurava ser seu time do coração, mas, depois de fechar com o Corinthians, virou corintiano de carteirinha.”

A recente “jogada” empresarial de Ronaldo foi o bombástico anúncio nos últimos dias de 2021 da compra do Cruzeiro (ironicamente clube quem o revelou ao profissional há cerca de três décadas) logo após a nova lei de clube empresa aprovada no Congresso Nacional. Sendo que pesa sobre ele o fracasso pessoal recente de não ter evitado o rebaixamento do Valladolid-ESP em meados de 2021 logo após também comprá-lo. Questão menos comentada nessa empreitada empresarial que quem emerge como seu “braço direito” é Paulo André como dirigente profissional (ou “CEO”). Ex-jogador e ex-líder do Bom Senso FC. Movimento político provisório e autônomo dos jogadores em relação aos sindicatos tradicionais da categoria que emergiu na onda das manifestações de 2013. Algo sintomático de um giro em menos de uma década da boleiragem da “esquerda” à “direita” diante de um afastamento ainda maior da categoria de sua consciência de classe

Paulo André
Foto: reprodução Facebook

Afinal, a década de 2010 é marcada pela passagem do lulismo ao bolsonarismo. Daí duas ressalvas: nem romantização do lulismo nem uma determinação direta da política sobre o futebol. Ou seja, um retrocesso pelo qual os jogadores com esse recente apoio eleitoral a Bolsonaro em 2018 (e um ensaio de provavelmente repeti-lo em 2022) podem ser responsáveis hoje pela perda de liberdades e direitos amanhã de toda a categoria. Há ainda um forte elemento de afinidade no campo conservador que foi a adesão religiosa explícita do candidato e dos jogadores. O que acrescento, embora sem condições de aprofundar o tema, que no ambiente do futebol é muito comum como forma de “popularizar” a meritocracia ao buscar estabelecer uma relação direta entre esforço e recompensa, através da assim chamada “teologia da prosperidade” de diversos grupos religiosos, sobretudo neopentecostais.

Por fim, a raiva com que iniciei esse texto se soma ao pessimismo, pois essas movimentações do caso Ronaldo/Cruzeiro reforçam a hipótese que a elite da boleiragem tende a entrar em “relações carnais” (cada vez mais indistinguíveis) com empresários, dirigentes e até políticos. O que não oferece nenhuma perspectiva que ao encerrarem suas carreiras dentro de campo fossem se renegar à volta ao anonimato da infância e a uma vida pessoal tranquila. Pelo contrário, certamente não nos livraremos deles e de seus profundos defeitos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Muito além da geração Neymar (infelizmente). Ludopédio, São Paulo, v. 157, n. 29, 2022.
Leia também:
  • 178.26

    1974/2024: a solitária revolução portuguesa e lampejos sobre o futebol

    Fabio Perina
  • 178.18

    Hinchas, política y 24M: la Coordinadora de Derechos Humanos del fútbol argentino, emblema de trabajo colectivo

    Verónica Moreira
  • 178.2

    Memória, Verdade e Justiça também no futebol sul-americano

    Fabio Perina