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Muito além da jabulani: o futebol e as violências contra as mulheres

No contexto brasileiro, o enfrentamento à violência contra a mulher tem como marcos institucionais a criação, em 1985, da primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM); o surgimento dos Juizados Especiais Criminais, em 1995 e; em 2006, a promulgação da Lei 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha. Mesmo com tais dispositivos, ainda tomamos conhecimento de inúmeras situações cotidianas que carregam em si o sexismo e que são legitimadas pela misoginia e lesbo, homo, bi e transfobia.

Falando apenas de mulheres cis[i], em todo o Brasil, a cada cinco mulheres, duas relatam ter sofrido algum tipo de violência (Dados da Fundação Perseu Abramo de 2010). Além disso, de acordo com o Mapa da Violência de 2012, publicado pelo Instituto Sangari, a maior parte dos casos de agressão e feminicídios tem como autor os parceiros das vítimas, mais especificamente, maridos e ex-maridos.

Neste ponto da leitura vocês devem estar pensando… “ok, mas qual a relação disso com futebol?”. E eu começarei a tecer essa trama com uma declaração de Felipe Melo, em 2010, na época jogador da Seleção Brasileira. Ele, ao criticar a jabulani em uma coletiva de imprensa em 31 de maio deste ano, faz a seguinte declaração: “A outra bola é igual à mulher de malandro: você chuta e ela continua ali. Essa de agora é igual patricinha, que não quer ser chutada de jeito nenhum.” [ii].

Ainda que os meios de comunicação que divulgaram esta fala não tenham encontrado problemas na declaração do jogador, eu começo a minha reflexão com uma pergunta: quem quer ser chutada, Felipe Melo? Porque até onde eu sei, ninguém.

05/06/2010 - Randburg High School - Randburg - Africa do Sul - Copa do Mundo de Futebol 2010 - Treino da Selecao Brasileira de Futebol legenda: Felipe Melo foto: AgÍncia Photocamera
Felipe Melo chuta a Jabulani durante treino da seleção brasileira na Copa de 2010. Foto: Agência Photocamera.

Não costumamos entrar neste assunto do futebol em relação à violência contra a mulher. Sempre que tratamos de agressões e práticas violentas neste contexto, trazemos como representações os conflitos identitários. Ou entre torcedores, motivados pelo pertencimento clubístico, ou confusões dentro das quatro linhas envolvendo jogadores e outros atores deste meio. O fato é que este esporte não se dissocia de outros aspectos da vida. Não apenas no Brasil, como veremos. Mas é sempre bom falar da realidade que se vive. Sendo assim, ele, o futebol, não está separado de questões políticas, econômicas ou culturais. Reflete outras construções sociais, como o que é ser mulher (feminilidades), ser homem (masculinidades) e os lugares que estes ocupam na sociedade.

A tradição futebolística, tanto na prática quanto na torcida[iii], está intimamente ligada à construção das masculinidades. Quem nunca ouviu a expressão “futebol é coisa de macho”? Isso se dá porque este esporte envolve competições, desafios e manutenção da honra, retratadas por uma necessidade de vencer sempre. Seja em campo ou fora dele – em discussões, por exemplo, há que se manter a razão. Todos estes elementos citados dizem do que é ser homem em nossa sociedade, enquanto a mulher está ligada à sensibilidade, à maternidade, ao casamento e ao cuidado com o outro.

Tendo dito isso, temos as mulheres muitas vezes excluídas deste mundo, ou incluídas de forma perversa: como aquelas que embelezam o campo, as musas, dito de outra maneira, adornos. Assim, num reduto das masculinidades, parece não anunciar um problema a declaração de Felipe Melo, tendo em vista que esta violência simbólica é naturalizada.

Há quem acredite que tudo isso que eu estou mencionando é um grande exagero, assim como é excessivo, para algumas pessoas, reclamar de “xingamentos” que aproximem os adversários ao espectro do que é considerado feminino em nossa sociedade, como forma de inferiorizá-lo. O que é esquecido, muitas vezes, é que essa questão sustenta e se relaciona com outras formas de violência nem sempre simbólicas, fora do espaço futebolístico. E o futebol acaba, assim, por se tornar um álibi e um meio legitimado para expressão de preconceitos e discriminações de gênero chegando a extremos: agressões e feminicídio, por exemplo.

No caso da fala que inspirou esta reflexão, há uma clara distinção entre “as mulheres de malandro” e “as patricinhas”. As primeiras, de acordo com o jogador, se baseando em uma lógica social mais ampla, gostam de ser chutadas (apanhar) porque permanecem ali, ao lado do agressor. O que se desconhece é que a mulher, por ocupar um lugar específico numa sociedade machista e patriarcal, muitas vezes depende financeiramente do homem que pratica a violência e que, não raramente, proíbe esta mulher de trabalhar; tem filhos com o agressor, que, no caso de uma denúncia, ficam impedidos de ver o pai e; finalmente, mas não menos importante, cresceram aprendendo que aquela agressão não é violência, o que legitima a posição do marido, que se coloca como educador neste momento… “eu fiz isso para que ela aprendesse que…” e por ai vai. A declaração em questão ainda carrega outros problemas que são preconceitos de classe e, porque não dizer, de raça, que estão tão naturalizados quanto a misoginia: a patricinha não aceita apanhar, mas a mulher de malandro… com ela é diferente, né?

Parece um caso específico e desconexo do futebol. Mas, para evidenciar que a situação de violência relacionada ao mundo futebolístico é comum dentro e fora das quatro linhas, temos uma campanha lançada na Inglaterra pela Tender Education and Arts Organization, “Stand Up World Cup”. Ela foi baseada em uma pesquisa que concluiu que os índices de violência doméstica sobem em média 30% neste país, a cada vez que a seleção inglesa perdeu um jogo da Copa do Mundo de 2010[iv]. O vídeo apresenta uma mulher assistindo a um jogo de futebol desesperada, e no apito final ela fica parada com um olhar perdido, com medo e tristeza, como se estivesse aguardando a agressão que sofreria por parte do marido. Ao final do vídeo aparecem as mensagens: “ninguém mais queria tanto que a Inglaterra ganhasse quanto as mulheres”, seguido de “a violência cresce 38% quando a Inglaterra é derrotada em campeonato mundial”.

Dois pontos devem ser ressaltados: em primeiro lugar, eu não quero com este texto dizer que o futebol seja causador da violência contra as mulheres, e sim explicitar a íntima relação que eles têm entre si – o futebol, assim como o alcoolismo, em muitos casos, aparece como justificativa para que a violência ocorra[v]; em segundo, por mais que a campanha explicite um aumento da violência doméstica com a derrota da Inglaterra, a pesquisa que foi base para a construção do vídeo mostra que as agressões também acontecem em momentos de vitória, mas em menor intensidade.

Voltando para o contexto brasileiro, temos além destas situações de violência doméstica que ocorrem fora do espaço do futebol (mas relacionadas a ele), polêmicas que envolvem jogadores que agrediram fisicamente suas companheiras. Como alguns exemplos divulgados pela mídia (tendo em vista que inúmeros casos devem ser invisibilizados cotidianamente) temos Bernardo, ex-jogador do Vasco e que atualmente defende o Ulsan Hyundai, da Coreia do Sul; o Dudu, do Palmeiras; o Jobson, ex-Botafogo, além do ex-jogador brasileiro Vampeta[vi].

Mas, assim como na Inglaterra, além do lado negativo, de estar associado à violência contra a mulher, o futebol é usado como um espaço de enfrentamento a ela, tanto por vias institucionais como outras formas de combate encontradas pelas próprias mulheres. Como na maioria dos terrenos, este esporte tem sempre um ponto de opressão e um ponto de libertação[vii]. E, assim, algumas campanhas começam a ser feitas, tendo em vista esta causa.

A primeira delas foi lançada pela Associação Streetfootballworld Brasil, chamada “Cartão Vermelho para a violência doméstica” (iniciativa do Instituto Avon e do Fundo Elas com o apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e da ONU Mulheres)[viii]. Além da produção de panfletos informativos, foram realizadas palestras e apresentações sobre o tema no território brasileiro. A jogadora Marta protagonizava os vídeos da campanha e chegou a dizer que: “Campanhas como essa, que usam a paixão pelo futebol para combater esse tipo de crime, são importantíssimas para virar esse jogo”.

A outra veio neste ano, de 2016, como uma grata surpresa no Dia Internacional das Mulheres. A Ponte Preta (Associação Atlética Ponte Preta), em parceria com o Centro de Apoio à Mulher Operosa, promoveu uma campanha que aborda a violência doméstica contra as mulheres. A chamada foi “Mês das mulheres sem rosas, mas com amor e cuidado: Macaca entra em campo hoje protestando contra abusos e violência”[ix]. Ela consistiu na produção de cartazes que alertavam para estas situações de opressão no Brasil e divulgavam o Disque 180[x]. Além disso, neste período a equipe da Ponte Preta entrou em campo com a hashtag #nãopassarão estampada na camisa.

E, por fim, o Confiança, no dia 16 de março de 2016, num jogo contra o Flamengo, lançou a campanha “Não Quebre a Confiança”[xi]. Os jogadores do clube sergipano entraram em campo usando as camisas estampadas com os nomes de mulheres que foram vítimas de violência no lugar do nome dos jogadores. Vale ressaltar que os depoimentos destas mulheres estão divulgados no site do time bem como foi iniciada uma campanha no Instagram onde diversas pessoas protagonizam o símbolo da campanha – um punho segurado pela outra mão-, que também foi exibido pelos jogadores no momento da execução do hino nacional. Segundo Luiz Roberto Dantas, o presidente do clube, a ação teve por objetivo discutir um tema que é tão presente na sociedade e esquecido pelo futebol e o jogo foi escolhido propositalmente, pela grande repercussão. A tentativa, segundo ele, foi “quebrar o paradigma de que o futebol é um ambiente machista”, disse ele[xii]. Na campanha da Associação Desportiva Confiança, são sempre lembradas as mudanças pelas quais o futebol passou, reafirmando que muitas questões sociais ainda não mudaram, como é o caso das lógicas sociais que determinam desigualdades.

Neste texto, procurei trazer uma reflexão que muitas vezes é invisibilizada no mundo do futebol. Não podemos perder de vista que até mesmo neste contexto, devemos romper com as violências legitimadas pelas convenções de gênero. Por fim, gostaria de ressaltar que estas questões não são apenas vivenciadas por mulheres cis e heterossexuais, mas a violência de gênero ligada a este contexto esportivo pode ser estendida às vivências de mulheres trans e mulheres lésbicas, ainda que se coloquem em alguns casos com outras roupagens.

Notas explicativas:

[i] Pessoas cis ou cisgêneras são pessoas que se posicionam em coerência ao gênero que lhes fora designado no nascimento. Essa experiência estaria em conformidade com as normas de gênero em que “sexo” supostamente determina o gênero, ou melhor, vagina corresponde ao sexo feminino = mulher e pênis ao sexo masculino = homem. Dito de outra forma, não rompem com uma lógica conhecida como binária. Pessoas trans, ou transexuais, não se enquadram nesta norma de alinhamento entre sexo e gênero.

[ii] Fonte: http://globoesporte.globo.com/futebol/selecao-brasileira/noticia/2010/05/felipe-melo-muda-nome-da-jabulani-bola-da-copa-agora-e-patricinha.html

[iii] Ainda que algumas mulheres tenham participado da assistência ao longo da história o que observamos é que são mulheres muito específicas, ocupando espaços muito específicos. Nos períodos iniciais do futebol no Brasil, por exemplo, tínhamos mulheres da elite do país que iam a campo para embelezar os estádios e assistir membros de suas famílias que praticavam o esporte. Além disso, há, até os dias atuais, uma reprodução das relações privadas em um ambiente público. Ou seja, a maioria das mulheres vai ao estádio acompanhada de membros da família, em sua maioria homens, não havendo uma cultura do torcer ligada à feminilidade.

[iv]Sobre a pesquisa realizada:

http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/10/121015_futebol_violencia_domestica_mv

Sobre a campanha:

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2014/07/07/interna_mundo,436374/campanha-sobre-violencia-domestica-aborda-a-torcida-feminina-no-futebol.shtml e http://www.hypeness.com.br/2014/07/campanha-tocante-mostra-porque-algumas-mulheres-no-mundo-estao-acompanhando-a-copa/

[v] Isso se deve a uma série de fatores, mas antes de tudo, vale mencionar que o futebol, por evolver diversas emoções permite que as pessoas extravazem sentimentos, opiniões e se comportem de formas tidas como inadequadas. Isso não se deve ao futebol somente. Todas as concepções e ações que acontecem em função dele partem de sujeitos sociais que compartilham representações construídas ao longo do tempo, afinal o futebol é construtor e reprodutor de questões sociais mais amplas por constituir e ser constituído por sujeitos.

[vi] Há diversos outros, como o do jogador Adriano (se apresentou este ano no Miami United), que prendeu a sua ex- mulher numa árvore em 2010. E, porque não citar, o caso do ex-goleiro do flamengo, Bruno, que talvez o mais emblemático dessa violência, ainda que haja especificidades neste caso.
Fonte: http://esportes.terra.com.br/lance/assim-como-bernardo-outros-jogadores-se-envolveram-em-polemicas-com-mulheres,4bf366f9a90c22a2d12c67a1af3243a2jdrzRCRD.html

[vii]  Baseio-me aqui em situações no ambiente do futebol em que acontecem preconceitos diversos. No caso do racismo, por exemplo, ao mesmo tempo em que o futebol é palco destes episódios violentos, campanhas antirracismo são criadas (o caso Tinga e do Aranha ilustram bem essa situação). Outro ponto em que o futebol tem estas duas faces é em sua relação com questões políticas e movimentos sociais. Em tempos de ditadura militar, houve um uso da seleção brasileira para a construção de um ideal de nação e melhoria da popularidade do governo Médici. Concomitante a isto, na comemoração do tricampeonato mundial, em que aglomerações eram permitidas nas ruas – com o propósito de unir a nação em torno de um só ideal, articulações políticas eram feitas contra o governo vigente. Neste período ainda podem ser evidenciados os times de várzea, que por serem grupos não proibidos pelo Regime, aproveitavam a situação para construir agrupamentos de enfrentamento à situação política vigente no país e, por fim, a Democracia Corintiana.

[viii] Para mais informações: http://www.fundosocialelas.org/falesemmedo/noticia/cartao-vermelho-para-a-violencia-domestica/15877/.

[ix]  Para mais informações: http://pontepreta.com.br/noticias-detalhe/mes-das-mulheres.

[x] Disque 180 – Central de Atendimento à Mulher. Para saber mais: http://www.spm.gov.br/ligue-180.

[xi] Para mais informações sobre a campanha: http://www.naoquebreaconfianca.com.br/

[xii]  Sobre as declarações do Presidente da Associação Desportiva Confiança: http://esporteinterativo.com.br/blogs/mulher-no-esporte/confianca-lanca-campanha-de-combate-a-violencia-contra-a-mulher-no-jogo-contra-o-flamengo-pela-copa-do-brasil/

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Bárbara Gonçalves Mendes

Psicóloga, doutoranda em Psicologia Social pela UFMG, pesquisadora no Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) e do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH).

Como citar

MENDES, Bárbara Gonçalves. Muito além da jabulani: o futebol e as violências contra as mulheres. Ludopédio, São Paulo, v. 82, n. 9, 2016.
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