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Mulheres brasileiras fora de campo: “Quantas vezes vão acontecer vários pedidos e ninguém vai nos escutar?”

Mayara Maia 29 de setembro de 2017

“Quantas vezes vão acontecer vários pedidos e ninguém vai nos escutar? […] Quando várias atletas te fazem um pedido é porque esse pedido é importante”.

A fala acima foi dita pela jogadora brasileira Cristiane Rozeira em seu espaço virtual no Instagram e direcionada ao presidente da CBF Marco Polo del Nero, enquanto a atleta anunciava a sua saída da seleção brasileira. A demissão “surpresa” de Emily Lima do cargo de técnica da seleção brasileira de futebol feminino fez o cansaço de muitas pessoas que acreditam e lutam pelo futuro dessa modalidade em nosso país chegar ao estopim. A esperança de serem ouvidas de maneira interna e profissional não vem adiantando há muitos anos. Diante dos avanços e ao mesmo tempo, das descontinuidades do futebol feminino atual, há cada vez mais, a necessidade de se posicionar para que as mudanças positivas se fortifiquem.

“Foi bem difícil para mim quando essa comissão foi mandada embora. Simplesmente tiraram esta comissão após pouquíssimo tempo, em que todas as atletas estavam gostando do trabalho. […] Não teve mais oportunidade por que era mulher? Por que trabalhava demais? Por que brigava além da conta não só dentro de campo, mas fora também? São coisas que a gente não entende […] são porquês que a gente não vai ter respostas”, diz Cristiane.

Foto da primeira coletiva de Emily Lima na CBF. Crédito: Kin Saito/CBF
Primeira coletiva de Emily Lima na CBF.
Foto: Kin Saito/CBF.

Em sua primeira coletiva na CBF, Emily Lima falou: “Meu principal sonho era estar aqui. […] O segundo é ver a modalidade ser reconhecida e valorizada no nosso país. Acho que a cultura do nosso país é machista, mas a gente está quebrando essa barreira”. Entretanto, a sua demissão da seleção já revela que o machismo ainda tem grande poder no futebol brasileiro e apesar da repercussão negativa nas mídias sobre a mudança de técnicos, a CBF não manifestou abertamente os motivos. Emily falou e falou, mas não foi ouvida. O poder é deles, quem consegue tocá-los? A quem realmente precisam dar alguma justificativa? Parece que as atletas e o povo brasileiro não merecem tal respeito.

Desde o início de seu trabalho, Emily afirmou trabalhar com planos de médio a longo prazo, de forma a chegar com uma equipe renovada e preparada nas competições que mais importam à modalidade, a Copa do Mundo em 2019 e os Jogos Olímpicos em 2020. O ano de 2017 foi pensado pela ex-técnica como um ano de preparação. Foram disputados apenas amistosos e duas competições não-oficiais: o Torneio Internacional de Manaus, em que a seleção foi Heptacampeã, e o Torneio das Nações, no qual o Brasil ficou em terceiro lugar. Após 7 meses de resultados positivos no cargo, alcançando o melhor inicio de campanha comparado aos últimos 13 anos, Emily sofreu seus primeiros placares ruins. Ao todo, foram sete vitórias consecutivas no início e a partir de julho, um empate e cinco derrotas. Perdemos apenas para grandes seleções do futebol de mulheres: Alemanha, Estados Unidos, Austrália e Japão.

Estas derrotas serviram à CBF como motivos suficientes para a demissão. Com poucas oportunidades de mostrar o que vinha desenvolvendo, Emily Lima foi desligada do cargo após apenas 10 meses de atuação, poucos jogos e nenhuma competição oficial. A ex-técnica diz que sua demissão se justifica mais pelo desinteresse do coordenador de Futebol Feminino da CBF Marco Aurélio Cunha em trabalhar junto com sua equipe técnica, por ela ser mulher e por não saber ser política. Seus pensamentos respaldam sobre as comparações com técnicos de outras categorias da modalidade e com técnicos da equipe principal que a antecederam. Os técnicos das outras categorias estão com resultados mais comprometedores e entre os últimos cinco técnicos da seleção principal, todos eram homens, foi disponibilizado mais tempo no cargo, além de quatro deles terem disputado competições oficiais e de alguns apresentarem campanhas regulares.

Como acreditar que Emily foi demitida por falta de trabalho e competência? Como ignorar o pouco tempo cedido e não enxergar o desinteresse e desagrado da CBF em tê-la por perto? Vadão, técnico que atuou de 2014 a 2016, volta ao seu cargo. Como justificar o retorno de alguém que há menos de um ano era julgado inadequado à função? Cada vez mais fica claro que a CBF convidou Emily não porque acredita na possibilidade de mulheres desempenharem tal cargo de forma competente, mas para dizer à FIFA que cumpriu por um tempo a solicitação de ter técnicas mulheres no comando das seleções.

As próprias jogadoras da seleção discordaram da mudança, tendo manifestado seu desejo da permanência da treinadora em carta para o presidente da CBF Marco Polo del Nero. No documento, elas também reconheceram que a comissão técnica estava trabalhando com excelência, mas que para alcançar resultados positivos era necessário tempo para a adaptação da equipe aos novos conceitos propostos. Infelizmente suas palavras foram ignoradas. As jogadoras mais uma vez não foram ouvidas.

 Jogadora Cristiane anuncia sua saída seleção brasileira. Crédito: reprodução/Instagram
Jogadora Cristiane anuncia sua saída da seleção brasileira. Crédito: reprodução/Instagram.

Após o anúncio da demissão da técnica, muitos envolvidos com o futebol feminino no país manifestaram suas indignações e as próprias atletas passaram por pressões quanto a manifestações referentes as suas opiniões. Algumas postaram apenas lamentações junto a agradecimentos à equipe técnica que saiu recentemente. Já a jogadora Cristiane Rozeira foi além e falou o que muitas desejam falar, mas temendo as retaliações, se calam. E ainda, agindo através de mais um ato político, fez o que me dói até para digitar… anunciou sua saída da seleção brasileira. Isso mesmo, cansada de enfrentar lutas diárias e mascaradas no universo do futebol menino, ela desabafa em lágrimas: “Não tenho mais forças para aguentar”.

Em sua página pessoal no Instagram no dia 27 de setembro, a jogadora publicou vídeos sobre sua saída: “É a decisão mais difícil que tomei na minha vida profissional até hoje. […] Mas eu não vejo outra alternativa por todos os acontecimentos e por coisas que já não tenho forças para aguentar. Hoje, se encerra meu ciclo na seleção brasileira”.

Jogadora Cristiane em momentos de conquistas pelo futebol brasileiro. Crédito: Reprodução/Instagram
Jogadora Cristiane em momentos de conquistas pelo futebol brasileiro. Crédito: Reprodução/Instagram.

Cristiane era uma das principais peças do sistema ofensivo da Seleção Brasileira, tendo alcançado em 2016 o título de maior artilheira da história dos Jogos Olímpicos entre homens e mulheres. Nascida em Osasco (SP), Cristiane trouxe muitas alegrias ao futebol brasileiro. É tricampeã do Pan-Americano (2003, 2007 e 2015), tem duas medalhas de prata em Jogos Olímpicos (2004 e 2008) e foi vice-campeã da Copa do Mundo em 2007. Seus gols, sua raça e sua excelência em campo a colocou entre as melhores do mundo do futebol várias vezes. Hoje, Cristiane atua no time chinês Changchun Zhuoyue, o caminho continua seguindo por fora do país, longe de familiares, mas com mais qualidade profissional. A artilheira se despede da seleção marcando um golaço político diante de tanta injustiça esportiva.

Sua saída não foi apenas pela demissão de Emily. Este acontecimento serviu como estopim diante de outros enfrentamentos dentro dos 17 anos de carreira da atleta. Em suas falas, aborda questões sérias como as baixas verbas destinadas às diárias, a falta de informação sobre os direitos de imagens, a ausência de venda de produtos da seleção e a falta de atenção aos diálogos com as atletas. Afirma que não era ouvida, que cansou de falar, pedir e até ganhou fama de chata ou de que falava demais. E demonstrou insatisfação com a desunião que há entre as atletas por medo de encarar a CBF.

“Falei, cobrei […] e as coisas não andaram. […] Meninas, sejam fortes e unidas! […]. Um grupo é maior do que uma, duas ou quatro. Vocês precisam fazer isso”.

A atleta também deixa muitos pedidos e conselhos ao presidente da CBF, demonstrando implicitamente a falta de atitude do coordenador da CBF diante das tentativas de diálogos delas: “Faça uma reunião com as atletas, o senhor e as atletas, e escute o que elas tem a pedir”; “Façam planejamento de marketing […] Mudem coisas que vão fazer diferença. Prestem atenção nos detalhes”.

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Cristiane após a vitória contra a China nos Jogos Olímpicos de 2016. Foto: Ricardo Stuckert/CBF.
A partir da atitude da atleta Cristiane, outras jogadoras de futebol tomaram a mesma iniciativa. Primeiro, foi a jogadora Francielle Alberto, que atuava como meia na seleção brasileira com títulos como campeã Sul Americana em 2006 e bronze na Copa do Mundo pela seleção brasileira Sub-20 em 2008, medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008 pela seleção adulta e campeã da Copa do Brasil em 2016 pelo Corinthians/Audax.Depois, foi a vez da jogadora Rosana dos Santo. A atleta também já possui importantes títulos pela seleção. Conquistou duas medalhas de prata em Jogos Olímpicos (Atenas, 2004; Pequim, 2008), um ouro pelos Jogos Pan-americanos de 2007, no Rio de Janeiro e uma Prata em 2011 na Guadalajara. Tais atos só revelam o quanto as atletas estão cansadas de lutar apenas internamente e viver em constante falta de valorização adequada.

Vivemos um momento de muitos avanços no futebol de mulheres no mundo, entre normas e indicações como as advindas da CONMEBOL e da FIFA às confederações e aos clubes, não se pode ignorar isso. Mas esses retrocessos no futebol feminino brasileiro mostram que a valorização e o desenvolvimento da modalidade ainda dependem de muita luta e que ser mulher no universo do futebol ainda é uma barreira. E principalmente, como a atleta Cristiane deixa nítido em seus vídeos, chegou o momento de falar! Precisa-se cada vez mais de muitas vozes, muitos gritos e muita união para conseguirmos de fato que a CBF volte seus interesses para o crescimento da modalidade no Brasil. “O futebol é feminino, mas praticamente não há mulheres”, fala Cristiane referindo-se a cargos além de jogadoras dentro do futebol. A cada bola murcha da CBF, levamos um gol contra na conta da seleção feminina. Em vez de nos fortificarmos para as próximas competições, vamos perdendo elencos principais por questões políticas e culturais.

Obrigada, Emily Lima, Cristiane Rozeira e Francielle Alberto por não se calarem! Obrigada por tudo que fizeram por nossa seleção! Dentro e fora de campo, mostraram muita raça, muito trabalho e compromisso com o futebol feminino! Parabéns por todas as atuações! Que as vozes de vocês ecoem por muitas profissionais do futebol que ainda não se manisfestaram. Falem e falem mais!! Vocês fazem o nosso futebol feminino, mais do que qualquer um ali dentro, são as que merecem ser ouvidas! Meus mais sinceros agradecimentos à voz e à coragem de vocês.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mayara Maia

Doutoranda em Ciências do Movimento Humano pela UFRGS; mestre em Estudos da Mídia pela UFRN; graduada em Educação Física pela UFRN. Eterna atleta e apreciadora de imagens do movimento humano, apaixonada por esportes, aventura e pelas telas do cinema.

Como citar

MAIA, Mayara. Mulheres brasileiras fora de campo: “Quantas vezes vão acontecer vários pedidos e ninguém vai nos escutar?”. Ludopédio, São Paulo, v. 99, n. 29, 2017.
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