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Não é ódio pelo futebol moderno, é que o Rudimar é maior que o Pelé

Thales Machado 3 de março de 2019

o Rudimar

Rudimar Prunzel Horlle é um atacante nascido em São Pedro do Sul, bem no Sul. Gaúcho, talvez pelo sobrenome, mas muito mais com certeza pelas madeixas loiras e olhos quase claros, ganhou o apelido mais fácil e que ganharia em qualquer cancha pobre do Brasil: ALEMÃO. Pois Rudimar, o Alemão, ainda ganhou a alcunha de RUDIGOL pelos sete gols feitos no Módulo II do Campeonato Mineiro pelo Atlético Tricordiano. O último deles, já é História. RUDI, mesmo empurrado, cabeceou uma bola que demorou duas décadas e mais dois anos para balançar o barbante. E o estádio Elias Arbex explodiu. O Atlético Tricordiano subia para a elite do futebol mineiro. A terra do Rei Pelé, Três Corações, no sul de Minas, voltará a ter um representante na elite do futebol mineiro após 22 anos. Mas e o Pelé?

Rudimar comemora o acesso do Atlético Tricordiano, de Três Corações. Foto: Portal MaisTC.

Pelé, dois dias depois, não que tivesse a obrigação, mas provavelmente alheio a sua cidade que via uma festa que há duas décadas não vivia, desembarcou em Cuba declarando simpatia, quase amor, por Joseph Blatter, apoiando a permanência do suíço ao cargo de presidente da FIFA, dizendo que é necessário experiência para o cargo. Um dia depois, Blatter renunciou à reeleição, prometendo deixar o cargo no fim deste ano.

Não é pelo estádio Elias Arbex, mais velho que o pai do Pelé (que jogou por lá). Não é porque só cabem umas 2 mil pessoas, vendem 2500 ingressos, comparecem umas 3 mil. Não é porque metade do público curte mesmo é o alambrado. Não é porque o juiz não tem descanso, o bandeira, muito menos. Não é porque, conhecendo as pessoas e os buracos corretos, é possível comprar aquela cerveja sem álcool batizada no meio do jogo. Não é pela fumaça vermelha que a torcida espalha na arquibancada antes da partida. Não é pelo autor do gol do título pendurado descalço no alambrado depois do acesso. Não é porque o jogo tem que ser de manhã porque o estádio não tem iluminação. Não é o ódio eterno pelo tal futebol moderno. Para o futebol, em Três Corações ou em qualquer outro canto pequeno desse mundo, só é que Rudimar é melhor que Pelé.

Torcida lotou o Elias Arbex no jogo final. Foto: Portal MaisTC.

A resvalada da bola nas madeixas loiras de Rudigol e de lá, para o fundo das redes, garanto, faz melhor ao esporte, À SOCIEDADE, do que qualquer meia frase dita por Pelé, que calado, sabemos. Está no gol marcado contra o Araxá, aos dois minutos do segundo tempo, o sonho e delírio de uma cidade desunida pelo progresso. Na trajetória da bola, no apito final, está toda e qualquer graça do futebol. O êxtase. Ainda que se esforcem, Marins jamais retirarão a graça de tal explosão. “O futebol conecta pessoas”, a frase é de Joseph Blatter. A intepretação, ao contrário do ir e vir do Marin, é livre.

a cidade e o Atlético

Três Corações, muito além do que a tal Terra do Rei, é uma cidade pequena se você pensa em cidade grande, e uma cidade grande se você pensa em cidade pequena. Os quase 77 mil habitantes de hoje são bem mais dos que os não sei quantos da década de 1970, quando o Atlético de Três Corações viveu sua época mais gloriosa. Em 1972 e 1973, o time do Sul de Minas chegou a desafiar os poderosos Atlético, Cruzeiro e América, da capital. A imagem de cidade bucólica de interior, com bom carnaval, gente simples, missa de domingo e volta na praça era a mais pura realidade. Daí pra frente, a cidade, é fato, foi vítima do próprio progresso.

Indústrias, indústrias, indústrias!

Cresci por lá, no fim da década de 1980, começo da de 1990, e cresci em uma noção de que quanto mais fábricas, melhor a cidade. Invejavam Varginha porque tinha a fábrica da Itambé. A avenida principal do meu bairro ganhou nome em homenagem à fábrica de uma multinacional que se instalara na cidade na década de1980. A fábrica fechou, mas a Avenida Nestlé segue lá, intacta, ainda que oficialmente já tenha outro nome que eu mal lembro. Muita gente veio para a cidade por conta do progresso, e, aos pouco, por bem, por mal, pra bom, pra ruim, a cidade de interior bucólica e charmosa foi se transformando. O Atlético, time da cidade, teve outro momento de glória no fim dos anos 80, começo dos anos 90, disputando na elite do Mineiro em 1987, 1993 e 1994. Caiu e não voltou mais. De 1995 até 1999, afogado em crises financeiras, nem chegou a disputar qualquer campeonato.

Arquivo da Folha de S. Paulo noticia demissões em fábrica em Três Corações. 12/03/1998.

A cidade crescida e supostamente em progresso tomou ares diferentes. Se antes se via gente de fora querendo vir, nem que seja nas férias, o que se via agora era gente de dentro querendo sair, principalmente para trabalhar. Algumas fábricas e indústrias sumiram com a mesma mágica que sumiu o futebol do Atlético. Criou-se um ódio coletivo pela cidade, quase que global. Pudera, gente sem raiz por lá, que viera devido ao boom industrial, e que ficara por lá, sem condições de sair, após as crises econômicas do começo e fim dos anos 90, que fecharam importantes fábricas no local, como a Coca Cola, Mangels e a supracitada Nestlé. Gente que se viu sem emprego e em uma terra que não era sua. Se não bastasse, nem futebol tinha. De desgostar mesmo.

Na metade dos anos 2000, o crescimento econômico veio e a situação de toda daquela gente que virara a classe mais pobre e ocupava uma pequena parte periférica da cidade melhorou. O espanto da elite era que, justamente, a cidade tinha uma periferia agora relevante. O boom do consumo incentivado pelo Governo trouxe aqueles, antes marginalizados nos cantos e bairros mais afastados da cidade, para o centro. Nem que seja para passear, para jantar, para comprar um eletrodoméstico nas lojas de departamento. O tal povo, antes de um lado só da praça, o mais pobre, veio para ocupá-la por inteiro. Aquela praça dos anos 1970. Ocuparam o carnaval, antes tradicional de samba e marchinhas, com muito axé, funk e até banho de espuma em plena avenida principal. A elite, claro, reclamou.

Reportagem da revista Placar de 1987, sobre o segundo dos quatro acessos do Galo do Sul.

Criou-se uma divisão social na cidade. Gente de bairros marginalizados, gente preta, gente trabalhadora agora ocupava um espaço que nunca pôde. O pessoal do centro, apegada em uma impressão de que a violência aumentara agora na cidade, era quem agora reclamava da cidade e se refugiava. Se o pessoal do Cinturão Verde começou a frequentar o Calabresa, melhor restaurante da cidade, que se fale que a comida piorou. Se o Carnaval está “muito popular”, que se fechem as tradicionais famílias nos bailes privados do Umuarama, principal clube local. Se dar voltas na praça nas noites do fim de semana visando a paquera perdeu a graça, ou “ficou perigoso”, que se criem boates e bares mais caros em uma avenida que antes só tinha postos de gasolina e oficinas. Tudo afastado do centro. Tudo afastado do povo.

“Três Corações sofre de um desamor crônico a si mesma, e o apartheid social ali é quase uma tradição. Eu sou da Cotia e sinto isso quando falo das minhas origens com a turma do Clube Três Corações, que fica no Centro”,

declara Luis Fernando Amâncio, mestre em História pela UFMG e tricordiano criado em um bairro de classe média, um espaço no meio do caminho entre os bairros centrais e os periféricos. Já eu, nasci e me criei no Santa Tereza, mais central, de classe média alta dentro dos padrões da cidade.

“Quando eu falo em desamor, é que a impressão que eu tenho é que todos tem seus problemas existenciais. Em Três Corações, porém, todas essas indisposições levam ao descontentamento com a cidade. É quase um esporte, as pessoas parecem ter orgulho de reclamar de lá. O comércio é ruim, não tem boas baladas, não tem cultura. “Top” é sempre alguma cidade vizinha de grama mais verde e pubs universitários. O “Eldorado” tricordiano é sair de lá”, opina Amâncio, destacando que a cidade é praticamente equidistante de Rio (364 km), São Paulo (305 km) e Belo Horizonte (299 km). “As três metrópoles ficam longe o suficiente para não ser fácil fugir até elas, mas estão próximas o bastante para se cultivar o sonho”.

No meio do processo, tão claro que não é exagero meu, nem do Luis, chama-lo de apartheid social, o Atlético-TC voltara com campanhas pífias. De 1999 a 2006, um 7º lugar no Módulo II do Campeonato Mineiro foi o máximo atingido. Em 2007, o time estava afogado em dívidas, não conseguia adequar o velho Elias Arbex para receber suas partidas, não tinha dinheiro para mandar jogos em outro lugar. Em cinco rodadas, um empate, quatro derrotas, um gol feito, quatorze sofridos. E, de repente, a desistência. No meio do campeonato, o quase centenário clube desistira de participar.

O escudo do Atlético de Três Corações, que encerrou as atividades em 2007, mas renasceu como Atlético Tricordiano.

Rebaixado para o terceiro nível, o tal do fundo do poço do futebol mineiro, suspenso por dois anos de competições oficiais, e com uma multa de R$ 10 mil a pagar pelo abandono do campeonato, além de um número sem igual de dívidas na Federação. Parecia o fim do futebol na dividida Três Corações, que até experimentara alguma paixão e união noutro esporte, o vôlei.

Entre 1997 e 2001 o time da cidade figurou na Superliga como a melhor a mais presente torcida do Brasil (em 1997, primeiro ano, o Unincor/Três Corações teve a maior média de público da Liga, mesmo com a incrível campanha de UMA vitória e VINTE E UMA derrotas). Entre diversos patrocinadores e incentivadores ao longo dos anos, o vôlei só sobrevive com eles, mudando o time de nome a cada temporada, Eurico Miranda chegou com o Vasco em 2000, montou um time forte, um dos melhores orçamentos do Brasil. No meio do campeonato, em crise, o Vasco não pagou ninguém e o time acabou. Deixou saudade, foi uma grande paixão da cidade, mas nada comparada as tardes/noites centenárias de emoção nas arquibancadas do Elias Arbex.

o Atlético Tricordiano

Uma solução pra lá de esperta foi arranjada por ex-dirigentes do Atlético Clube Três Corações. Se o time está falido, suspenso, rebaixado, que se funde outro. O uniforme é o mesmo. Vermelho, com calções brancos. O escudo, um pouco diferente, adotando definitivamente o Galo como mascote. O estádio? Elias Arbex, é claro. O nome? Atlético também. Só que ao invés de Atlético de Três Corações, agora o clube se chamaria Atlético TRICORDIANO, que nada mais é que o peculiar gentílico de quem nasce na cidade.

Clique no play e escute a narração do último minuto de jogo em uma rádio local.

A torcida comprou o barulho. Veio com a mesma garra e vontade que vinha nos bons tempos ACTC, principalmente quando o Tricordiano, em sua primeira temporada, ficou a uma vitória de subir do terceiro (chamado 2ª divisão) para o segundo nível (chamado Módulo II) do Campeonato Mineiro. O acesso veio no ano seguinte. A vitória de 2 a 0 contra o Unitri, em 2009, chamou a atenção, pelo menos da vizinhança: era uma cidade desunida, mas fanática por futebol. Ser visitante por lá já virara um pesadelo, basta conversar com qualquer jogador que sempre arruma um emprego pelos times de divisões inferiores de Minas.

As vitórias contra o VEC (maior freguês, clubismo presente), de Varginha, maior rivalidade, ajudaram a dar amenidade na bizarra situação de cidade que não mistura seus ricos e pobres. Dividida socialmente até hoje, com os bares e boates da isolada Avenida Deputado Renato Azeredo bombando de gente rica e branca, e a praça lotada nos fins de semana com gente dos bairros mais distantes, Três Corações se via unida nas manhãs de domingo, e não era por religião. A falta de iluminação do acanhado estádio, nunca consertado desde a década de 1990, faz com que qualquer jogo às 16h fique arriscado de terminar no breu. Assim, 10h30 da matina virou hora local de futebol em Três Corações. Ajudou. O domingo matutino era do Galo, e de tarde, já calibrados por cervejas no “Bar do Jaime” ou no “Bar do Boi”, os mais populares nos arredores do palco dos jogos, cada um pode torcer pelo time “da televisão” do coração.

Pobres, ricos, brancos, pretos, do centro, da periferia, do Santa Teresa, do Cinturão Verde, da Chácara das Rosas. Todos ao Elias Arbex. Uma cidade média que parecia experimentar tudo de ruim de ser pequena (falta de emprego, investimento, cultura e lazer) e algumas mazelas de ser grande (violência, desigualdade social, desunião) se unia e via a esperança através do futebol. Um grito de reconhecimento perante Minas. Algo a mais a se orgulhar do que o mala do Pelé. Meninos de bairros pobres fundaram a Galofúria, torcida organizada, que faz uma festa linda e diverte senhores de famílias tradicionais. Num passe de mágica, antes, durante e depois dos jogos, os ricos até se orgulham dos pobres.

Torcida Galofúria reunida na Praça Odilon Rezende, antes do jogo final contra o Araxá. Foto: Portal MaisTC.

Ainda há, mesmo dentro do estádio, uma clara divisão. Os mais antigos, saudosos daquela Três Corações dos anos 1970, sentam à direita na arquibancada, onde antes ficavam as cadeiras com nome das mais conhecidas personalidades tricordianas. E chamam o time de Atlético. Para eles é a continuação de uma tradição futeboleira do local. É aquela camisa vermelha que ainda luta. Os mais jovens ficam à esquerda, perto do bumbo, da fumaça, dos bandeirões, da bagunça. E chamam o time de Tricordiano. Mal sabem, ou querem saber, de Atlético. A tradição está no jogo da semana passada (ou na sensacional vitória por 5 a 4 contra o Uberlândia no mês passado, quando o time virou um jogo que estava 4 a 0 e a cidade viveu um domingo de puro êxtase).

Todos, junto com os bêbados do alambrado, cantam pelo Galo. Sem parar. O tal do “Vamos subir Galoooo” virou quase um mantra que parecia ecoar por qualquer bairro, rico ou pobre, da cidade.

Ecoou tanto que o Galo subiu.

o gol

Tricordiano 1×0 Araxá, o jogo do acesso. Foto: Jornal Araxá.

O cruzamento veio pela direita, o zagueiro do Araxá empurrou Rudimar, mas de nada adiantou. O Rudigol resvalou de cabeça e conferiu. O tento aos dois minutos da segunda etapa deu ao Tricordiano a chance de disputar, 22 anos depois, a primeira divisão do Campeonato Mineiro. Jogar contra Atlético Mineiro e Cruzeiro mais de vinte anos depois. Ter um jogo transmitido pela TV quando ninguém mais lembra quando foi o último. Voltar a ter um clássico contra um time de Varginha, agora o “poderoso” Boa, da Série B do Brasileiro. E a cidade viverá um 2016 um pouco mais unida, ainda que seja só por 90 minutos por semana. O futebol talvez seja um ensinamento para o convívio nas cidades menores. Se pensa muito em urbanismo e sociologia urbana dos grandes centros, se fala muito em “pensar a cidade”, mas esquece-se que pequenos e médios municípios também enfrentam seus problemas. E que a cultura de lá também se manifesta dentro de uma cancha de futebol.

E o Pelé? Filho mais ilustre da cidade, só visitou Três Corações duas vezes nesse meio tempo. Desconhece essa história toda, que é só a visão de um jornalista criado por lá. Na última visita, para inaugurar uma bela casa, reconstituição da que nasceu, Pelé pareceu ficar tocado de verdade. Usa sempre da piada/artifício de que tem três corações para aguentar as emoções da vida. Ele não sabe, e nem é obrigado a saber, o que se passa com o time, o que se passa com seus conterrâneos. Se opinasse, provavelmente diria bobagem.

Nada contra Pelé. Que ele, sua experiência, e principalmente a FIFA e seus padrões passem longe do Elias Arbex, mais que arena, espaço de convivência de uma cidade que parecia não se encontrar. E se acha em cânticos, bandeiras, sinalizadores e gente pendurada no alambrado. Não é o tal ódio eterno pelo futebol moderno. É que Rudimar é bem maior que o Pelé.


Publicado originalmente no Puntero Izquierdo, que é uma revista digital de publicação de histórias de futebol.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Thales Machado

jornalista, sub-editor de esportes nos jornais O Globo e Extra.

Como citar

MACHADO, Thales. Não é ódio pelo futebol moderno, é que o Rudimar é maior que o Pelé. Ludopédio, São Paulo, v. 117, n. 3, 2019.
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