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“Não se diz não ao Barcelona”

Marco Sirangelo 8 de março de 2019

Sir Bobby Robson disse essa frase ao assumir o duro trabalho de substituir Cruyff como treinador culé em 1996. Não sei ao certo se Sir Bobby foi o primeiro a dizer isso, mas a expressão já se tornou lugar-comum, exaustivamente repetida por agentes e jogadores em especulações durante as janelas de transferências. Não importa a nacionalidade, todos desejam “realizar o sonho” de jogar pelo Barça.

De alguma maneira, o slogan Mais que um clube, adotado de forma mais frequente no início deste século, realmente tomou conta do que antes parecia ser apenas um clube de futebol. Dificilmente qualquer discussão sobre o FC Barcelona se restringe somente ao que o clube representa para o esporte. Frequentemente são levantados uma série de valores associados com a marca, sejam eles de exaltação à cultura catalã, ou de constantes inovações, realizadas dentro ou fora de campo.

Slogan “Més que un club” presente no estádio Camp Nou, Barcelona, 2014. Foto: Wikipedia.

Em seu discurso na Conferência de Futebol de Yale, Marta Plana, membra do conselho e responsável pelo Barça Innovation Hub, deixa muito claro que todo o clube é comprometido com uma cultura de excelência, que busca criar impacto global, apesar de carregar os extensos valores locais. De fato, o mundo todo parece acreditar nisso, e é inegável o sucesso que o Barcelona obteve com essa narrativa. Porém, todas essas raízes frequentemente repetidas pelo clube, tanto em contexto institucional, quanto futebolístico, merecem ser melhor investigadas.

Ferran Soriano, hoje CEO do Manchester City, detalhou em seu livro A bola não entra por acaso boa parte do processo de modernização de gestão iniciado em 2003 que modificou por completo o Barcelona. Junto com o candidato à presidência do clube Joan Laporta, Sandro Rosell e Mark Ingla, Soriano era parte fundamental de um grupo de profissionais de mercado, em sua grande maioria catalães, que buscavam comandar o clube após graves crises dentro e fora de campo.

Como demonstra Graham Hunter em seu livro Barça, no momento das eleições de 2003, o clube não vencia um troféu desde 1999, possuía dívidas enormes e receitas em queda – resultados de um instável momento político após o fim de 22 anos de presidência de Josep Lluís Núñez. Enquanto o Real Madrid desfilava seus galácticos, o Barcelona iniciava o Século XXI perdendo espaço para os emergentes Valência e Deportivo.

Ao vencerem as eleições, Laporta e seu grupo iniciaram um processo lento de reconstrução do clube, principalmente sob o ponto de vista financeiro. Inspirados pelo Manchester United, reuniram esforços para que as fontes de receitas pudessem ser diversificadas e os custos operacionais reduzidos. Dentro de campo, o time para o início da temporada 2003-04 era caro e envelhecido. Apostando no ainda inexperiente treinador holandês Frank Rijkaard, o time foi pouco reformulado, cabendo à nova diretoria assumir prejuízos ao se livrarem de contratações frustrantes de temporadas passadas, como Riquelme, Geovanni, Bonano e Fábio Rockemback. Os grandes esforços financeiros foram voltados para a contratação de Ronaldinho, campeão do mundo em 2002, mas vindo de duas temporadas irregulares pelo PSG.

É importante ressaltar que naquele momento, grande parte da narrativa hoje constantemente carregada pelo Barcelona não era utilizada. Também não havia fé nas crias de La Masia, muito menos Tiki-Taka. Grande parte do que o FC Barcelona representa hoje não existia há 15 anos. O que existia era um clube tradicional, porém extremamente instável política e financeiramente, além de frágil dentro de campo.

Isso começou a mudar no primeiro semestre de 2004. Após um péssimo início de temporada, Rijkaard finalmente acertou o time, terminando a temporada sem títulos, mas com boas perspectivas. Diante da melhora financeira obtida nesse ano, havia para o planejamento da temporada seguinte a possibilidade de pagar boa parte das dívidas, melhorando, assim, a situação do clube no médio prazo, mas limitando os investimentos no futebol. Porém, o moderno grupo de gestão decidiu por utilizar uma estratégia arriscada – investir pesado no time de futebol, confiantes de que com os bons resultados alcançados no futuro, as receitas seriam alavancadas de forma substancial.

Ou seja, após mais um ano de insucessos no futebol, o clube decidiu que o mais importante era levantar troféus e, deste modo, não pouparia esforços para isso. Esse roteiro é, na verdade, um verdadeiro clichê quando analisamos gestão de futebol, principalmente no Brasil. O que diferencia o Barcelona da maioria é que dessa vez essa estratégia deu muito certo, como resultado de uma extensa reformulação em seu elenco.

Liderados por Ronaldinho, o novo time encantou, voltando a vencer a Liga e aparecer com destaque na Europa. A temporada seguinte coroou de vez a volta da boa fase, com o bicampeonato nacional e a conquista da Liga dos Campeões. Em dois anos, o Barça passou de um clube problemático ao melhor do mundo. Não somente, a forma alegre com que jogavam os comandados por Rijkaard representava uma ruptura do futebol mais pragmático praticado por alguns dos times vencedores naquele início de século, como a Grécia, o Porto, o Once Caldas e até mesmo o Brasil de 2002.

Assim como ocorreu com o Dream-Team de Cruyff em 1992, o Barça não somente venceu, como o fez praticando bom futebol, algo que não acontecia com tanta frequência, apesar de bons momentos com Van Gaal e Robson no comando técnico. Por viver um momento de grande reconstrução, a associação entre o clube e o jogo vistoso se tornou evidente e foi usada como trunfo comercial, evidenciada pelo enorme aumento na base de torcedores em mercados emergentes, principalmente na Ásia.

Os anos seguintes foram de consolidação do poderio comercial do Barcelona, que passou de 13º em 2004 para 2º no posto de clube mais rico do mundo, de acordo com o Football Money League, relatório anual publicado pela consultoria Deloitte. Dentro de campo, porém, o time demonstrava sinais de desgaste, resultando em outra reformulação realizada no início da temporada 2008-09, outra vez muito bem-sucedida. Com o antigo ídolo Pep Guardiola no comando técnico, o Barcelona atingiu o auge. Fazendo uso de uma série de jovens das categorias de base e alçando Messi, Xavi, Iniesta e Puyol a estrelas mundiais, o clube viveu o período mais vitorioso de sua história, com 14 troféus conquistados nas cinco temporadas seguintes.

Após suceder Laporta como presidente em 2010, Sandro Rosell aos poucos foi rompendo com o antigo grupo de gestão. Apesar de alguns bons acordos comerciais firmados, como por exemplo o polêmico primeiro patrocínio máster da história do clube, sua administração ficou marcada por negociações pouco transparentes, tais como a contratação de Neymar, ocasionando ruídos e turbulências políticas em sua administração, resultando em sua renúncia em 2014. Antes disso, o Barça já havia perdido Guardiola, esgotado após anos de sucesso no futebol.

Comemoração dos jogadores do Barcelona após o título no Mundial de Clubes de 2011. Foto: Wikipedia.

A saída de Pep marca outro momento chave para o clube. Ao deixar seu antigo auxiliar, o também catalão Tito Vilanova, responsável pelo time, tanto Guardiola quanto o Barcelona imaginavam que todo o legado construído ao longo desse período seria mantido. Naquele momento, apenas 8 dos 25 jogadores que entraram em campo na temporada 2012-13 não haviam passado por La Masia. O Tiki-Taka também vivia seu auge, simbolizado não só pelo clube catalão, mas também pelos seguidos títulos obtidos pela seleção espanhola entre 2008 e 2012.

O modelo adotado era infalível. O Barça realmente era mais do que um clube, era capaz de vencer tudo e encantar o mundo usando em sua maioria atletas e treinadores catalães, todos comprometidos com um sistema de jogo local. A identidade culé estava finalmente construída, sem que fosse necessário gastar milhões para atrair os maiores talentos do mundo, característica principal de seu grande rival Real Madrid.

Porém, o que vimos nos anos seguintes foi uma grande ruptura nessa identidade. Por motivos de saúde, Vilanova não conseguiu ter sequência no comando técnico, e foi, até o momento, o último treinador catalão do clube. Após uma temporada fraca no comando do argentino Tata Martino, Luis Enrique assumiu e obteve grande sucesso ao fazer a tripleta em 2014-15. Porém, nesse momento era perceptível a diferença na forma de jogo da equipe, mais direta do que nos tempos de Guardiola. Além disso, uma série de estrangeiros já compunham o elenco, tais como Claudio Bravo, Rakitic, Neymar, Suárez e Mathieu.

Sucessor de Luis Enrique, Ernesto Valverde foi contratado por se encaixar em critérios pré-estabelecidos pela direção do clube, sendo o principal deles ter conhecimento prévio do funcionamento do clube. Por se julgar tão único, o Barcelona exige uma adequação a todos estes valores, mesmo que eles existam há relativamente pouco tempo. Valverde, por exemplo, teve uma rápida e não muito relevante passagem pelo clube nos tempos de jogador e nunca foi um treinador de primeira linha, sendo identificado com os bascos do Athletic de Bilbao e com algum sucesso no futebol grego.

Além disso, o Barça foi o clube que mais gastou em contratações na temporada 2017-18, fazendo uso de quase € 360 milhões, o recorde histórico de investimento em uma única temporada, seguindo o site Transfermarkt. Para a temporada 2019-20, que nem sequer começou, já foram gastos mais de € 87 milhões em dois jogadores, o brasileiro Emerson e o holandês de Jong. No atual elenco, diferentemente do período de Guardiola, apenas 7 dos 23 jogadores que jogaram na Liga nessa temporada tiveram passagem por La Masia, um número bastante comum aos grandes clubes europeus e inferior, por exemplo, aos de Real Madrid e Bayern de Munique.

A narrativa que acompanha o Barcelona é interessante e agrega imenso valor à marca. Porém, o clube muitas vezes parece estar cercado por valores que, ao mesmo tempo em que foram forjados muito mais recentemente do que parece, podem estar se tornando dogmas. O que vemos atualmente é um time que pratica um futebol pouco atraente, à exceção de seu grande craque, Lionel Messi, cada vez mais responsável pelas vitórias do time, além de pouco espaço para as promessas da base. Revisitar o seu próprio DNA Barça, afrouxando alguns valores antes que o clube se torne refém de si próprio, me parece uma saída muito mais viável do que esconder-se atrás de uma narrativa não tão difícil de se questionar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marco Sirangelo

Marco Sirangelo é Mestre em Gestão Esportiva pela Universidade de Loughborough (Inglaterra) e Bacharel em Administração de Empresas pela FGV, foi Analista de Marketing do Palmeiras entre 2009 e 2010 e Gerente de Projetos da ISG, de 2011 a 2016. Atualmente é Head de Projetos na consultoria OutField.Twitter: @MarcoSirangelo

Como citar

SIRANGELO, Marco. “Não se diz não ao Barcelona”. Ludopédio, São Paulo, v. 117, n. 10, 2019.
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