A antropologia vem se dedicando, nos últimos 30 anos, à análise de diversas questões relacionadas ao fenômeno futebol enquanto uma prática cultural permeada de diferentes experiências e significados, e presente na vida social de muitos brasileiros. Em parte dessa trajetória, o esforço dos pesquisadores voltou-se à problematização de certas perspectivas analíticas que encaravam o futebol apenas enquanto um instrumento alienante, ideológico e de controle social – um ópio do povo – que aludiria a uma falsa coesão interclasses. Desse enfrentamento, surgiram modelos e abordagens importantes no universo das ciências sociais, entre elas, principalmente, o estudo do futebol como um drama social, proposto pelo antropólogo Roberto DaMatta.
No novo milênio, um dos desafios colocados a uma antropologia do esporte é retomar criticamente a essa produção anterior, em diálogos inovadores com as diversas tradições disciplinares das ciências sociais. Um tema contemplado é a diversidade de práticas futebolísticas ativadas cotidianamente nos espaços urbanos das cidades brasileiras: tanto as partidas de futebol profissional, como também o futebol de várzea, futebol de areia, peladas, futebol de rua, etc.
Dentro desse universo de práticas futebolísticas, destaco, nesse breve artigo, o processo de formação e o processo de seleção de jovens jogadores, temas inclusive abordados por produções midiáticas recentes, entre elas: realitys show (Joga 10, Joga Bonito, Desafio Mundial Pepsi), o documentário “Ginga” e o filme de ficção “Gol”.
Embora haja ainda no senso comum uma visão romântica da “fabricação” do jogador de futebol no Brasil, que teima em reconhecer nos campos de futebol de várzea os verdadeiros e únicos “celeiros de craques”, a realidade posiciona-se, mais uma vez, atrelada à modernização. Essa nova etapa é perceptível na proliferação de escolinhas de futebol, modalidade que congrega iniciantes, jovens jogadores, ex-jogadores e profissionais da Educação Física, onde a prática futebolística é ensinada como um “saber” a ser aprendido, com base em dispositivos inspirados no treinamento dos jogadores profissionais. Porém, a escolinha não se restringe à formação de um jovem jogador, pois as escolinhas se revelam, também, uma possibilidade de acesso de jovens interessados aos clubes1.
Paralelo ao investimento em novos métodos de seleção de jovens jogadores, preteriu-se formas mais tradicionais como as peneiras, que, diferentes das escolinhas, não têm como função formar jogadores. Sua finalidade é selecionar, a partir dos testes realizados com inúmeros jovens, aqueles que se sobressaem nas avaliações e que têm potencial para ingressar nas categorias de base dos clubes2.
Processo tradicional de seleção de jovens jogadores, as peneiras têm um caráter mais espontâneo: numa entre tantas outras formas, os garotos se cadastram por telefone ou nas sedes do clube e esperam um tempo determinado por uma convocação para testes preparados pelos profissionais responsáveis dos clubes. As peneiras, apesar de serem realizadas constantemente, promovem a inserção de poucos garotos nas categorias de base3 dos departamentos amadores4 dos clubes.
As peneiras não constituem hoje a principal forma de seleção de jovens jogadores, pois poucos são selecionados; e destes, alguns não permanecem nos clubes, paulatinamente dispensados nas etapas seguintes. Ainda sim, as peneiras continuam a mobilizar, semanalmente, jovens de várias idades em torno do mesmo objetivo: tornar-se jogador de futebol profissional. Com uma lógica própria e articulando formas de sociabilidade específicas, trata-se de uma prática futebolística que também confere novos sentidos e representações ao espaço urbano.
A partir de pesquisas sobre peneiras e escolinhas, duas práticas futebolísticas entre muitas outras (peladas, futsal, futebol de várzea, etc), poderemos observar os processos de interação e de sociabilidade vivenciados por milhares de jovens em todo o Brasil, como também, apreender certas representações que configuram o imaginário social e que permeiam as dimensões socioculturais do futebol brasileiro.