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“Negro, mais de dois, não serve”: o caso do Palestra

Felipe Matos 21 de setembro de 2020

Há poucos dados disponíveis sobre o efêmero Palestra Football Club, de Florianópolis, mas apesar da curta trajetória, sua história o credencia como um interessante objeto de estudo aos interessados em pesquisar a inserção do negro e as relações de classe no futebol catarinense nos anos 20.

Nos jornais da capital catarinense encontra-se o registro de ao menos três jogos do Palestra, três amistosos contra o Avaí Futebol Clube, todos ocorridos em março de 1924: Palestra 0 x 1 Avaí (02/03/1924), Palestra 2 x 0 Avaí (09/03/1924) e Palestra 0 x 3 Avaí (23/03/1924).

Um dos nomes mais importantes do clube palestrino foi Jovita Lisboa, seu 1º secretário. Nascido em Florianópolis em 10 de abril de 1895, filho de Luiz Francisco Lisboa e Arminda de Sousa, casado com Maria Pedrita Ortiga, Jovita trabalhava como auxiliar da Livraria Moderna até tornar-se funcionário público, atuando como coletor do Tesouro do Estado.

Ele foi membro da Liga Náutica de Santa Catarina, se dedicando ao remo pelo Clube de Regatas Aldo Luz; esteve entre os fundadores do Clube Recreativo Annita Garibaldi, do bairro José Mendes, em 1919; e, foi orador do Clube 21 de Setembro.

No mundo das letras, Jovita atuou como jornalista n´O Estado e foi escritor, membro do Centro Catarinense de Letras, espaço fundado em oposição à elitista Academia Catarinense de Letras e que aceitava entre os seus membros intelectuais mulheres e negros.

No período em que o Palestra surgiu nos campos de Florianópolis, a popularização do futebol expôs nacionalmente a interseccionalidade das discussões de classe e raça no esporte. Vale lembrar que esta era uma época em que o  próprio presidente da República, Epitácio Pessoa, sugeriu que negros não representassem o Brasil no campeonato Sul-americano de 1921. No Rio de Janeiro, o Vasco da Gama, repleto de jogadores negros, foi campeão da 1ª divisão carioca em 1923, causando protestos de outras equipes. Ao se recusar a jogar sem seus atletas negros e pobres, o Vasco foi excluído da liga carioca, protestando com a famosa “Resposta Histórica”, em 7 de abril de 1924.

Cinco meses após o manifesto vascaíno, Jovita publicou no jornal O Estado (09/09/1924, p.2) o oficio que endereçou ao presidente da Liga Santa Catarina de Desportos Terrestres (embrião da Federação Catarinense de Futebol), transcrito a seguir:

Florianópolis, 8 de setembro de 1924.

Fonte: reprodução jornal O Estado, 09/09/1924, p.2.

Ilmo Sr. Presidente da Liga Santa Catarina de Desportos Terrestres. Fomos informados particularmente que, em sessão realizada no dia 4 do corrente, foi rejeitada a entrada deste clube para o seio dessa Liga.

Estranhamos, Sr. Presidente, que isso tivesse acontecido depois das promessas formais feitas por V. S., não só a membros da Diretoria deste clube, como também ao Sr. Abelardo Luz, Superintendente Municipal, da nossa admissão.

Essa Liga não sabe, ou não quer saber, o que significa a palavra desporto. Pelo menos assim o dá a demonstrar.

O desporto é nobre, pois que é um dos grandes fatores para o desenvolvimento de uma raça; mas, VV.SS. não entendem assim. VV. SS. querem cercear os que não são protegidos da sorte, os que não tiveram um berço de ouro ao nascer, os que não tem padrinhos e que, para ganharem a vida, sujeitam-se ao trabalho durante o dia, de praticarem o desporto, de procurarem também um divertimento que os eduque e ao mesmo tempo os desenvolva, tornando-os fortes para um dia, se necessário for, defender nossa Grande Pátria ao lado dos senhores brancos [grifo no original], que ora os escorraçam como indignos.

Estranhamos, sr. Presidente, mas não lamentamos a nossa exclusão dessa tão seleta [negrito presente no texto original] Liga; talvez assim seja melhor, pois que segundo a opinião de um dos membros da Diretoria dessa seleta Liga, NEGRO, MAIS DE DOIS, NÃO SERVE [grifo no original].

É bem verdade que os nossos jogadores são negros, porém, são negros que vivem do seu trabalho honrado, o que não acontece, talvez, com muitos brancos que fazem parte dessa seleta Liga e por ela são glorificados.

Não seriam somente os jogadores do nosso clube os únicos negros a fazerem parte dessa seleta Liga, pois que no seio de todos os Clubes que a compõem tem negros.

Sr. Presidente, pedimos nos devolver, o quanto antes, o exemplar dos estatutos e o dinheiro que pagamos, segundo reza o próprio recibo passado pelo Sr. Tesoureiro, como JOIA [grifo no original] para a admissão desse clube.

Aproveito a oportunidade para apresentar a essa SELETA [grifo no original] Liga, os protestos de alta estima e consideração.

O 1º Secretário,

Jovita Lisboa.

Na ocasião, a diretoria da Liga Santa Catarina de Desportos Terrestres era composta por Luiz Alves de Souza, presidente, funcionário público; Padre David Muller S. J., vice-presidente, diretor do Ginásio Catarinense; João José de Cupertino Medeiros, secretário geral, bancário; Amadeu Horn, adjunto do secretário, comerciante; o agrônomo Aguinaldo José de Souza, 1º tesoureiro, casado com a filha do almirante  e deputado Durval Melchíades de Souza; e, o tenente João Benício Cabral, 2º tesoureiro. O governador Hercílio Luz era considerado presidente nato e o superintendente municipal de Florianópolis, Abelardo Wenceslau da Luz, presidente benemérito.

O Palestra Footbal Club era presidido por um tipógrafo do jornal República, o paranaense Orestes Munhoz; Edmundo Simone, filho do proprietário da Livraria Moderna, era o vice-presidente; Jovita Lisboa era o 1ª secretário; Fernando Joaquim de Souza, 2º secretário, era membro do Centro Cívico e Recreativo José Boiteux, que oferecia cursos noturnos para negros; Layido Machado era o 1º tesoureiro; o sargento Bruno Lima era o 2º tesoureiro; e, João Nascimento de Souza, o procurador do clube, era membro da Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.

Um mês depois de não ter sido aceito pela Liga, o Palestra se juntou aos clubes Atalaia, Anhatomirim, Catarinense, Instituto Comercial e Figueirense (que havia abandonado a Liga após ser punido por escalar atletas irregularmente) para criarem a Associação Catharinense de Sports, entidade que pretendia romper com a hegemonia da Liga na organização do futebol, mas que findou em março de 1925, antes mesmo de organizar o seu primeiro campeonato.

Neste caso, há mais perguntas do que respostas. Quem eram os jogadores do Palestra, onde trabalhavam, qual a relação com os atletas negros que atuavam em outras equipes, qual o cenário sociocultural em que o futebol se popularizou em Florianópolis, qual papel desempenhado pelos demais clubes e por sua entidade máxima nas tentativas de manutenção ou modificação da cultura elitista, dos espaços de distinção social, num momento em que a cidade e o país discutiam a modernização de práticas e costumes?

Entre as tantas histórias a serem escritas no sub-registrado futebol catarinense, a trajetória do clube formado por negros e trabalhadores florianopolitanos destaca-se por desnudar os conflitos sociais e raciais e a tentativa de desenvolver estratégias de resistências, nem sempre vitoriosas, mas sempre rebeldes. O plano da Associação Catharinense de Sports terminou em 1925. O Palestra não levou muito tempo até desaparecer. Jovita Lisboa morreu em Florianópolis, em 4 de junho de 1981. Os conflitos de classe e raça no futebol, como é notório, ainda persistem.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Felipe Matos

Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É pesquisador da Scientia Consultoria Científica, empresa que desenvolve projetos de estudo, preservação e valorização do patrimônio histórico, arqueológico, paisagístico e cultural. Criador do coletivo Memória Avaiana, que reúne torcedores pesquisadores da história do Avaí F.C.

Como citar

MATOS, Felipe. “Negro, mais de dois, não serve”: o caso do Palestra. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 47, 2020.
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