111.8

Nelson Rodrigues, o Rei e Mbappé: 1958 e 2018. Recordes que vem e que vão

O genial Nelson Rodrigues (1912-1980), que dispensa apresentações, dissecou em suas crônicas semanais do jornal Manchete Esportiva os personagens principais das vitórias brasileiras no mundial de 58. As análises foram precedidas temporalmente pelas clássicas (leia-se: imortais) crônicas sobre o “complexo de vira-latas” (31/05/1958) e da primeira crônica de Nelson sobre Pelé (28/02/1958), após acachapantes quatro gols marcados pelo rei de 17 anos em pleno Maracanã, na vitória do Santos sobre o América (5×3 em 26/02/1958). Tais crônicas são de fundamental importância para o conjunto da obra do autor, assim como constituem pilares prévios das análises feitas no mundial da Suécia.

Na primeira destas, no clima pré-mundial, Nelson consolida um mito discutido até os dias de hoje, cujo resumo pode ser entendido como nossa subserviência voluntária perante as potências mundiais. Um alerta é dado ao escrete canarinho; se confiarmos nas nossas capacidades, com uma autoestima mínima, o caneco seria nosso. E Nelson acertou. Na segunda crônica citada, a semente para a construção da imagem de rei do futebol fora plantada para florescer vigorosamente até o último dia da carreira de Pelé.

Nas análises das partidas do mundial, Nelson Rodrigues não escondia e fazia questão de ressaltar as dificuldades em se escolher apenas um “personagem da semana”: “é um problema escolher o meu personagem da semana”1, ressaltava após a primeira vitória do Brasil no campeonato. Em sua última crônica sobre o mundial, destaca: “Eu já disse que, no formidável e harmônico esforço do escrete, todos parecem merecer uma glória igual. É dificílimo destacar este ou aquele”². Não é de admirar a indefinição do autor, pois figuras como Gilmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando, Nilton Santos, Zagallo, Didi, Pelé, Garrincha, Zito, Mazzola, Pepe, Vavá, entre outros, formavam um escrete épico.

1958
Seleção Brasileira em 1958. Foto: Divulgação.

Logo no primeiro jogo, 3 x 0 sobre a Áustria, onde o destaque fora dado por Nelson a Gilmar, em atuação “espetacular e imbatível”3, que assegurou a meta e deu ares de goleada a um difícil jogo. Após um silêncio sobre o jogo duro terminado em 0 x 0 contra a Inglaterra, destaca-se, em seguida, o terceiro e último jogo da fase de grupos do mundial: Brasil x URSS, onde o personagem escolhido a muito custo pela disponibilidade de atuações incríveis foi Garrincha, que, segundo o autor, “via nos russos a inocência de passarinhos”4, comandando com suas danças dionisíacas uma vitória sólida por 2 x 0, na estreia da dupla Pelé e Garrincha em copas, dupla aliás que jamais saiu de campo derrotada. Certamente, nesta passagem, Nelson Rodrigues faz uma alusão ao fato de Garrincha ser fascinado por passarinhos, colecionador e caçador, com suas arapucas e gaiolas. Assim, os russos seriam “presa fácil”, assim como o eram os passarinhos que Garrincha caçava desde a infância.

Naquele mundial disputado por dezesseis equipes, os times classificados na fase de grupos “saltaram” diretamente para as quartas de final, onde em um jogo que se previa facilidades tornou-se demasiadamente sofrido para o Brasil, com direito ao primeiro gol de Pelé em Copas do Mundo, 1 x 0 em cima do País de Gales, dono de uma defesa exemplar. É digna de nota a crônica de Nelson sobre a partida, pois, o autor “corneta” sem pudor o craque e artilheiro da copa de 1938, Leônidas da Silva, que atuava como renomado e polêmico comentarista esportivo na época. “Leônidas que vive a negar os méritos do escrete […]. De resto, que autoridade tem Leônidas?”5, foram algumas de suas frases destiladas em desfavor do “diamante negro”.

Em seguida, os comentários acerca da semifinal da copa contra a até então poderosa seleção francesa não deixam escapar um entusiasmo latente. Sobrou até para o proeminente político francês Charles DeGaulle, que foi parodiado em relação ao placar de 5 x 2 para o Brasil: segundo Nelson, os franceses perderam “degaulleada”, mesmo a despeito de um árbitro que “bateu, como quem bate carteiras, dois gols e dois pênaltis do Brasil”6. O personagem da semana foi Vavá, que nos versos sempre hiperbólicos e originais do autor foi “um fabuloso símbolo pessoal e humano do triunfo”7, representante máximo da garra que, a despeito da violência da marcação francesa, simbolizou o “escrete da coragem”.

O score astronômico da semifinal repetiu-se na final, 5 x 2 nos suecos donos da casa. Até hoje, o maior placar de uma final de copa do mundo, seguido pelas finais de seis gols de 1930, 1938, 1966 e 2018. A primeira vez que um país venceu em continente diferente do seu, a primeira copa televisionada (ao vivo somente para os suecos).

No limiar das memórias, dois pontos ligam o campeonato mundial de 1958 e o mundial de 2018, temas especialmente contidos nas últimas duas crônicas de Nelson do mundial da Suécia. Sessenta anos depois, o recorde de Pelé foi igualado pelo promissor talento de Mbappé. O jovem francês de dezenove anos se igualou a Pelé (na época com dezessete anos) como o jogador de idade inferior a vinte anos a marcar em uma final de copa do mundo. Nas manchetes pós Copa de 2018 só se falou do recorde e da comparação inevitável com o maior jogador de todos os tempos. Os dois (Pelé e Mbappé) trocaram mensagens nas redes sociais, provavelmente por intermédio de seus assessores. O rei parabenizou Mbappé pelo feito e brincou: “Se o Kylian continuar a bater os meus recordes assim, eu vou ter que tirar a poeira das minhas chuteiras novamente…”. O astro francês retribuiu cordialmente com a frase “o rei sempre continuará rei”.

Lyon 2x1 Paris. Foto C.Gavelle
Mbappé arranca com a bola. Foto: C. Gavelle.

O outro ponto de ligação entre as copas citadas e os recordes une brasileiros e franceses em finais de copa do mundo e reacende um debate ainda não superado. Se trocássemos o nome de Pelé pelo de Mbappé nesta frase de Nelson Rodrigues na crônica após a vitória final sobre a Suécia e publicássemos nos nossos jornais de maior circulação, ninguém notaria a referência, a não ser pela idade: “Como esquecer que foi Pelé, um garoto de cor, dos seus 17 anos, quem nos arrancou, ontem, de nossa agonia e da nossa morte? ‛garoto de cor’, disse eu”9, ressalta Nelson Rodrigues, enfatizando o gol de Pelé contra o preconceito racial.

Muito foi escrito sobre a multiplicidade étnica da seleção francesa de 2018, sendo o craque da camisa dez Mbappé o foco das atenções e o símbolo representante dos descendentes de imigrantes que compõem o selecionado “le bleu”. Pelé foi o primeiro negro a marcar um gol em final de copa do mundo, Pogba e Mbappé os atuais. Apesar dos avanços na pluralidade racial e cultural de diversos selecionados pelo mundo (tais como Suíça, França, Alemanha), voltamos, sessenta anos depois a falar sobre os mesmos “avanços”, sessenta anos depois uma seleção multiétnica toma o centro das atenções, para além do futebol praticado, justamente por ser multiétnica. Trata-se de algo que há muito já deveria estar superado. Deviríamos estar falando do futebol da seleção francesa, e, de sua multiplicidade étnica sem alarde, sem destaque, como algo natural. Como ainda não superamos barreiras tão arcaicas, o assunto permanece extremamente caro, necessário de ser exposto e exaltado, uma vez que dos setenta e sete gols registrados em finais de copa do mundo (sem contar as penalidades de 1994 e 2006) somente seis foram registrados por pessoas negras (3 de Pelé, 1 de Jairzinho, 1 de Pogba e 1 de Mbappé). Destes, todos os gols marcados nestes contextos foram assinalados por brasileiros ou franceses. Avançamos nas quatro linhas, mas e fora delas? A composição multi-étnica das seleções é uma consequência direta do fluxo de pessoas migrantes oriundo da globalização e dos conflitos bélicos em andamento no planeta. Contudo, o mundo da bola pode nos dizer muito sobre intolerâncias, permanências, transformações e disputas de identidades nacionais.


Notas

¹ RODRIGUES, Nelson. Meu personagem da semana: Gilmar [1958]. In: RODRIGUES, Nelson. O berro impresso das manchetes: crônicas completas da Manchete Esportiva 55-59. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 393.

2 ______. Meu personagem da semana: Didi [1958]. In: RODRIGUES, Nelson. O berro impresso das manchetes: crônicas completas da Manchete Esportiva 55-59. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 406.

3 ______. Meu personagem da semana: Gilmar [1958]. In: RODRIGUES, Nelson. O berro impresso das manchetes: crônicas completas da Manchete Esportiva 55-59. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 393.

4 ______. Meu personagem da semana: Garrincha [1958]. In: RODRIGUES, Nelson. O berro impresso das manchetes: crônicas completas da Manchete Esportiva 55-59. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 397.

5 e 9______. Meu personagem da semana: Pelé [1958]. In: RODRIGUES, Nelson. O berro impresso das manchetes: crônicas completas da Manchete Esportiva 55-59. Rio de Janeiro: Agir, 2007, ps. 399-400.

6 e 7 _____. Meu personagem da semana: Vavá [1958]. In: RODRIGUES, Nelson. O berro impresso das manchetes: crônicas completas da Manchete Esportiva 55-59. Rio de Janeiro: Agir, 2007, ps. 402-403.

8 ______. Meu personagem da semana: Gilmar [1958]. In: RODRIGUES, Nelson. O berro impresso das manchetes: crônicas completas da Manchete Esportiva 55-59. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 393.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Matheus Marinho

Graduado em Ciências Sociais e pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FULIA), da Faculdade de Letras da UFMG.

Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

MARINHO, Matheus; CORNELSEN, Elcio Loureiro. Nelson Rodrigues, o Rei e Mbappé: 1958 e 2018. Recordes que vem e que vão. Ludopédio, São Paulo, v. 111, n. 8, 2018.
Leia também:
  • 131.45

    Didi “Folha Seca”, eleito melhor jogador da Copa do Mundo de 1958

    Péris Ribeiro, Wesley Barbosa Machado
  • 125.20

    Mário Filho e o messianismo de Pelé (1958-1966)(2ª e última parte)

    Denaldo Alchorne de Souza
  • 123.12

    Mário Filho e o messianismo de Pelé (1958-1966)(1ª parte)

    Denaldo Alchorne de Souza