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Neymar e o estilo brasileiro de futebol

As atuações de Neymar e Ganso no Santos têm provocado o ressurgimento do debate entre futebol-arte, que seria nossa essência, e futebol-força, que seria o emblema do futebol europeu. Geralmente este debate só aparece quando a seleção brasileira está jogando. Raríssimas vezes ele surge no nível local. Mas o Santos de Neymar e Ganso trouxe o tema à tona. Existiria mesmo uma essência ou um estilo de futebol que seria típico do brasileiro?

Este tema surge a partir de um artigo de Gilberto Freyre no Diário de Pernambuco durante a Copa do Mundo de 1938, chamado “Foot-ball Mulato”. Um dos mais renomados cientistas sociais do Brasil, Freyre escreve que “acaba de se definir de maneira inconfundível um estilo brasileiro de foot-ball; e esse estilo é mais uma expressão do nosso mulatismo ágil em assimilar, dominar, amolecer em dança, em curvas ou em músicas, técnicas européias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto”. O melhor emblema deste estilo naquela época seria Leônidas da Silva.

Neymar no jogo contra a Escócia. Foto: Andre Figueiredo.

Em uma período de consolidação dos estados-nações, dos movimentos integracionistas e nacionalistas no país e da da atuação exemplar do jornalista Mário Filho, amigo de Freyre, a crença no suposto estilo unia um Brasil miscigenado que buscava um sentido de identidade nacional. Além disso, durante 1950 a 1970 o Brasil montou seleções fantásticas, com jogadores extraordinários, tendo vencido três Copas do Mundo. Era a época de ouro do futebol brasileiro, com estádios cheios, os dribles de Garrincha e a consagração definitiva de Pelé como o Rei do Futebol.

De 1970 para cá, tivemos uma geração de craques extraordinários como Zico, Falcão, Junior, Cerezo e Sócrates, ídolos e heróis em seus clubes, mas que não venceram uma Copa do Mundo. Ainda assim, a seleção de 1982 é lembrada como a que jogava a tal essência do nosso futebol. O debate entre futebol-arte e futebol-força, ou de resultados, retorna a cada Mundial e quase sempre em tom de lamento. Até mesmo na conquista do tetra em 1994, parte expressiva da imprensa não reconhecia aquela seleção como sendo “brasileira”. Romário – e um pouco menos Bebeto – era visto como o único exemplar do nosso suposto estilo.

Ora, se de 1970 a 2010 somente a seleção de 1982 teria apresentado o estilo de jogo brasileiro e se hoje o Santos é o único clube do país que estaria jogando desta forma, o que chamamos de “nosso estilo” ou “essência” seria a regra ou a exceção?

Há quem afirme que a derrota da seleção de 1982 implicou em um retrocesso na nossa maneira de jogar futebol. O que teria mudado se tivéssemos vencido em 1982? A geração do Zico teria conquistado um Mundial e, talvez, por conta disso, o próprio Zico não tivesse feito o esforço sobre-humano para jogar em 1986. Mas um dia todos aqueles jogadores iriam mesmo parar de jogar, surgiria um Romário quase como um exemplar isolado e genuíno deste suposto estilo, e teríamos que esperar, como esperamos, algumas décadas até surgir, de uma só vez, jogadores como os Ronaldos e hoje Neymar e Ganso.

Neymar e Ganso são jogadores extraordinários, daqueles que contamos nos dedos na história do futebol. Sobram-lhes recursos técnicos e habilidades corporais. Seria uma heresia para, nós, brasileiros, dizer que eles possuem um estilo universal de se jogar o melhor futebol. Afinal, eles fariam parte desta tradição que seria somente “nossa”, possuidora de um futebol dionisíaco, conforme disse Gilberto Freyre.

Mas talvez fosse o caso de, humildemente, reconhecermos que jogadores extraordinários possuem estilos semelhantes: o estilo extraordinário. O Brasil de Neymar e Ganso também é o Brasil de Obina, Toró e tantos outros jogadores de primeira divisão, muita vezes idolatrados por sua bravura e entrega, mas que não pertencem à galeria dos extraordinários. E talento faz parte das coisas inexplicáveis, indizíveis. Não tem pátria. Por sorte, Neymar e Ganso são brasileiros!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ronaldo Helal

Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979), mestrado em Sociologia - New York University (1986) e doutorado em Sociologia - New York University (1994). É pesquisador 1-C do CNPq, Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (2006). Em 2017, realizou estágio sênior na França no Institut National du Sport, de L'Expertise et de la Performance. É professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi vice-diretor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (2000-2004) e coordenador do projeto de implantação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj (PPGCom/Uerj), tendo sido seu primeiro coordenador (2002-2004).Foi chefe do Departamento de Teoria da Comunicação da FCS/Uerj diversas vezes e membro eleito do Consultivo da Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uerj por duas vezes. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: futebol, mídia, identidades nacionais, idolatria e cultura brasileira. É coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura (www.comunicacaoeesporte.com) e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte - LEME. Publicou oito livros e mais de 120 artigos em capítulos de livros e em revistas acadêmicas da área, no Brasil e no exterior.

Como citar

HELAL, Ronaldo. Neymar e o estilo brasileiro de futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 24, n. 6, 2011.
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