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No reino do medo ou sobre a subserviência no campo de jogo

Luciane de Castro 8 de abril de 2017

Enquanto me preparo para falar sobre medo e subserviência, o mundo toma conhecimento que o presidente ~pessimamente~ eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, acaba de atacar a Síria com cerca de 50 mísseis Tomahwak, como modo de retaliação pelo ataque à população civil com armas químicas e que matou dezenas de crianças.

O erro desta operação dissimulada, ao menos pelo que sabemos até o momento, é que não há confirmação alguma de que tenha sido o governo sírio, o responsável pelo torpe ataque.

Longe de fazer qualquer análise geopolítica, até porque não é minha praia e sou bastante ignorante neste assunto, a notícia da atitude norte americana mudou um pouco o rumo da postagem da quinzena.

Enquanto os mísseis atingiam a Síria, a seleção feminina norte americana jogava um amistoso contra a Rússia. É aquele momento em que o futebol faz um contraponto perfeito aos acontecimentos mais bizarros.

Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha, Brasília, DF, Brasil, 12/8/2016 Foto: Andre Borges/Agência Brasília.   Estados Unidos e Suécia jogam nesta sexta-feira (12), no Estádio Mané Garrincha, pelas quartas de final do futebol feminino na Olimpíada 2016.
Seleção dos Estados Unidos. Foto: Andre Borges/Agência Brasília.

Mas nem sempre é assim. Há histórias realmente lindas e inspiradoras sobre o jogo e seu potencial para parar guerras, dirimir diferenças, impor respeito às minorias. Mas em tantos outros casos, é ferramenta de manipulação nas mãos escusas do fascismo, do mau caratismo, da corrupção, misóginos, homofóbicos e todo tipo de gente fora de moda.

De histórias de resistência que passaram pelos campos de futebol, uma das mais difundidas e conhecidas é a da equipe F.C. Start, formada por parte dos jogadores do Dínamo de Kiev na Ucrânia ocupada, que jogou contra a equipe da Luftwaffe (força aérea nazista) se negando a perder o jogo.

Em tempos atuais, onde o poder se concentra nas ardilosas corporações e seus fantoches políticos, o uso da força se concentra em elementos mais discretos, mas não menos violentos. A retaliação é uma das armas prediletas dos que ocupam espaços de poder. Desta ferramenta se faz uso recorrente e há quem a evite, sempre em nome de “algo maior”.

Dizem que o medo é um sentido necessário e que dele se pode tirar muitas vantagens, sendo a própria preservação da vida uma destas. Ele nos torna mais alertas, mais cautelosos e com menores possibilidades de prejuízo à vida. De fato, sem o medo todos nos colocaríamos invariavelmente em situações de perigo e isso seria um desastre para o equilíbrio da vida no planeta.

Mas…
Tudo tem limite.

Exemplo recente e é a ele que me apego nesta tentativa de frouxa de incutir alguma coragem ou “falta de juízo” em algumas cabeças.

Já há algum tempo que as atletas da seleção norte americana de futebol feminino lutam – e lutam mesmo, não é eufemismo ou sentido alegórico – para que tenham rigorosamente os mesmos direitos que os atletas da seleção masculina.

A premissa é simples: Somos mais vitoriosas que a seleção masculina.

Pra resumir a epopeia: Elas venceram! A pressão, o posicionamento, as exigências, o senso da classe a qual pertencem foram imprescindíveis para que conquistassem seus direitos.
Sem fantasiar, sem alegorias ou leituras ingênuas: Elas LUTARAM!

Outro exemplo? Aconteceu por lá também. As meninas da seleção feminina de hóquei no gelo também resolveram dar um basta na diferença gritante e absurda que permeia o universo da mulher. Às vésperas do mundial, a federação de hóquei pensou “Vamos atrás das meninas da base” e ouviram um NÃO bem bonito.

Sem ter para onde correr, aceitaram as condições das meninas da seleção principal. Simples assim. Detalhes neste e neste link, em matéria do amigo Daniel Barbosa. O mais legal é que rolou um ‘fechamento’ forte entre as mulheres.
Sem fantasiar, sem alegorias ou leituras ingênuas: Elas se UNIRAM!

Enquanto isso, em vários outros lugares deste globo surtado, “o horror! o horror!” que avança rapidamente sobre vidas mais frágeis e desavisadas, mantém o status quo, controla e manipula tudo o que pode, o futebol, inclusive. E no futebol feminino este exercício de poder é mais latente, mesmo que inexistente para as almas polianas.

Onde quer que haja um espaço para o exercício do poder, lá estará um ser disposto a exercê-lo a qualquer preço. E quando abaixamos a cabeça em consentimento, mais abusos acontecem.

Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha, Brasília, DF, Brasil, 12/8/2016 Foto: Andre Borges/Agência Brasília.   Estados Unidos e Suécia jogam nesta sexta-feira (12), no Estádio Mané Garrincha, pelas quartas de final do futebol feminino na Olimpíada 2016.
Jogadoras norte-americanas comemoram. Foto: Andre Borges/Agência Brasília.

Conquistas como as citadas, nos mostram que, onde quer que haja um espaço para o exercício do direito, lá estará um ser disposto a quebrar o ciclo perverso de construção de muros e ampliação de diferenças. Manter-se acomodado dentro de uma situação que privilegia meia dúzia de indivíduos, está LONGE de ser compatível com o futebol.

Não há como desmembrar o caráter coletivo do futebol como as questões da vida ou da sociedade. Silenciar diante das atitudes egoístas de um pequeno grupo denota não só ausência de empatia como também um alto grau de descolamento da realidade.

O medo faz isso. O medo aprecia a ignorância e a inércia e atrasa o desenvolvimento de tudo, inclusive o das mulheres nos esportes. Por um mundo esportivo com mais Joanna Maranhão, Meg Rapinoe e meninas do hóquei no gelo!

No reino do medo, há sempre gente corajosa para confrontá-lo. Vida longa a essas pessoas!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lu Castro

Jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.

Como citar

CASTRO, Luciane de. No reino do medo ou sobre a subserviência no campo de jogo. Ludopédio, São Paulo, v. 94, n. 8, 2017.
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