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Non-League: o outro futebol inglês – parte 2

Sam Hardwicke 4 de maio de 2020

A parte 1 desse texto está na primeira edição da Revista Pelota.

“Futebol para todos”, diz o slogan da Whitehawk Ultras, que começou a seguir o Whitehawk FC, um clube “non-league” baseado em Brighton, a aproximadamente 100km ao sul de Londres, em 2012. O slogan pode levar à seguinte pergunta: para quem não é o futebol? O sudeste da Inglaterra não é o Irã, onde mulheres já foram proibidas de frequentar jogos de futebol. No entanto, o futebol nessa parte do mundo foi sempre um espaço dominado pelos homens. Estou contínua e agradavelmente surpreso com a quantidade de mulheres que eu vejo frequentando jogos na América do Sul, uma prova de quão poucas assistem às partidas na Inglaterra. Isso está mudando, claro, mas o fato é que a maioria dos torcedores nos jogos são homens, e muitas mulheres não se sentem confortáveis, ou não conseguem se sentir bem, com a atmosfera.

O futebol inglês venceu a batalha contra o “hooliganismo”, mas a atmosfera agressiva permanece: torcedores visitantes, jogadores e arbitragem são objetos de intermináveis rios de linguagem pesadas e abusos, enquanto muitos torcedores parecem incapazes de desfrutar qualquer aspecto do jogo ao menos que estejam ganhando. Eu, eventualmente, penso: qual o sentido de gastar seu dinheiro, e seu fim de semana, em algo que parece te causar tanta angústia?

Então, como os Whitehawk Ultras são diferentes? Bem, para começar o seu ethos foca em positividade e em apoiar seu time não importa o que esteja acontecendo no jogo. Quando eles tomam um gol, os torcedores imediatamente cantam “2 a 1, nós ganharemos, 2 a 1” (2–1, we’re gonna win 2–1). Se eles estão perdendo de 3 a 0, então cantam “4 a 3, nós ganharemos, 4 a 3” (4–3, we’re gonna win 4–3), mesmo quando é óbvio que isso não acontecerá. 

Os adeptos do clube também buscam proporcionar uma inclusiva e acolhedora atmosfera para todos, entoando apaixonadamente canções antirracistas, antissexistas e anti-homofóbicas, uma abordagem que eu posso garantir para você, é muito distante das músicas do tradicional futebol inglês. Da mesma forma, eles mantêm o foco na extravagância e no humor, realçado por sua própria versão do clássico inglês “The referee’s a wanker”[1], cantado muitas vezes durante as partidas de cima abaixo do país, sempre que o árbitro toma uma decisão que os torcedores não gostam. A versão do Whitehawk, “The referee’s a referee”[2], permite a multidão desabafar sua raiva gritando, mas poupa o juiz do desnecessário abuso e sempre entretém os torcedores neutros e visitantes. Outras canções incluem versões de Taylor Swift e Justin Bieber.

Um aspecto adicional da torcida do Whitehawk é o seu espírito de comunidade, incorporada pelo seu conjunto regular de ações para ajudar instituições de caridade locais, como o Whitehawk Foodbank (banco de comida), que oferece alimentos emergenciais para famílias em necessidade. Recentemente, uma iniciativa de torcedores organizou um dia de passeio para um grande grupo de crianças que perderam suas casas no incêndio ocorrido em 2017, da Grenfell Tower, em Londres. Uma campanha nacional, “Non-League for Grenfell” (Non-League por Grenfell), conecta agora alguns Non-League clubes ao redor do Reino Unido, se estendendo até o nordeste e o País de Gales.

Esse apoio com fortes características sociais e com grande senso de comunidade é compartilhado pelo grupo Pier Pressure, torcedores do Eastbourne Town United, aproximadamente 60 km à leste de Brighton. Entre as iniciativas que os torcedores do Town têm apoiado, estão: o Mexican Red Cross, depois do Terremoto de 2017; Windsor Homeless Shelter, criado na sequência da determinação de que moradores de rua seriam presos durante o casamento real; 1066 Specials, um time de futebol para jovens garotos com deficiências; e o Eastbourne Foodbank em muitas ocasiões. E eles também compartilham o desejo de se divertir, com uma propensão para pirotecnias, muitas baterias e até um saxofone. Demonstrando um tanto de excentricidade inglesa e um pouco de conhecimento sobre redes sociais, o grupo também conta com personagens fictícios e alter egos como o No Face No Name, e, mais recentemente, o Town Horse (literalmente um cavalo de brinquedo).

Existem aqueles que podem chamar esse tipo de atividade um truque que diminui o futebol, mas você não vai achar muitos em Eastbourne Town que compartilham essa opinião: o gerente do clube afirma que o amor que os Pier Pressure transmitem aos jogadores ajuda a inclusive contratar melhores atletas ao clube. Não existem muitos  –  se é que existe algum  – outros clubes na Sussex County League, nos quais o jogador pode esperar uma música composta pela torcida para ele. Desde que o grupo começou a frequentar os jogos regularmente em 2000, o público das partidas aumentou significativamente. O grupo até produz o programa das partidas em casa.

O nível de interação e camaradagem que existe entre os jogadores e os torcedores em Eastbourne Town é algo difícil de imaginar nas divisões superiores de futebol. Nas partidas da non-league, contudo, isso acontece naturalmente, como visto no caso mais famoso dos Clapton Ultras. Ativa de 2012 até 2018, esses Ultras transformaram os dias de jogos em Old Spotted Dog Ground na parte Leste de Londres, casa do Clapton FC. Abastecidos pela paixão e um não pequeno número de latinhas de Tyskie, eles transformaram “The Caffold” (O Andaime) em Spotted Dog em uma pulsante bagunça alvirrubra, aumentando o público dos jogos de cerca de 30 pessoas para centenas. O seu apoio é tão adorado pelo time que os próprios jogadores se juntam aos Ultras depois de cada partida e puxam algumas canções com a torcida.

Veementemente antifascistas, os Clapton Ultras vestem suas ideologias políticas orgulhosamente em suas mangas. Muitos são ativistas comprometidos e, de novo, o campo materializa o senso de comunidade através da captação de recursos em dias de partida. De fato, o nível de compromisso é tanto que quando o dono do clube aumentou o preço do ingresso sem avisar, eles então passaram uma temporada inteira boicotando os jogos em casa da equipe. Quando o gerente colocou as ações voluntárias em risco, eles deixaram o clube (que eles fizeram ficar relativamente famoso) para começar o seu próprio time de futebol, completamente dirigido por voluntários.

O Clapton Community Football Club, que pertence 100% aos seus torcedores (todos podem se tornar membros, mesmo de outro país, como o Brasil, por exemplo) agora disputa a Middlesex Counties Division 1 Central & East League. O grupo continua acenando com suas ideologias políticas. No começo de 2018, eles revelaram detalhes da sua camisa de visitante, uma homenagem aos voluntários da Brigada Internacional que lutaram contra o fascismo na Guerra Civil Espanhola, a notícia rapidamente se espalhou de Londres para a Espanha e logo para o resto do mundo. Depois de dois dias, o site caiu por conta da quantidade de encomendas que alcançaram o valor de aproximadamente R$ 300 mil. Em dois dias!

A mistura de futebol e política é demais para alguns. Mas o que o sucesso dessas torcidas mostra é que existe um desejo de alguma coisa diferente da indústria corporativa do futebol, e dirigida pela TV, da Premier League. Falando com os torcedores desses três clubes, muitos deles contam histórias de terem ficados desiludidos com seus clubes de infância, sobre o desejo de algo mais baseado na comunidade, mais inclusivo, mais divertido. E eles certamente parecem ter achado.


Notas

[1] Na tradução livre da editoria: “O juiz é punheteiro!”.
[2] Na tradução livre da editoria: “O juiz é o juiz!”.

*Sam Hardwicke é torcedor do Whitehawks e frequentador de partidas de futebol.

** Imagens e fotos: @townultras e @Hawkultras

*** Seguindo a experiência ludomusical da Pelota, a música que acompanha o texto é Kicher Conspiracy de The Fall:


Revista Pelota em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

HARDWICKE, Sam. Non-League: o outro futebol inglês – parte 2. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 7, 2020.
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