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Nos trilhos da bola: a relação entre ferrovia e futebol

Marcel Diego Tonini 11 de fevereiro de 2020

Qual o motivo da existência de tantos clubes ferroviários pelo Brasil e pelo mundo? Como as ferrovias ajudaram a difundir o futebol pelo interior paulista, na passagem do século XIX para o XX? Qual o papel da Cia. Paulista de Estradas de Ferro, através de seus funcionários-chefes e operários, no processo de introdução e popularização do futebol na cidade de Rio Claro-SP? A partir dessas questões, propomos uma reflexão sobre a relação entre ferrovia e futebol que culmina na discussão de três mitos do futebol brasileiro: sua origem, seu elitismo inicial e o período de sua popularização.

Antiga máquina Maria-Fumaça percorria o trecho Rio Claro – Analândia. Foto: Acervo do Arquivo Público Histórico de Rio Claro.

A difusão do futebol em fins do século XIX

Basicamente, foram duas as vias principais de propagação deste esporte ao redor do mundo ao final dos oitocentos: a primeira está ligada à grande expansão capitalista, a partir de 1850, promovida pelo Imperialismo Inglês, que acarretou numa onda migratória da mão-de-obra qualificada britânica para toda a sua vasta área de influência pelo mundo. Neste caso, os agentes difusores do futebol foram, a princípio, os marinheiros, mas logo seguidos por trabalhadores e empreendedores, os quais acompanharam as fábricas, oficinas e companhias inglesas. É neste grupo de pessoas que se incluem os ferroviários. A segunda via está relacionada às escolas e universidades, fossem elas instituições educacionais laicas ou religiosas, com destaque para os colégios jesuíticos e maristas. Estes estabelecimentos eram freqüentados somente pela juventude da classe mais abastada, que, por este motivo, se sobressaiu ao carregar a novidade esportiva para fora das escolas ou para o seu país de origem, como é o caso brasileiro.

Estação de Rio Claro em 1910. Foto: Acervo do Arquivo Público Histórico de Rio Claro.

Charles Miller e Oscar Cox, apenas para citar os dois nomes mais famosos entre outros que poderiam ser aqui arrolados, nasceram no Brasil, mas foram estudar em colégios europeus a fim de completarem a formação educacional à luz das tradições de seus ascendentes. Neste contexto, entraram em contato com as novidades modernas, dentre as quais o futebol se destacava frente a outras modalidades esportivas. Ao retornarem, trouxeram, além de bolas, chuteiras e vestimentas, manuais que continham as regras e, assim, garantiram que o futebol fosse praticado em terras tupiniquins sob as mesmas condições estipuladas pela Football Association. Ilustres cidadãos, como Miller e Cox, foram reconhecidos pela posteridade e pela historiografia como os introdutores do futebol, grandes divulgadores deste esporte entre os clubes de elite e, principalmente, incentivadores do mesmo através da fundação de clubes e das ligas de futebol.

Não dá para negar a importância desses jovens ricos para a afirmação e consolidação do futebol no Brasil, porém sabemos que essa não foi a única via de introdução deste esporte em nosso país. Nas próprias escolas de elite aqui no Brasil, o futebol ou um jogo muito parecido foi praticado a partir de 1880. Além disso, muitos são os relatos conhecidos e divulgados sobre partidas de futebol que antecederam os retornos de Miller e Cox. Mais importante do que nos questionarmos sobre a “verdadeira” origem deste esporte no Brasil, é notarmos que a presença dos ingleses aqui é tão marcante em fins do século XIX que trouxeram, junto com os produtos industrializados, capitais e tecnologia especializada, um modo de vida moderno e refinado, do qual o futebol fazia parte.

A ferrovia no interior paulista

As principais ferrovias paulistas (São Paulo Railway, Paulista, Mogiana, Sorocabana, Noroeste e Araraquarense) foram implementadas a partir da segunda metade do século XIX e, para tanto, requisitaram da mão-de-obra especializada britânica, a qual detinha o conhecimento tecnológico, administraria e comporia a direção de tais companhias ferroviárias. Para a construção dos trilhos, foi necessário um grande contingente de operários, preferindo-se aqueles que já tinham experiência nesse tipo de trabalho, como os imigrantes europeus. O grande motivo para tamanho empreendimento foi o café. Este produto agrícola exigia um transporte moderno e rápido, o qual pudesse escoá-lo em pouco tempo até o porto de Santos.

Mapa do Estado de São Paulo com as estradas de ferro construídas e projetadas em 1886. Foto: Wikipedia.

A malha ferroviária de São Paulo possibilitou a ocupação do território, a expansão da fronteira econômica, a formação do mercado interno, e a fundação, modernização e urbanização das cidades do interior do estado. Desta maneira, com o passar do tempo, houve a integração das várias regiões entre si e delas com as redes internacionais, tanto do ponto de vista econômico como sócio-cultural. Pois, para além de as ferrovias servirem para a circulação de produtos e pessoas, elas foram o meio de ligação dessas diversas culturas regionais com as culturas européias, ditas metropolitanas, “modernas” e “civilizadas”. Esse encontro entre culturas alterou paulatinamente o modo de viver das pessoas, a maneira de pensar, de se comportar, os seus valores, hábitos, crenças, a sua noção de tempo e espaço, enfim, a vida como um todo.

Primórdios do futebol na cidade de Rio Claro-SP

Importante região cafeeira do “oeste paulista”, Rio Claro, através da influência de seus grandes fazendeiros e autoridades políticas, tornou-se não só estação como também centro ferroviário da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, ao final do século XIX. Com a chegada da ferrovia, a cidade desenvolveu-se economicamente ainda mais e assistiu a um período de urbanização e modernização. Através de seus trilhos, passaram ou permaneceram em Rio Claro milhares de migrantes e imigrantes que tanto serviram como mão-de-obra para as lavouras de café e para a própria companhia ferroviária, quanto integraram e aumentaram o comércio local com a formação de inúmeros estabelecimentos.

Logo do Grêmio Recreativo dos Empregados da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, Rio Claro/SP. Foto: Reprodução/Facebook.

Numa época em que a vida sócio-cultural rio clarense girava em torno basicamente das festas religiosas, os funcionários-chefes da Cia. Paulista – de maioria inglesa – resolveram incentivar práticas de lazer entre os seus dois mil trabalhadores, os quais compunham as suas oficinas de reparo e manutenção do material rodante. Foi com este intuito que Cristiano Leonardo Sobrinho, Adão Gray, James Férmie, Primo Rivera, João Timoni, Júlio Marasca e Matthew Busch fundaram, em 1896, o Grêmio Recreativo dos Empregados da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Entre as atividades promovidas pelo Grêmio, ao longo dos primeiros anos, estavam uma banda de músicos, danças e jogos de salão, e um time de futebol.

Em pouco tempo, todos os ferroviários, com funções das mais variadas dentro da Cia. Paulista, puderam associar-se ao Grêmio e desfrutar dos benefícios oferecidos. No entanto, apenas os altos funcionários da empresa compuseram a direção da agremiação. Por mais que a Cia. Paulista tivesse a intenção de proteger ou de beneficiar os ferroviários, seu principal interesse estava no controle e na disciplina dos hábitos dos seus empregados. Ao mesmo tempo em que possibilitava uma gama de atividades aos mesmos, a companhia ferroviária penetrava no tempo livre e nos momentos de lazer deles e tentava direcionar os seus modos de vida.

A partir dessa iniciativa pioneira do Grêmio, outros clubes contribuíram na introdução do futebol em Rio Claro ao longo da primeira década do século XX. O primeiro clube destinado especificamente à prática futebolística foi o Pery Foot Ball Club, fundado em 1902. Ao menos um ferroviário, Celso de Lima, que já havia participado do time gremista, atuava nos quadros dessa equipe. Contudo, certamente o clube mais instigante é o Anhangás Foot-Ball Club, cuja origem é de 1906. Esta agremiação foi criada pelos moradores do bairro Jardim Cidade Nova, localizado atrás da linha férrea da estação de Rio Claro e que era composto por inúmeras famílias de operários da Cia. Paulista. Por conta disso, é muito provável dizer que o time foi formado pelos próprios funcionários da ferrovia e, sendo assim, deve ter sido o primeiro clube operário do futebol rio clarense.

A. E. Velo Clube Rio Clarense, 1931. Foto: Reprodução/Arquivo pessoal de José Roberto Sotero.

O quarto e último clube do qual falaremos neste texto é o Rio Claro Futebol Clube. Sendo fundado em 9 de maio de 1909 por quatro ferroviários da Cia. Paulista (Joaquim Arnold, Bento Estevam de Siqueira, Constantino Carrocine e João Lambach, que era negro), o Rio Claro F.C. é o quarto clube de futebol mais antigo em atividade do estado de São Paulo, ficando atrás somente da A. A. Ponte Preta (1900, Campinas), da A. A. Internacional (1906, Bebedouro) e do C. A. Pirassununguense (1907, Pirassununga). O fato de o Rio Claro F.C. ser dirigido por vários ferroviários permitiu ao clube alguns privilégios. Além de mandar seus jogos no campo gremista, era o único time da cidade que tinha passe livre da ferrovia para viajar a outros municípios, ao passo que as outras equipes – apesar de ser composta, em alguns casos, por ferroviários – tinham de pagar pelo translado ferroviário. Talvez o fato de ser um time ferroviário de origem fez com que fosse adotado por um longo tempo (até 1931) não só pelo Grêmio, mas também pela seção da Cia. Paulista desta cidade.

Podemos dizer que esta companhia ferroviária teve um papel significativo na introdução do futebol na cidade de Rio Claro, pois participou, direta e indiretamente, da formação de inúmeros clubes de futebol que foram surgindo ao longo das três primeiras décadas do século XX. Através tanto dos chefes como dos operários da Cia. Paulista, o “jogo da bola” tomou novas proporções neste município, deixou de ser apenas um lazer restrito aos finais de semana para se tornar num esporte competitivo e divulgado pela imprensa local. Ao popularizar-se, o futebol saiu dos trilhos e ganhou a cidade.

Considerações finais

Em que medida a ferrovia pode contribuir para se pensar a história do futebol no Brasil e no mundo? Talvez essa questão seja complexa demais para ser explicada neste simples texto, porém vimos que, para além de as estradas de ferro terem difundido o futebol para as regiões interioranas do estado de São Paulo, os clubes fundados pelos ferroviários possibilitam questionar certos mitos acerca do futebol brasileiro, tais como: a sua “verdadeira” origem através de Charles Miller (sobre este ponto, 2 comentários: 1. melhor seria pensar sobre as diversas origens do nosso futebol, dado que o Brasil, país de dimensões continentais, não tinha uma rede de transportes ou de comunicação que unisse as suas capitais estaduais e demais cidades de importância de maneira rápida ao final dos oitocentos; 2. sendo assim, o porquê se quis eleger a memória de Charles Miller, Oscar Cox e tantos outros jovens endinheirados no que se refere a introdução do futebol no Brasil?), o seu caráter elitista nos primórdios (uma vez que em Rio Claro, cidade do “oeste paulista”, já havia um clube não elitista, para não dizer operário, em 1906) e, por fim, a época em que o nosso futebol se popularizou (sabendo que, entre 1900 e 1920, Rio Claro contava com o número impressionante de quase 40 times e clubes de futebol). Desta maneira, há ainda muito que se pesquisar sobre a difusão e as primeiras décadas da história do futebol brasileiro.

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Artigo publicado originalmente no site Universidade do Futebol (na época, nomeado Cidade do Futebol), no dia 24 set. 2007.

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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Como citar

TONINI, Marcel Diego. Nos trilhos da bola: a relação entre ferrovia e futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 128, n. 12, 2020.
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