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Nunca quis jogar bola

Leandro Marçal 11 de dezembro de 2018

Escolhi o lado de fora das quadras e dos campos. Me acostumei a ficar sentado nas arquibancadas, nas cadeiras da escola durante as aulas de Educação Física e interclasses ou com mãos e rosto colados em alambrados. Nunca me vejo em campo. Respeito as placas de “não pise na grama” além da conta.

Deve ter sido algum trauma dos tempos em que tirava os chinelos para bater bola na rua da infância. Quando goleiro, cansei de me ver humilhado e cego com chutes direcionados à minha face. E isso era frequente, já que fui o último a ser escolhido para montar os times em mais de 90% das partidas que disputei.

Se era o atacante, perdia gols inacreditáveis, que só quem tem problemas sérios de coordenação motora poderia entender. As tarefas de correr, respirar, pensar, posicionar uma perna atrás da outra para que um pé encostasse na bola, ainda por cima direcionando-a para o destino em que um estraga-prazeres poderia afastá-la com as mãos, era para mim inconcebível.

Nos raros dias de zagueiro, perdia para os atacantes na corrida, na habilidade, na humilhação de uma bola entre as pernas e minha cara de quem não sabia para onde ir na estrada para a perdição dos pernas de pau.

Quando entrei na faculdade, preferia as sextas-feiras no bar que as competições entre universidades. Dava uma desculpa para não comparecer aos jogos depois do expediente da antiga firma. Um problema nas costas, uma indisposição. Chegava a falar do ódio pelo antigo e carrasco chefe para não disputar a pelada de fim de ano. Poderia perder a cabeça e misturar as coisas, dizia. O pessoal da baia ao lado acreditava, ou fingia bem.

Nunca quis jogar bola. Foto: shauking.

Preferi não me ver desconjuntado em jogos decisivos quando a venda de ingressos pela internet se popularizou. Não decorava os gritos das torcidas uniformizadas, então foi melhor escolher umas cadeiras mais reservadas. Depois que o pay per view se popularizou, penso três ou quatro vezes antes de tomar sol e chuva a poucos metros dos não tão craques assim do meu time do coração.

Mas, até sei algumas regras básicas que só os fanáticos por futebol entendem. Evito comentários clichês e sou capaz de olhar com tom de reprovação as análises do tipo “o importante é competir” depois de uma derrota.

E olha, nunca me senti mal por ser péssimo com a bola nos pés. Entendi meu lugar nesse mundo mais redondo que o mundo desde meus primeiros passos nele. Sem ressentimentos. Tenho medo, apenas, do que fazer se meu filho quiser jogar bola num futuro cada vez mais próximo, ou pedir uma de brinquedo a cada Natal e aniversário.

Como vou me portar, o que poderei ensiná-lo? Terei que pedir ao meu cunhado, aquele mala, para bater bola com o pequeno? Minha esposa vai me desacreditar se eu disser que livros são mais importantes que futebol?

Semana passada, ouvi meu sogro reclamando por eu não ter comprado mais roupinhas do nosso time de coração para seu neto. Como se eu não fosse um bom pai, coisa assim. Estava preocupado com o tipo de criação que daríamos à criança, tanto mais agora, nesse mundo de modismos que não existiam há décadas.

Agora há pouco, meu herdeiro dormiu. Fiquei olhando daqui, do lado de fora do berço, como um torcedor à beira do alambrado, só esperando o melhor dos resultados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Nunca quis jogar bola. Ludopédio, São Paulo, v. 114, n. 11, 2018.
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