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Nunes, o danado erótico do panteão da Gávea

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 8 de agosto de 2022

Nosso escrito de hoje assume uma postura lírica apaixonada, inclinada ao amor erótico. Isso porque versaremos sobre Eros e Nunes. Eros é um deus grego que com o seu arco e flecha provocava paixão nas vítimas que ele lanceava. Nunes foi um jogador que fez uma geração de torcedores padecer de amor pelo Flamengo com seus lascivos gols. Conhecido por seus tentos decisivos, Nunes personificou Eros em uma equipe cheia de deuses do mágico Flamengo dos anos iniciais da década de 80.

Na mitologia grega, Eros é conhecido como o deus da paixão. No sincretismo romano, ele é a personificação de Cupido. A etimologia do termo eros significa algo próximo de “desejar com muito amor”, e desse radical grego provém palavras, como erótico, erotização e erotismo. Trata-se de um garotinho alado que viaja sempre em posse de seu pequeno arco e uma aljava, onde guardava suas depravadas flechas.

Nas narrativas míticas, seu nascimento é muito enigmático, aliás, sempre foram criadas hipóteses sobre o acontecimento. No entanto, quando colocados à prova, esses pressupostos eram refutados por incoerência no cruzamento com a estória de outros personagens. A versão mais conhecida de sua concepção é a de que quando Afrodite, deusa do amor e da beleza, nasceu foi feita uma festa, mas Pênia, deusa da penúria e da pobreza, não foi convidada. Ela apareceu ao final da celebração para comer os restos do banquete e quando o fazia foi chamegada pelo deus da engenharia. Dessa noite de amor e orgia nasce Eros, que como o pai arquiteta modos de conquistar a pessoa amada, e como a mãe rasteja, mendiga e come migalhas quando apaixonado.

Eros
The Victory of Eros, por Angelica Kauffman (1750–1775). Fonte: Metropolitan Museum of Art/Wikipédia

Nunes não era um jogador fantástico quando os quesitos eram habilidade e técnica, mas se destacava imensamente por sua luta em campo, disposição e raça com que se propunha a jogar as partidas. A exemplo de Eros tinha asas e fazia gols de cabeça com a mesma facilidade que os fazia com os pés, era rápido e potente como uma flecha lançada. A potência de seu chute era do tamanho de sua paixão pelo Flamengo,  e, por isso, “rastejava e comia migalhas” pelo clube em campo. Corria e lutava pela bola ao mesmo tempo em que “arquitetava formas” de enfiá-la para dentro das redes adversárias. Nunes foi um despudorado arqueiro que flechou a torcida do Fla com a forma erótica com que vestiu o manto sagrado.

Na mitologia grega, Eros é um personagem que aparece sempre ligado à Afrodite, podemos sugerir que ele é uma espécie de auxiliar dela. Quando Afrodite, em seus ofícios de deusa, precisa que alguém se enamore ou se zangue por outro ser, ela chama o arqueiro Eros para que este coloque em ação as suas flechas. De igual forma era Nunes em relação ao Deus mais amado e belo do Fla: Zico. Quando Zico precisava de alguém para resolver o jogo, sempre metia a bola nos pés ou na cabeça de Nunes. Seus tiros eram certeiros, seus gols eram como flechas impudicas que acertavam o coração dos rubro-negros, que explodiam enamorados por ele.

Eros tinha dois tipos de flechas: as de ponta de ouro com cauda de penas de pombo e as de ponta de chumbo com cauda de penas de coruja. Quando alguém é atingido pela primeira é acometido por um ferimento na alma e fica perdidamente apaixonado pela próxima pessoa que vê à sua frente. O alvo das flechas de ouro era o coração, símbolo da paixão e do amor. Já quando alguém é acometido pela flecha de chumbo com penas de coruja, o inverso acontece, passando a ter ojeriza diante do primeiro que cruza seu caminho. O alvo das flechas de chumbo era o fígado, símbolo da raiva e da irritabilidade.

Nunes também era conhecido como “artilheiro das decisões”. Tal apelido não era à toa, afinal, Nunes costumava decidir jogos importantes. Suas vítimas mais ilustres foram o Atlético Mineiro, o Vasco, o Liverpool e o Grêmio de Porto Alegre. Essas equipes, respectivamente, perderam para o Flamengo a final do Campeonato Brasileiro de 1980, o Carioca de 1981, o Mundial Interclubes de 1981 e o Campeonato Brasileiro de 1982. Nunes flechou gols em todas essas finais e ao marcá-los deixava a torcida do Flamengo cada vez mais apaixonada e a dos adversários, mais odiosa. Seus gols eram flechas com penas de pombo para a torcida do Fla, ao mesmo tempo em que eram flechas com penas de coruja para a torcida oponente. Já que estamos falando de “penas”, importante relatar que Nunes tinha um fetiche devasso em “depenar o galo”. Flamengo e Atlético (MG) tinham uma rivalidade muito grande no início dos anos 80. Em jogos decisivos, Nunes sempre “derrubava o galo do poleiro” com suas flechas de chumbo.

João Batista Nunes de Oliveira é o mais ilustre sergipano a vestir a camisa do Mengão. Nasceu na cidade de Cedro de São João (SE), em 20 de maio de 1954, e passou grande parte de sua infância em Feira de Santana (BA). Aos 14 anos se mudou para o Rio de Janeiro, onde jogou no infantil do Flamengo por cinco anos e depois foi dispensado. Então retornou para Sergipe e passou a jogar no Confiança, se consagrando como artilheiro do campeonato local, em 1974. Dois anos depois foi negociado com o time da cobra coral, o Santa Cruz de Pernambuco, no qual se destacou e ganhou visibilidade[1]. Foi também no Gigante do Arruda que Nunes encerrou sua vitoriosa carreira, em 1992. Em 1980, Nunes chegou ao Flamengo contratado junto à equipe do Monterrey (México). Começava aí uma era repleta de gols, títulos e muita paixão, afinal, Nunes foi escrachadamente despudorado com a camisa do Flamengo quando o assunto era “furar” as redes adversárias.

Nunes
Fonte: Wikipédia

Nos contos gregos, Eros é figurado por um menino e não por um homem adulto. Isso serve como alegoria de travessura, afinal a paixão e o amor têm a capacidade de nos fazer travessos, irresponsáveis e, de alguma forma, até inconsequentes. Eros só aparece na versão adulta em um romance escrito por Apuleio[2], chamado “Eros e Psiquê”. Nesse conto, Eros é ferido por sua própria flecha e se apaixona perdidamente por Psiquê, uma ninfa que por sua estonteante beleza ameaçava o trono de Afrodite. Quando Eros foi castigá-la, a mando de Afrodite, acabou provando de seu próprio feitiço: apaixonou-se.

Se o amor nos faz encontrar nossa “outra metade”, a Psiquê de Nunes foi a torcida do Flamengo, afinal era assim que Nunes a definia: “a outra metade do time”. Nunes tinha o apelido de “João Danado”, exatamente por seu modo travesso de fazer gols: sempre colocando em trapalhada as defesas adversárias. Um menino de “cabelos de fogo[3]” que costumava inflamar a nação com sua volúpia por vencer e conquistar títulos. Não só o cabelo de Nunes era de fogo, mas todo o seu corpo de rubro negro apaixonado, que rotineiramente copulava com a nação durante os jogos. Para Bachelard (1989), o fogo é a extensão e a potencialização da capacidade do corpo em produzir calor por meio do contato com outros corpos, calor esse proveniente do movimento de fricção. Por isso, o sexo está ligado à fricção e ao fogo e é por ele que se gera a vida. Nunes e a torcida do Fla eram amantes fogosos, inflamados… explosivos.

Nunes teve três passagens pelo Flamengo: a primeira de 1980 a 1982, a segunda em 1984 e a terceira no ano de 1987, onde atuou poucas vezes no time que conquistou o tetracampeonato brasileiro. Pelo clube, Nunes conquistou o título carioca de 1981, três títulos brasileiros (1980, 1982 e 1987), o título da Libertadores e o do Mundial de Clubes, em 1981. Foram 214 jogos e 99 gols com a camisa do Mengão. Além de ter eternizado seus pés na calçada da fama do Maracanã, João Danado também foi homenageado em 2019 com um busto de bronze na sede do Flamengo.

Reza a lenda que até hoje quando Nunes aparece diante de um galo, este simplesmente deixa de cantar e começa a piar. Isso é o que dizem em Cedro de São João, terra de Nunes e de seu conterrâneo Sr. Evilázio Silva, avô de Elder. Foi em Cedro que Sr. Evilázio ensinou Nunes, ainda criança, a destripar galo.

Notas

[1]Enquanto atuava no Santa Cruz, Nunes foi convocado por Claudio Coutinho para disputar a Copa do Mundo de 1978, na Argentina, mas uma lesão o tirou do mundial. Em 1982, jogando pelo Flamengo, Nunes foi convocado para a seleção de Telê Santana, após corte de Careca, e mais uma vez foi vitimado por uma contusão que o impediu de ir à Copa.

[2] Apuleio nasceu 800 anos depois de Homero – principal escritor dos contos míticos gregos. Sua obra mais famosa é “Metamorfoses”, também conhecida como “O asno de ouro”. O livro “Metamorfoses” é composto por narrativas de aventuras de um homem que se vê transformado em um asno. Um dos contos da obra (mais precisamente o quinto) é o romance de “Eros e Psiquê”, que foi retirado e publicado em separado por todo o mundo. No Brasil existe uma versão do conto traduzida por Ferreira Gullar.

[3] “Cabelo de fogo” era o outro apelido de Nunes. Na sua juventude ele tinha cabelos grandes e volumosos, de coloração loira meio avermelhada.

Referências

BACHELARD, Gaston. A chama de uma vela. Tradução de Glória de Carvalho Lins. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.

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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. Nunes, o danado erótico do panteão da Gávea. Ludopédio, São Paulo, v. 158, n. 8, 2022.
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