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O acidente aéreo da seleção da Zâmbia em 1993: sonho, pesadelo e recomeço Chipolopolo

Fábio Areias 12 de julho de 2019

19 de setembro de 1988. Após empatar com o Iraque, a seleção da Zâmbia enfrenta a Itália pela segunda rodada da fase de grupos do futebol no Jogos Olímpicos de Seul. Equipe italiana contava com talentos como Tacconi, Carnevale, Roberto Baggio e outros bons jogadores. Em qualquer situação, o país da Bota seria considerado favorito no duelo. Talvez acomodado pelo favoritismo excessivo, os europeus começaram o jogo de forma lenta e sucumbiram aos velozes e habilidosos africanos. Zâmbia 4×0 Itália. Com direito a três gols e uma assistência de Kalusha Bwalya, jogador que seria contratado pelo PSV Eindhoven ao final da competição.

Após a zebra histórica, a seleção da Zâmbia, também conhecida como Chipolopolo – os balas de cobre – ganhou novamente por 4×0 sobre a Guatemala e se classificou em primeiro lugar no grupo. Nas quartas de final, foi a vez dos zambianos provarem do próprio veneno e serem eliminados pela Alemanha Ocidental. O resultado? 4×0.

Camisa da seleção zambiana de futebol. Foto: Divulgação.

O sonho da Copa do Mundo

Mesmo sem conquistar uma medalha em Seul, o desempenho da Zâmbia era indício de que uma talentosa geração poderia dar alegrias futuras ao país. Quem sabe disputar uma Copa do Mundo? Seria uma façanha enorme, haja visto que a Zâmbia jamais havia disputado a competição e apenas duas vagas eram destinadas pela FIFA para todo o continente africano.

Nas Eliminatórias para a Copa de 1990, a seleção ficou em segundo lugar em um grupo composto também por Tunísia, Zaire e Marrocos. Somente o líder do grupo passava para a fase seguinte. A Tunísia ficou em primeiro lugar, um ponto acima da Zâmbia, e se classificou para a disputa de uma vaga africana para o Mundial de 1990 contra a seleção de Camarões (a outra vaga do continente ficaria com o Egito, que venceu a Argélia). O mesmo Camarões de Roger Milla, Omam-Biyik e companhia que encantou o mundo sete meses depois com memoráveis vitórias sobre a Argentina, Colômbia e uma eliminação nas quartas de final para a Inglaterra em uma partida disputadíssima. O pouco de futebol alegre daquela Copa (edição com menor média de gols) veio dos Leões Indomáveis.

Em 1993, a geração zambiana teria outra oportunidade de realizar o sonho de disputar uma Copa nas complicadas Eliminatórias africanas. Agora o sonho era um pouco mais possível. Após o brilhante desempenho camaronês na Itália, a FIFA aumentou de 2 para 3 o número de vagas para a África na Copa de 1994. A fórmula de disputa era relativamente simples: na primeira fase, 40 países foram divididos em 9 grupos e somente o vencedor de cada grupo passava para a fase seguinte; na segunda fase, as seleções foram divididas em 3 grupos com 3 seleções cada. O vencedor de cada grupo estaria na Copa do Mundo de 1994. Ufa!

Na primeira fase, a seleção da Zâmbia se classificou em um grupo com Madagascar e Namíbia. Tanzânia e Burkina Faso também estavam no grupo, mas desistiram. A Namíbia perdeu seus quatro jogos e a Zâmbia conseguiu a classificação no saldo de gols ao empatar no número de pontos com Madagascar. Um pouco sofrido, mas o objetivo continuava vivo e mais possível do que nunca.

Na segunda e última fase, a Zâmbia enfrentaria o Marrocos e o Senegal no seu grupo pela vaga na Copa. Era um grupo difícil, mas sonhar não custava nada – já diria um famoso samba-enredo do ano anterior. Mas aí chegou a triste noite de 27 de abril de 1993 e o sonho tão real se transformou em um enorme pesadelo de todo um esperançoso país.

A tragédia

Na sua primeira partida da fase final, a Zâmbia iria enfrentar o Senegal fora de casa em Dakar. Um ultrapassado avião da Força Aérea da Zâmbia levaria a delegação de 30 pessoas, 18 destes jogadores, até Senegal. A aeronave militar era de 1975, possuía um histórico de falhas mecânicas, apresentou defeitos nos voos de teste entre 22 e 26 de abril e mesmo assim foi autorizada a voar uma distância aproximada de 6 mil quilômetros.

Rota do voo fatal. Foto: Wikipedia.

A viagem até Dakar incluía paradas para reabastecimento no Congo, no Gabão e na Costa do Marfim até chegar ao destino final. Ao final da primeira parada no Congo, o avião começou a apresentar problemas no motor esquerdo, mas seguiu viagem. Pouco antes de chegar para a segunda parada de reabastecimento, o motor esquerdo pegou fogo e falhou, mas o piloto desligou erroneamente o motor direito. Com a ação, a aeronave militar perdeu a potência e caiu na costa do Gabão. Todos os passageiros e tripulantes do avião morreram.

Dos 18 jogadores mortos no acidente, seis deles haviam disputados os Jogos Olímpicos de 1988. Curiosamente, Kalusha Bwalya – o craque da partida contra a Itália – não estava entre as vítimas. Como o atleta jogava na Holanda, iria pegar um voo direto para Dakar. Outros dois importantes jogadores não estavam no voo fatal: Charles Musonda, jogador que atuava no futebol belga e estava lesionado e Bennett Mulwanda Simfukwe, que estava na lista da embarque do voo para Senegal, mas foi retirado de última hora por não ter conseguido autorização de seu time para a viagem. A partida contra Senegal, obviamente, também foi cancelada.

O duro recomeço

A relação da maioria dos países africanos com o futebol é visceral. Não é apenas um esporte, mas a própria identidade e o sentimento de orgulho da nação. E no caso da Zâmbia, mesmo com toda a dor da tragédia era preciso recomeçar. Ainda havia uma Eliminatórias para a Copa do Mundo para ser disputada e também uma Eliminatórias para a Copa Africana de Nações de 1994.

Memorial em homenagem às vítimas em frente ao Estádio da Independência. Foto: Wikipedia.

Um tragédia aérea sempre causa enorme comoção. Os acidentes do Torino (1949), do Manchester United (1958) e da Chapecoense (2016) talvez sejam os mais conhecidos. No caso zambiano, a comoção também foi enorme, como não poderia deixar de ser. Enquanto a Federação de Futebol da Zâmbia buscava novos jogadores em seu campeonato local, a Dinamarca, campeã europeia à época, ofereceu suas instalações e o escocês Ian Porterfield, ex-técnico do Chelsea, assumiu o desafio de planejar e reconstruir a Chipolopolo a partir do zero. Dentro de campo a liderança caberia a Kalusha. Sempre Kalusha.

Dez semanas após a tragédia, a Zâmbia entrava em campo para sua primeira partida da fase final das Eliminatórias da Copa do Mundo. Em 17 de julho de 1993, um país inteiro lambia suas feridas e iria enfrentar o Marrocos em Lusaka, capital da Zâmbia. Aos quinze minutos de jogo, Daoudi fez o primeiro gol do Marrocos, mas o “catado” zambiano jogava por algo muito maior: a honra de seu povo e pela memória dos que partiram. A Zâmbia virou a partida com gols aos 15 e 22 minutos do segundo tempo e venceu a partida. Se o destino, esse traiçoeiro, causou tanta dor a todo um país, ao menos também ofereceu um breve momento de alegria.

As Eliminatórias prosseguiram e a Zâmbia empatou fora e venceu em casa o Senegal. Os zambianos chegavam para a última rodada precisando apenas de um empate contra o Marrocos, em Casablanca. Porém mais uma vez o destino lhe fora cruel: Zâmbia perdeu por 1×0 e deixou escapar a tão sonhada vaga. Um gol marroquino aos 17 minutos do segundo tempo impediu um final épico que, no mínimo, seria exaltado durante a Copa do Mundo de 1994 e também tema de diversos filmes, livros e documentários.  

Um pequeno consolo ao país foi a classificação para a Copa Africana de Nações. E mais uma vez o espírito de superação zambiano foi posto a prova. Contra todas as expectativas, a equipe chegou até a final da competição contra a Nigéria. Mesmo saindo na frente do placar, Zâmbia não resistiu à força das Super Águias e perdeu por 2×1. Outra jornada brilhante, mas sem o desfecho de cinema que aqueles homens mereciam.

A glória

Após o desempenho de 1994, Zâmbia não conseguiu chegar próximo de conquistar uma vaga na Copa do Mundo e pouco brilhou nas competições continentais. Até que em 2012, os zambianos disputaram a Copa Africana de Nações na Guiné-Equatorial e no Gabão. O mesmo Gabão em que o avião da Força Aérea caiu.

O país possuía outra geração talentosa, mas poucos apostariam em um título chipolopolo. Seleções como Costa do Marfim, Gana e Mali possuíam jogadores de nível mundial e eram consideradas favoritas. Mas contra os prognósticos, os zambianos conseguiram chegar até a final contra a Costa do Marfim.

Um dia após vencer Gana na semifinal, jogadores e dirigentes de Zâmbia visitaram a praia em Libreville, onde a aeronave militar caiu em 1993. Todos fizeram homenagens às vítimas e prometeram o título. O técnico francês Herve Renard resumiu o espírito:

“Vamos jogar em honra à memória das vítimas de 1993”.

Na final, Zâmbia conseguiu levar a partida até a decisão por pênaltis e conquistou o título após 18 cobranças e uma dramática vitória por 8×7. Os Elefantes foram abatidos por uma zebra. Uma zebra de cobre e que esperou 19 anos.

No pódio uma faixa recordou a geração interrompida. Era hora de festejar a sua maior alegria futebolística no país em que havia ocorrido a maior tristeza. Uma conquista eterna para os imortais da Zâmbia: os de 1993 e os de 2012.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fábio Areias

Formado em Comunicação Social pela ESPM , cocriador do site Extracampo, projeto que busca apresentar as entrelinhas do futebol e seu impacto na sociedade e vida das pessoas.

Como citar

AREIAS, Fábio. O acidente aéreo da seleção da Zâmbia em 1993: sonho, pesadelo e recomeço Chipolopolo. Ludopédio, São Paulo, v. 121, n. 17, 2019.
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