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O agônico fim da fila do Racing: 20 anos depois

Fabio Perina 27 de dezembro de 2021

Para falar de um contexto muito particular entre 99 e 2001 são notórios os vínculos profundos entre o desmoronamento do clube e do país. Pois em 99 assume a presidência Fernando De La Rua lidando com uma espiral destrutiva entre endividamento e empobrecimento herdados dos péssimos mandatos de Carlos Saul Menem (recém falecido no inicio do ano atual). Junto do “super” ministro de economia, Domingo Cavallo, quem representou a submissão ao receituário neoliberal do Consenso de Washington/FMI, através da dolarização do peso argentino, levado às últimas consequências mesmo diante do colapso social. Ainda quanto à política, nos últimos dias de 2001 o país vizinho teve uma ruptura estrutural do sistema político representada pela famosa insurreição popular (chamada por alguns de “Argentinazo”) com a palavra-de-ordem “que se vayan todos”.

A causa imediata era a crise financeira conhecida pelo decreto do “corralito”, em 3 de dezembro, pela qual se bloqueou saques bancários (algo similar ao congelamento da poupança de Collor 10 anos antes). Simplesmente para salvar os bancos e “impedir” a fuga de capitais, mas ao custo de impedir que os “ahorristas” (correntistas) tivessem acesso ao próprio dinheiro. Por falar em saques, rapidamente começaram os vandalismos generalizados por uma massa ao mesmo tempo faminta e sem dinheiro na mão. (Obs: embora as imagens espetacularizadas dos saques incitem a uma conclusão “imediatista” do movimento, ainda assim é preciso mencionar que a luta popular contra a fome pelos anos anteriores (e até nos posteriores) ganhou um novo marco com os conhecidos “piqueteros” e “comedores populares” como profundas provas de solidariedade popular. Além da emblemática revolta com “panelazos” da classe média; o que repercutiu no Brasil nos protestos de 2015-16 pelo impeachment de Dilma).

E como reação veio o decreto de estado de sítio pelo presidente (levando a 30 mortes e 300 feridos por todo o país), que ganharam as manchetes da imprensa internacional. Por fim, a valentia popular cercou a Casa Rosada entre os dias 19 e 20 de dezembro e forçou o presidente Fernando De La Rua a renunciar e fugir de helicóptero. As seguidas renúncias dos suplentes fez com que o país tivesse 4 presidentes em apenas 2 semanas! (Obs: no cenário internacional vale mencionar que o “Argentinazo” fechou um ano de 2001 não somente muito lembrado pelo atentado terrorista do 11 de setembro, no “coração” do sistema, mas sobretudo por intensos protestos contra o sistema e contra a globalização. Vide a importante convergência de movimentos com a inauguração do Fórum Social Mundial de Porto Alegre e o lema “outro mundo é possível”).

Já para o futebol em 99 o ano começou muito turbulento com a declaração de uma fiscal de justiça (equivalente a promotoria) que “Racing ha dejado de existir”. O que de imediato implicou que o clube não disputaria partidas e seria fechado. (Obs: por falar em vandalismo nas ruas, houve uma versão dentro do clube com um arremesso de um “bombo” contra o presidente Daniel Lalil que abriu um sangramento imediato!). Prontamente a hinchada ocupou as principais avenidas e o próprio estádio em vigília (alguns se acorrentando às grades!) por quanto tempo fosse preciso para evitar o confisco patrimonial e com isso exigir a salvação do clube. Enquanto durou o imbróglio judicial o Racing ficou por alguns dias sem jogar, porém na rodada do fim de semana ainda assim a hinchada ocupou novamente o estádio e o lotou mesmo sem uma partida! A maior mobilização “callejera” de hinchadas no século 20 justamente em seu crepúsculo. Uma grande combinação de revolta também com solidariedade e sacrifício. Assim como foi uma demonstração de insólita justiça popular, pois em um país com uma seletividade jurídica tão grande seria injusto que somente um clube tão popular fosse a vítima de uma “punição exemplar” para dar a fachada de “seriedade” das instituições. A solução que tiveram que inventar para dar continuidade às atividades do clube foi uma refundação institucional ao autorizar a venda à empresa Blanquiceleste S.A. Um caso inédito que a partir daí gerou a provocação dos rivais de “Ra$ing” ou “Ra sin club” ou simplesmente “não existe” (esse bem mais comum em outras provocações clubísticas) por supostamente ter vendido a paixão.

Já dando um salto de dois anos e meio para o final de 2001 as rodadas finais do torneio Apertura (em “tiro curto” de 19 rodadas) tinham como “decisão antecipada” a disputa entre líder e vice-líder, Racing e River, no Cilindro de Avellaneda. O River buscava um título em seu centenário e tinha uma equipe no papel bem melhor e repleto de jovens talentos formados no próprio clube (como Ortega e D’Alessandro) e logo abriu o placar com Cambiasso. Enquanto o Racing do experiente treinador Reinaldo “Mostaza” Merlo (por ironia ídolo como jogador no River com mais de 500 partidas) vinha com a pressão de uma fila de 35 anos sobre as costas e os recentes riscos de rebaixamentos. E com um elenco bem mais discreto repleto de “refugos” e “operários”. Como o goleiro Campagnuolo, o zagueiro-artilheiro Loeschbor, o volante Bastia e os atacantes Chatruc e Maxi Estevez. Além de ídolos com larga trajetória no clube: o zagueiro Claudio Ubeda e o atacante Diego Milito. Inclusive recente como membros da comissão técnica e diretoria após aposentados). (Obs: curiosamente em momentos únicos também surgem uniformes únicos, com o Racing deixando de lado as tradicionais listras finas celeste e branco para nesse torneio jogar com listras grossas, o escudo centralizado, e as mangas em azul marinho).

Racing
Fonte: reprodução El Gráfico

De tanto pressionar, o Racing finalmente chegou ao empate nos minutos finais com uma pancada do lateral colombiano Bedoya sem chances para o veterano goleiro Comizzo. Partida jogada em 2 de dezembro, um dia antes do “corralito” já comentado. Foi então que os intensos protestos de 19 e 20 do mesmo mês precisaram adiar em mais uma semana a decisão do torneio e a agonia do clube pelo fim da fila. Até que finalmente em 27 de dezembro o Racing precisou segurar um empate dramático fora contra o Velez para garantir o título. O papel da hinchada foi fundamental pois desde então pode se orgulhar de ter sido a única que lotou duas “canchas” no mesmo dia: no estádio do Velez onde houve a partida e no próprio estádio assistindo por telão. Sob a conhecida música “Hace mucho tempo que la vuelta yo quiero dar, este ano la Academia no puedes fallar”. E claro depois prorrogando a “toma” para o Obelisco, o principal cenário das manifestações políticas e futebolísticas. Claramente as lições de 99 das jornadas de “calle-cancha” como uma coisa só foram revividas. As imagens a seguir retratam todo o drama desse contexto, assim como a conhecida música da hinchada “de pendejo te sigo”. O vídeo a seguir retrata com toque dramático algumas dos principais fatos desse intenso biênio 99-2001 em uma conhecida música da hinchada racinguista. Em suma, em cerca de quase 3 anos com tantas dificuldades isso consagrou por todo o continente até os dias atuais sua reputação com bastante “aguante”

Por fim, quanto a esses últimos 20 anos de lá para cá, a política do país teve como desfecho imediato para a crise de 2001 um mandato temporário de estabilização por todo o ano de 2002 com o presidente Eduardo Duhalde. Um velho “cacique” bonaerense dentro do partido peronista, dentro do qual brotou a nova força hegemônica do Kirschnerismo, vindo da província longínqua de Santa Cruz na Patagônia, e portanto com melhores condições de encarnar a fachada de “outsider” que emergem em crises anti-sistema como aquela do final de 2001. Depois passou pelo casal Kirschner (2003 a 2015), com o já falecido Nestor curiosamente sendo torcedor do Racing. A seguir com o retorno do neoliberalismo com Macri (2016 a 2019). E atualmente com o retorno de uma tentativa de governo nacional-popular (mesmo com o obstáculo de nova profunda crise econômica interna e externa tal qual 2001) com Alberto Fernandez e a vice Cristina Kirschner. Já o futebol do clube depois de 2001 novamente flertou com o rebaixamento (em 2008) mas somente se reencontrou com títulos em 2014 e 2019. (Obs: o mais curioso é que desde então se consagrou um meme que a história do Racing e da Argentina passa por uma coincidência cíclica na qual após um desastre neoliberal o clube sai campeão e ao mesmo tempo se elege um governo nacional-popular!)

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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. O agônico fim da fila do Racing: 20 anos depois. Ludopédio, São Paulo, v. 150, n. 37, 2021.
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