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O alambrado que separa também marca ausência e sonho

A pandemia tirou os torcedores dos estádios, a proibição de aglomeração de pessoas mudou a maneira como assistimos aos jogos, especificamente, de como os ouvimos. Os potentes microfones captam os sons das falas, elogios, gritos e xingamentos. As conversas ao pé do ouvido ficaram audíveis e revelam muito da dinâmica e sociabilidade futebolística em campo.

Em alguns jogos, as crianças até precisam sair da sala. Não que o futebol deva pregar um moralismo beático, porém sempre surpreende ver pessoas exercendo sua profissão e os palavrões servirem como adjetivação e motivação. Lembro que o técnico Abel Ferreira, contratado pela Sociedade Esportiva Palmeiras/SP, em coletiva após sua expulsão de um jogo destacou que futebol não é igreja. Concordo com ele, mas isso não quer dizer que aceito seu argumento como justificativa, pois escola também não é igreja e, se eu como professor proferir um palavrão para adjetivar um educando, o que irá acontecer? Interessante refletir sobre que linha tênue dá liberdade para proferir xingamentos sem ser enquadrado como assédio moral (conversa para outro momento).

Enquanto passamos a ouvir mais sobre o jogo de futebol em campo, também começamos a perder detalhes que agora estão mediados pela transmissão dos jogos. Estar no estádio é acompanhar as partidas sem replay, o que exige outra sensibilidade. São cheiros, sons e uma vidência que permite observar a movimentação dos jogadores em todo o campo, o movimento das torcidas, as disputas por espaços, a participação dos técnicos, dos suplentes no banco de reserva, dos dirigentes, a movimentação da segurança (polícia) e muitos outros detalhes que widescreen não pode captar integralmente.

Minha proposta não é discutir sobre os efeitos positivos ou negativos a respeito de como assistir aos jogos, preferências e gostos impactam na subjetividade do sujeito que decide como pretende acompanhar esse momento festivo. Pretendo pontuar sobre a ausência dos torcedores nos estádios, de maneira específica a respeito de um elemento na estrutura do jogo que perdeu seu sentido, o alambrado.

Torcedor da Lusa acompanha jogo entre Audax e Portuguesa no alambrado, em 7 mar. 2020, no Estádio José Liberatti. Foto: Fabio Soares/Futebol de Campo.

Geralmente, os campos e gramados mais estruturados tendem a separar os praticantes e os observadores. Nos campos de várzea ou terrão, essa divisória não está presente, pois jogar bola envolve reciprocidade e todos são aceitos e bem-vindos ao jogo futebol (brincar). Em outra perspectiva, à medida que o jogo ganha seriedade e passa a ser legitimado pelo seu espaço de prática com regulamentos, competições e por uma maior institucionalização, a relação se transforma, passamos a reconhecer o esporte futebol, logo, a necessidade de construir uma fronteira entre jogo e esporte. Uma fronteira materializada no alambrado ou cerca de tela, que delimita o local de prática do futebol ao separar o atleta do público.

A separação do público se dava outrora com limitações de acesso e distanciamento do campo com cordas ou pequenas cercas. Com o caráter de seriedade que o esporte futebol foi adquirindo, o alambrado começa a fazer parte da estrutura do campo, transforma-se e cresce em altura, inclusive, em alguns estádios foram criadas verdadeiras trincheiras que separam os torcedores dos atletas. Em muitos deles um fosso profundo procurava isolar os espectadores das tribunas mais populares dos artistas da bola. Os jogadores permaneciam encastelados no gramado, enquanto as turbas de torcedores bradavam seus cânticos e até lançavam objetos por cima da muralha. A história do alambrado que serviu para conter desastres fez parte da exaltação de torcedores que em vitórias épicas transporiam para comemorar com jogadores, também tem uma mancha tingida de sangue e morte, pois, ao invés de evitar, potencializou tragédias mundo afora e o futebol brasileiro não ficou isento[1].

Nas últimas décadas o alambrado de tela, ainda muito presente nos estádios, começa a dar lugar ao acrílico e ao vidro. Nas arenas mais modernas que seguem o padrão europeu está sendo retirado qualquer obstáculo estrutural entre o torcedor e o campo de jogo. Uma nova realidade que podemos destacar como marca de longo prazo de incorporação civilizadora que se materializa no comportamento aceito. Não deixa de aparecer, no entanto, uma nova figura nos estádios para controlar as exacerbações, o steward [2]. O alambrado como uma estrutura física não está mais impedindo o contato dos torcedores e jogadores, quem faz isso são figuras humanas que estão a mediar e inibir as ações. Os jogadores em momentos de comemoração podem literalmente correr para os braços da torcida e ter a garantia de serem acompanhados de perto por agentes de segurança.

Stewards tentam evitar o contato entre jogadores e torcedores na comemoração de gols. Foto: Reprodução/TV Globo.

Mesmo exaltando o processo civilizador que permitiu a retirada do alambrado das novas arenas esportivas, não podemos esquecer que a gentrificação parece responder melhor à pergunta sobre os motivos da retirada daquela cerca, pois o espetáculo futebol está cada vez mais distante das classes populares, ao menos presencialmente. Um conjunto de fatores que se somam ao alambrado podem indicar como a gentrificação se consolida. Alguns deles são fáceis de destacar, envolvem o valor dos ingressos para os jogos, dos produtos a serem consumidos durante o espetáculo e dos materiais esportivos que identificam o clubismo, a distância para deslocamento até as arenas, os horários dos jogos que afetam o público trabalhador (não que tenha impedido no passado alguém de ir a um jogo importante, mas partidas em momentos de trânsito com alto fluxo nas grandes cidades são complicadores), a lotação menor dos estádios e o incentivo a programas de sócios – menor lotação e programa de sócios justificam a lei da oferta e da procura como regente do valor do ingresso.

Ao destacar que o alambrado separa o grupo de observadores e o de praticantes, também posso perceber a ausência do torcedor em meio à pandemia no cenário do espetáculo. As transformações na sensibilidade sobre o jogo e a diferença que a torcida pode fazer ao embelezar o espetáculo são sentidas nos momentos decisivos das partidas. Não tenho a pretensão de fazer um manifesto pela volta da torcida, no momento em que vivemos as aglomerações não devem ser incentivadas e permitidas, e é uma pena que a regra está sendo vivida apenas nos estádios e não no seu entorno. Muitos torcedores menosprezam suas vidas e as vidas de seus familiares em troca da aglomeração no lado de fora dos estádios para acompanhar os jogos pela televisão ou rádio.

Pensar o alambrado como sonho é considerá-lo como o que separa simbolicamente quem está fora e dentro do esporte futebol. Durante minha pesquisa sobre o estudante-atleta, circulei pelos dois clubes de futebol profissional da cidade de Florianópolis/SC. O sonho de se tornar jogador de futebol se apresenta nítido no olhar de muitos jovens e seus familiares e para melhor apresentar tal simbolismo aproveito um trecho das observações de uma “peneira” e o significado que atribuo ao alambrado (DA CONCEIÇÃO, 2014; 2015).

A observação aconteceu em um dia ensolarado. Os campos de treinamento do clube estão delimitados por um grande alambrado. Do lado de fora alguns arbustos foram plantados, com o objetivo de dificultar a visão de quem passa pelo local. No entanto, para quem chega é muito interessante perceber as brechas na cerca-viva, todas posicionadas em locais que privilegiam a visão para o campo de treinamento. Devido à frequência de observadores, a cerca-viva não cresce em alguns pontos, também podem ser vistas várias pisaduras e tijolos amontoados, feito bancos, percebe-se ser um local de fluxo intenso de pessoas. No dia da peneira o local é ocupado pelos familiares dos aspirantes a jogador. É um espaço emblemático, famílias observam e garotos se agarram ao alambrado, encostam suas cabeças na tela, apoiam-se e gesticulam, reagindo a cada jogada certa e posicionamento correto. Enquanto estão do lado de fora do alambrado, alimentam sonhos e o imaginário de um futuro promissor.

Futebol amador, Campo do Inconfidência, 2016. Foto: Ricardo Laf.

A dinâmica do futebol fora desse alambrado é muito diferente daquela praticada do lado de dentro. Os atletas da base que estão em treinamento no campo já apresentam condicionamento físico e nível técnico-tático muito superior. Embora a peneira não confronte os dois tipos de jovens, os atletas e os aspirantes, o simples fato de acompanhar simultaneamente as atividades desempenhadas permite perceber a abismal diferença que existe entre os que brincam de futebol e os que jogam futebol. Este é um primeiro alambrado a ser superado, a entrada em uma categoria de base.

Em outra observação no clube enquanto assistia ao treinamento da equipe profissional no gramado central do estádio, reparei os jovens atletas da base encerrando seu turno e indo em direção ao vestiário, e quando chegavam perto do alambrado (acrílico) paravam por alguns minutos admirando o treino coletivo e os jogadores profissionais. Logo, a imagem do primeiro alambrado retornou à mente e à lembrança de jovens encostados na tela, sonhando alto. Novamente, jovens agarram a cerca, apoiam-se e comentam sobre o treino. Agora ficou evidente que um segundo alambrado ainda precisava ser transposto, uma segunda fronteira carregada de novas relações e regras de convivência. Portanto, esses jovens atletas ainda não atingiram o objetivo final da profissionalização, como os aspirantes que não pertenciam a uma categoria de base que continuam a sonhar.

A percepção do alambrado como fronteira simbólica que sinaliza a conquista e a ampliação do campo de possibilidades na trajetória dos jovens atletas de futebol deve favorecer a compreensão dessa estrutura física que faz parte do cenário dos jogos. O alambrado físico que separa observadores e praticantes hoje durante a pandemia está solitário com a ausência do público e independente disto seu simbolismo sempre irá significar a conquista de metas que orientam sonhos e projetos, sejam eles para superação do primeiro deles, o da categoria de base e, por fim, do segundo, o da profissionalização.

Notas

[1] Outras tragédias em estádios marcaram o futebol brasileiro. Acesso em: 17 de jan. 2021.

[2] Esporte Espetacular explica de quem é a responsabilidade da segurança em um jogo. Acesso em: 17 de jan. 2021.

Referências Bibliográficas

DA CONCEIÇÃO, Daniel Machado. Estudante-atleta: caminhos e descaminhos no futebol – entre o vestiário e o banco escolar. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Ciências Sociais) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, 2014.

DA CONCEIÇÃO, Daniel Machado. O estudante-atleta: desafios de uma conciliação. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, 2015.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da. O alambrado que separa também marca ausência e sonho. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 36, 2021.
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