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O amador profissional

Marco Lourenço 24 de maio de 2011

A periodização da história do futebol brasileiro reserva à passagem do primeiro para o segundo quarto do século passado a ideia geral da tensão entre amadorismo e profissionalismo. A despeito das análises sobre os atores deste cenário futebolístico – imprensa, dirigentes de clubes, federações e atletas –, o conflito nos permitiu perceber ao menos dois fenômenos bastante relevantes.

De um lado, esse campo de disputa demonstrou que a referida incompatibilidade da essência do jogo, manifestada através do repúdio às formas profissionais e aos fins comerciais da prática do futebol, tornou-se muito mais presente na dimensão discursiva dos clubes e federações. Por outro lado, no terreno deste conflito iluminado pela fala em torno da defesa do futebol amador, erguiam-se pouco a pouco os alicerces de um dos maiores negócios da nossa era.

Defensores do modelo amador, os clubes de elite buscavam meios de preservar sua soberania dentro e fora das quatro linhas. Para tanto, asseguravam seu próprio protagonismo no debate, como guardiões de uma causa tida como legítima, ao mesmo tempo em que concentravam o controle do processo de transição rumo ao profissionalismo.

Tomar as rédeas deste processo permitiu que muitos destes clubes pudessem circular e forjar interesses nas ligas e federações, e assim, garantir sua competitividade e promover o desenvolvimento do futebol como atividade economicamente viável.

No limite, a herança deste processo é a consolidação do modelo profissional que apesar das diversas modificações, é posto em discussão a cada fracasso de um clube ou um selecionado nacional. Entretanto, a “vitória” deste modelo somente se perpetua com um significativo deslocamento de sentido dos termos em conflito. Amador e profissional esvaziam-se e se reagrupam com outros índices de valores que merecem atenção.

Com a ressalva das torcidas organizadas mais tradicionalistas que carecem de um comentário à parte, para o senso comum o amador deixou de ser o futebol de requinte, alto nível e passou a ser identificado ao jogo desinteressado, inferior. Por outro lado, hoje o elogio ao futebol é quase sempre associado ao profissionalismo que converge em alta performance e resultados. Na camada mais externa e visível do futebol reconhecido como “autêntico”, “ideal” e muitas vezes nostálgico encontra-se o vestígio do amadorismo transformado em “amor ao clube”, “amor à seleção” e “amor ao futebol”.

Foto: Alessandra A.

Neste ponto, aquele atleta, dirigente ou clube que souber gerir sua carreira e recursos sem abrir mão do discurso da redenção, ou seja, do amor pela profissão, conquista espaço cativo no panteão dos ícones do futebol. O caso exemplar da era mais midiática do futebol é Ronaldo.

O maior artilheiro das copas, campeão do mundo, melhor jogador do mundo e com um patrimônio milionário, Ronaldo Luís Nazário de Lima é o último brasileiro a entrar no seleto grupo de mitos do futebol não apenas pelos recordes, conquistas e lucros, mas por incorporar o modelo hegemônico do futebol, levando em conta a equação já anunciada acima.

Num “dois toques” bem amistoso entre Ronaldo e Marcelo Tas durante o 27º Congresso de Gestão e Feira Internacional de Negócios em Supermercados da Apas (Associação Paulista de Supermercados), no dia 12 deste mesmo mês, a efusiva plateia embriagada pelo bom humor do “fenômeno” assistiu ao elucidativo depoimento da celebridade futebolística. Na entrevista, falando sobre sua carreira, polêmicas, lesões, família, etc, Ronaldo aponta os elementos que delimitam esta equação do sucesso do futebol. Segue abaixo pequenos trechos da entrevista:

“O futebol ensina muita coisa, me ensinou muito como pessoa. Eu morei muito tempo fora e convivi com esse meio do futebol. Aprendi a ser disciplinado, a ser educado, a ter minhas responsabilidades”.

“Quanto ao jogo, ganhar ou perder, eu encaro com muita normalidade, pois futebol não deixa de ser esporte mesmo envolvendo muito dinheiro e muita expectativa”.

“A vitória é para mim, para meu clube, para a torcida, para os que me apoiaram, para os que gostam de mim“.

“Hoje eu vejo que o futebol ta indo para um bom caminho, com grandes investimentos e com presidentes de clubes que estão fazendo diferença”.

“Não era uma grande ambição minha ser o melhor do mundo e chegar no topo, mas eu dediquei minha vida toda para ser jogador“.

“O futebol precisa de grandes empresas para se manter”.

“A coisa mais importante pra mim foi que eu amava e amo muito o futebol. Sempre soube que nenhum obstáculo iria me tirar do meu foco que era ser jogador de futebol”.

Ao mesmo tempo em que expõe com clareza a dimensão mercadológica do futebol profissional, Ronaldo se distancia deste espaço resgatando a legitimidade do amador, ou seja, daquele que pratica o esporte, por prazer, altruísmo. Outro aspecto importante desta fórmula pode ser visto em sua fala pela presença da disciplina, aprendizado, educação e responsabilidade. Todos estes termos se remetem à postura do ídolo hors concours, equilibrado, um modelo a ser seguido tal como os sportsmen defensores do modelo amador. Enfim, aplaudir Ronaldo é algo quase inevitável. Ignorar o lugar que ele ocupa e o futebol que ele representa, um furo bem amador.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marco Lourenço

Professor, Mestre em História (USP), Divulgador Científico (Ludopédio) e Produtor de Conteúdo (@gema.io). Desde 2011, um dos editores e criadores de conteúdo do Ludopédio. Atualmente, trabalha na comunicação dos canais digitais, ativando campanhas da Editora Ludopédio e do Ludopédio EDUCA, e produzindo conteúdos para as diferentes plataformas do Ludo.

Como citar

LOURENçO, Marco. O amador profissional. Ludopédio, São Paulo, v. 23, n. 7, 2011.
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