Ele chora. E seu gesto chama a atenção do filho pequeno. Ambos estão juntos de novo. No estádio que tantas vezes foram em companhia um do outro. Na arquibancada que desde cedo o pai fez o filho se acostumar como sendo uma espécie de segunda casa. Ele chora. E o gesto impacta o filho. Que mesmo tendo ido tantas vezes ao estádio em dia de jogo, ainda não tem a compreensão plena das grandes dores que o futebol proporciona. Ele chora. E com o gesto, o menino chora também. Mesmo que, com tão pouca idade, ainda não devesse ter maturidade para tamanho sofrimento. Para aquele momento que marca para sempre os corações dos apaixonados.

Com o choro, vem a dor. O embrulho no estômago. A sensação doída de que o tempo parou e se eternizou em meio às trevas. E de repente, o filho não chora mais. Não de forma contida. Na verdade, ele está aos prantos. E como uma espécie de castigo, de quem começou a chorar por causa do pai, desta vez é ele quem contagia o velho e o leva também ao pranto. Um como o outro.

Choro que quebra barreiras. Diminui diferenças. Aproxima gerações. Ambos são crianças. Amigos do peito. Companheiros de futebol. Parceiros de alegrias. E de sofrimentos. O filho cambaleia. Mas antes da queda, sente uma vontade incontida de abraçar o pai. Abraça. Chora mais. E de repente, o pai, que queria se sentar, se despojar no cimento batido do velho estádio, se entregar à depressão momentânea, ao desespero covarde, à inércia atordoada de quem não quer reagir a nada, precisa encontrar forças sabe-se lá de onde para amparar o garoto.

Soluçam abraçados. Olhos cerrados. Não veem nada do que acontece em seus entornos. Não percebem que os jogadores, lá do campo, testam explicações inexplicáveis sobre como apequenaram o clube daquela forma. Coitados. Nem são os principais culpados. São, como os torcedores, vítimas da cartolagem que briga e dilapida o clube no extracampo, nas reuniões secretas que transformam futebol em esbórnias criminosas, no submundo de um esporte que, apesar disto, insiste em escapar do meramente lúdico para se transformar em fonte de identidade de um povo.

Pai_e_filho
Pai e filho assistem a uma partida de futebol. Foto: Max Rocha.

Choram e soluçam, pai e filho. Ainda reclusos num mundo só deles. Ainda de olhos fechados. Ignorando os pequenos focos de briga dos torcedores mais exaltados, que ensaiam um protesto de última hora. Desorganizados. Irados. Atônitos. Não veem ainda as reações incrédulas de quem está ante o inimaginável.

Poucos são os que não choram. Poucos são os que deixam o estádio, ainda que o jogo derradeiro já tenha acabado há pelo menos quinze minutos. O pai de repente lembra dos momentos de glória que ficaram no passado. Tempos de títulos. De festas. De bonanças e de futebol feito arte. Chega a esboçar um tímido sorriso nostálgico num canto de boca, curiosamente embasbacado com aquele gol inesquecível que, como tal, permanece em seu coração depois de tantos anos. Perpassa o gol em seu imaginário. Como se apegasse a algum rastro de felicidade passada para suportar a crueldade presente.

O sorriso indevido, contudo, não aplaca o choro. Que torna ainda mais intenso quando, de repente, leva um violento soco no estômago. Da vida. Do futebol. Da verdade incorrigível. E cruel. Chora porque lembra que o filho não chegou a viver aqueles tempos de júbilos. Chora por saber que foi ele, o pai, quem arrastou o filho para a paixão daquele clube específico. Chora por saber que o filho vai ter que se contentar com o rebaixamento, com a segunda divisão, sem nunca ter sido feliz na “primeirona”. Chora. E como antes, soluça.

No limite do desespero, ainda chorando, ainda abraçado com seu companheiro de paixões, sentindo a camisa do time do coração encharcada num misto de suor e lágrimas acumuladas, o pai se vê falando sozinho. “Por quê?”, pergunta aos deuses. Ato contínuo, contudo, é o filho quem responde. Voz falha. Coração apertado: “Não sei, meu pai. Não merecíamos isto. Mas sei que seguiremos unidos na Série B ou onde quer que seja”.

Pai e filho apertam o abraço. Este, de repente, mais sereno. Aquele, assustadoramente impressionado com a resposta madura do filho. Ambos levantam os rostos. Enxugam as lágrimas. Separam seus corpos. Seguram a mão um do outro. E começam a caminhar lentamente. É o início da volta para casa. Ainda com os corações dilacerados. Com a derrota de pouco tempo atrás latejando nos pensamentos desencontrados. Sufocados pelo rebaixamento. Mas desta vez, já caminham de forma mais sóbrias. Sabedores de que nenhuma queda, nenhuma derrota, nenhum abalo vai fazer fraquejar o amor que ambos têm pelo mesmo time. Amor que fazem deles mais próximos. Mais amigos. Mais cúmplices. Uma só essência.

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Phelipe Caldas

Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos, mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba, graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela UFPB. É escritor e cronista, com quatro livros já publicados. Integra o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade (LELuS/UFSCar) e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnografias Urbanas (Guetu/UFPB). É membro-fundador da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme).

Como citar

CALDAS, Phelipe. O amor e a tristeza unem. Ludopédio, São Paulo, v. 79, n. 3, 2016.
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