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O atacante da revolução

Roberto Jardim 22 de dezembro de 2019

Aos 82 anos, Rachid bem poderia ser mais um daqueles aposentados comuns que passeiam pelas ruas ou jogam xadrez e conversa fora nas praças da maioria das cidades do mundo. Quem conhece a história da independência da Argélia e do futebol europeu e norte-africano sabe, porém, que ele teve papel importante dentro e além das quatro linhas.

Craque com a bola nos pés, ele sabia bem da importância da representação do seu nome. Por isso, fez algo inimaginável para os tempos atuais. Rachid não teve receio de deixar de lado uma carreira de sucesso, cotado que era para disputar uma Copa do Mundo, para ser um dos garotos-propaganda da revolução que transformou a região no Norte da África em um país livre do colonialismo francês.

Rachid em um grupo de outros 31 companheiros, que atuavam em sua maioria em times franceses deixaram seus clubes para formar uma seleção de futebol que faria a defesa da libertação da Argélia. Era o braço futebolístico da Front de Libération Nationale, ou, em português Frente de Libertação Nacional, ou a popular FLN. O objetivo era arrecadar fundos para uma campanha pacífica pela independência e levar a palavra da necessidade de liberdade daquele povo mundo afora.

Assim, em 1958, às vésperas do Mundial da Suécia, eles saíram clandestinamente da França, para cruzar o Mediterrâneo e ajudar a formar a seleção da FLN. Durante quase quatro anos, foram aos países que aceitaram recebê-los, para disputar partidas amistosas de futebol e levantar a bandeira por uma Argélia independente.

Foi uma experiência que mudou a vida de Rachid. Como ele mesmo contou recentemente ao site sofoot.com:

– Antes, eu era como todos os jogadores de futebol, um pouco de cabeça no ar. Não me importava com muitas coisas. Depois, tornei-me um homem, não mais apenas um jogador de futebol. Muitas coisas abriram meus olhos, ensinaram-me a pensar, a analisar.

A aventura pode ter custado a Rachid a presença em uma Copa – ele esteve em outra, em 1982, como técnico da Argélia. Rendeu-lhe, porém, a admiração de dois povos e um lugar cativo no panteão dos jogadores politicamente engajados. Por isso, é dele a camisa 11 do Democracia Fútbol Club.

Ascensão interrompida pelo idealismo

Rachid Mekhloufi nasceu em 12 de agosto de 1936, em Sétif, cidade do Norte da Argélia, na época ainda colônia francesa. Teve uma infância pobre, mas com forte presença dos pais:

– Meu pai era um homem maravilhoso. Era um policial, com o rigor que isso acompanha. Para ele, a escola estava sempre em primeiro lugar. Mas eu estava mais perto da minha mãe. Ela me ajudou tremendamente na vida.

Foi na sua cidade natal que começou a disputar suas primeiras peladas e, mais tarde, a sonhar com o futebol como profissão. E, como dez entre dez jogadores, teve a infância ligada à bola. Em entrevista recente, disse no que pensava quando era criança:

– Jogar bola (risos). Tive essa obsessão. Esse desejo de jogar, de me aperfeiçoar para o trabalho. Foi algo extraordinário. Eu esquecia até a escola por causa do futebol. Mas acho que todos os argelinos, todos os africanos, todos os jovens que jogam futebol se sentem assim.

Em meio a essa paixão pelo futebol, Rachid teve uma experiência forte, como milhares de seus conterrâneos. Aos nove anos, presenciou o que entrou para os livros de História como Massacre de Sétif – em 8 de maio de 1945, soldados franceses abriram fogo contra uma manifestação contrária à dominação francesa, matando mais de cem pessoas.

– Foi um momento muito difícil para todos os argelinos. Para os olhos das crianças, eu tinha nove anos, foi um desastre. Fiz perguntas, mas ninguém conseguia responder… Foi algo terrível. Não desejo que ninguém viva isso – tentou resumir ao site sofoot.com.

Entre a infância e a adolescência, entrou para as categorias de base do USM Sétif, antigamente chamado de Union Sportive Franco-Musulmane de Sétif, hoje, sem o gentílico franco. Alguns anos depois, em 1954, aos 18 anos, foi contratado pelo Saint-Etienne a pedido do técnico da equipe francesa, Jean Snella.

Desembarcou na França em 4 de agosto e assinou seu primeiro contrato profissional com os Verdes. De início teve cinco anos exemplares. Foram quatro títulos entre 1954 e 1958: um Francês da primeira divisão, na temporada 1956-1957 (marcando 25 gols), uma Supercopa da França, em 1957, e duas Copa Charles Drago, em 1955 e 1958.

Habilidoso, ágil e criativo, rapidamente caiu nas graças da torcida alviverde, passando a ser apontado com uma das grandes esperanças do futebol francês, sendo convocado para a seleção francesa já no seu segundo ano na equipe. Em 1956 e 1957, foi chamado quatro vezes para defender os Bleus, chegando a jogar em Buenos Aires, no antigo Campeonato Mundial Militar, no qual conquistou a medalha de ouro, em 14 de julho de 1957.

Seu talento com a bola no pé o colocava entre os favoritos para integrar o time da França que disputaria a Copa do Mundo de 1958, que aconteceria em maio, na Suécia. Um mês antes, porém, o amor pela terra natal falou mais alto.

Levantando a bandeira da independência

Mesmo sendo o último avisado da aventura – como seu pai era policial, os organizadores do plano temiam que algum contato entre os dois pudesse atrapalhar –, e considerado apolítico à época, Rachid não fez corpo mole, como contou ao periódico esportivo francês L’Équipe:

– O que me fez participar (da seleção da FLN) era a ideia que os franceses tinham sobre a Argélia e os argelinos. Como eles nos consideravam inferiores, nos rejeitavam e nos maltratavam.

Ao Le Monde Afrique, complementou:

– Nasci em Sétif e vi coisas terríveis, especialmente durante o massacre de maio de 1945. Disse a um dos companheiros que me convidou para a FLN que eu seria considerado um desertor porque estava prestando serviço militar. E ele respondeu: “E daí?”. Percebi, então, que não era hora de discutir.

A participação de Rachid, porém, só foi possível por conta de um “resgate” cinematográfico, organizado por seus companheiros. Um dia antes da viagem, nosso camisa 11 havia levado um golpe na cabeça durante uma partida contra o Béziers, pela Copa da França.

Como teve de ser hospitalizado para ficar em observação, alguns dos jogadores argelinos se disfarçaram de enfermeiros para tirá-lo do hospital, em Saint-Etienne. Assim, na noite de 13 de abril do ano do Mundial, ao lado de outros nove conterrâneos norte-africanos, ele cruzou fronteiras e o Mediterrâneo para voltar à África natal.

Os jogadores argelinos viajaram em dois grupos para evitar qualquer suspeita. Quando os dirigentes dos clubes, a imprensa e as autoridades descobriram a “fuga”, os dez atletas já haviam passado pela Suíça e estavam na Itália, a caminho de uma embarcação para chegar à Tunísia.

– Éramos cinco em um Simca. A viagem durou dois dias, via Suíça e Itália. Tínhamos um pouco de medo de ser presos pela polícia francesa – resumiu ao Le Monde Afrique.

Na capital Tunis, onde estava instalado o governo provisório da Argélia durante a guerra, eles se uniram à recém-criada seleção da FLN. A equipe, que vestia camisa verde e calções e meias brancas e era planejada desde o fim do ano anterior, havia sido fundada dias antes. Os cinco se somaram a outros 29 jogadores – a maioria vinda de 18 clubes franceses.

Antes, porém, vale uma explicação sobre a luta pela independência da Argélia. Como boa parte do Norte da África, o país era dominado pela França desde 1830. Com a derrota francesa na Indochina, em 1954, os argelinos resolveram se organizar e iniciar uma guerra de guerrilha inspirada nos vietcongues do Ho Chi Minh, liderada pelo Front de Libération Nationale. Até 1962, quando houve o fim dos combates com a realização de um plebiscito pela independência, estima-se, 260 mil pessoas morreram no conflito.

Voltando à formação da seleção da FLN, já nos dois primeiro jogos, ainda em abril de 1958, em Tunis, o time mostrou a que vinha. Venceu o Marrocos por 2 a 0 e a Tunísia por 6 a 1. As boas apresentações da estreia reforçavam o desejo de usar o futebol para promover pacificamente a criação de um Estado argelino independente.

Como era um time formado por jogadores habilidosos e sem compromisso de vitórias, o principal objetivo daquela equipe era apresentar um futebol bonito, solto, envolvente e alegre, bem ao estilo de jogo de Rachid. Rapidamente o grupo tornou-se uma espécie de time-show, e ainda conseguindo resultados expressivos.

Mesmo com a pressão da França para que a FIFA banisse quem aceitasse disputar amistosos com o time da FLN, a equipe disputou 91 jogos em quatro anos. A maioria dos confrontos foi contra equipes ou seleções do bloco soviético (vale lembrar que estávamos em plena Guerra Fria) ou simpáticas à causa argelina. Foram 65 vitórias, 13 empates e 13 derrotas, com 385 gols marcados (média de 4,2 por partida) e 127 sofridos.

Com o fim do conflito, em 1962, a equipe da FLN se dissolveu em março daquele ano. E, como gesto simbólico, um ano após a independência, o presidente argelino, Ahmed Ben Bella, que nos anos 30 e 40 fora um talentoso jogador de futebol, filiou o país à FIFA antes de tornar-se membro da ONU.

A importância daquela seleção nunca foi esquecida pelos argelinos. Antes mesmo do fim da guerra, em 1961, o então presidente do governo provisório, Ferhat Abbas, resumiu a função do time de Rachid e companhia:

– A seleção da FLN fez a causa da independência ganhar dez anos!

A volta em grande estilo

Por conta do “ato de traição”, porém, Rachid não pode voltar imediatamente ao clube que deixará para trás. Firmou contrato, então, com o Servette, de Genebra, comandado pelo seu ex-técnico e descobridor Jean Snella.

E foi justamente a volta de Snella para o Saint-Etienne, no final de 1962, que possibilitou o retorno de Rachid aos Verdes. Ele estava receoso com a reação da torcida. Afinal, havia abandonado a equipe em meio a uma temporada e, agora, o clube estava na segunda divisão. Na primeira partida, a recepção foi fria. Logo mudada pelos primeiros toques de Rachid na bola. Ele lembrou, anos depois:

– As pessoas não haviam ido ao estádio para ver o fellagha (termo usado para descrever um combatente argelino) ou o desertor. Foram ver o jogador de futebol.

Como dizem que o bom filho à casa torna, sua volta, em 1963, não poderia ter sido melhor. Isso porque seu futebol parecia ter melhorado nos quatro anos jogando pela FLN. Ele mesmo resumiu sua mudança à revista Football Magazine, em 1967:

– Aprendi muito olhando para os outros. Vi nos húngaros uma invenção criativa sempre nova. Os iugoslavos são grandes artistas da bola, mas também lutadores. Na China e no Vietnã também aprendi algo, a alegria de jogar e a simplicidade no jogo, qualidades que tendemos a negligenciar.

Em outra entrevista, em setembro de 2017, Rachid comparou seu estilo de jogo antes e depois da aventura libertária para o site sofoot.com:

– Fui dois tipos de jogador. No início, era um oportunista que se lançava em todas as chances para fazer gol, só pensava nisso. Após o épico da equipe da FLN, tornei-me um mágico, grande estrategista, ótimo técnico, e ainda artilheiro.

Já na primeira temporada, ajudou o clube a conquistar a Ligue 2, a segunda divisão francesa. Nos anos seguintes, com Rachid em campo, o Verdes ergueram três Ligue 1 (1963-1964, 1966-1967 e 1967-1968), mais uma Supercopa da França (1967) e uma Copa da França (1968).

Esse último título, por acaso, marcou a sua última partida pelo Saint-Etienne. No mítico estádio Colombes – palco dos Jogos Olímpicos de 1924 e da Copa do Mundo de 1938 –, Rachid fez os dois gols na vitória de 2 a 1 sobre o Bordeaux, encerrando com grande estilo uma trajetória exitosa no clube francês – foram 337 partidas e 152 gols marcados.

Ainda atuaria mais três anos, pelo Bastia, clube pelo qual também foi treinador na última temporada com as chuteiras nos pés, 1969-1970. Como técnico, ainda comandaria a seleção da Argélia entre 1971 e 1972, entre 1975 e 1979 e em 1982. Nessa última passagem, esteve à frente da equipe durante a Copa do Mundo da Espanha.

E o time de Rachid surpreendeu. Só não foi à frente por conta do saldo de gols e de uma partida polêmica, entre Alemanha e Áustria. Na primeira fase, a Argélia venceu a Alemanha, que viria a ser vice-campeã, e perdeu para a Áustria por 2 a 0. Empatada em pontos com alemães e austríacos, os argelinos bateram o Chile por 3 a 2.

No mesmo horário, a Alemanha vencia a Áustria por 1 a 0, no “jogo da vergonha”. Como o resultado beneficiava as duas equipes, que se classificariam, os dois times ficaram tocando a bola para os lados, sem levar perigo ao gol adversário, mesmo sob vaias e protestos do público presente no estádio El Molinón, em Gijón.

Mesmo afastado do dia a dia do futebol desde 1988, quando comandou a Federação Argelina, Rachid continua envolvido com o esporte. Em 2010, ajudou a criar a Fundação FLN, que lançou um grande projeto para o desenvolvimento do futebol na África, com a criação de várias escolinhas. Além, claro, de contar orgulhosamente seus quatro anos de atacante da revolução, com fez ao site France 24:

– Posso dizer “obrigado, meu Deus” por me dar este time, porque me parece que sem ele eu teria sido incapaz de falar com você como faço hoje. Os contatos que tivemos com chefes de Estado, revolucionários, pessoas comuns, jornalistas abriram minha mente. Antes eu era um idiota! Era um cachorro louco no Saint-Etienne e, de repente, tornei-me um artista! Isso enriqueceu minha carreira.


ÚLTIMO CAPÍTULO: Foi um revolucionário dentro de campo, fazendo seus times jogarem como uma equipe de basquete – todos marcavam e todos atacavam. Mesmo discreto, também teve sua participação na luta contra a ditadura uruguaia: Técnico — José Ricardo de León — Um técnico adelantado

ANTERIORMENTE: O craque que fez questão de não baixar a voz quando o assunto era ditadura e democracia: 10 — O goleador do punho cerrado


A série tem a colaboração de Diego Figueira, na revisão dos textos, e do craque do traço Gonza Rodriguez, nas ilustrações.

A ideia é manter o Democracia Fútbol Club na ativa. Queremos ir atrás de mais histórias de times e clubes, de torcedores e torcidas. Afinal, como disse o técnico uruguaio Óscar Tabárez, o futebol é uma excelente desculpa para falarmos de outros assuntos. E é sobre isso que queremos falar. Futebol e outros assuntos. Assim, estamos aqui, pedindo uma força para vocês! Apoie o Democracia Fútbol Club.

 

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Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. Autor dos livros Além das 4 Linhas e Democracia Fútbol Club.Como fazer jornalismo independente, mantém uma campanha de financiamento coletivo no Apoia.se, que ajuda na produção do projeto Democracia Fútbol Club, que tem o objeto de contar a história de jogadores e técnico, times e clubes, torcedores e torcidas que usaram a desculpa do futebol para irem além das quatro linhas.

Como citar

JARDIM, Roberto. O atacante da revolução. Ludopédio, São Paulo, v. 126, n. 26, 2019.
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