O Atlético na pré-Libertadores: de novo, Montevidéu
Belo Horizonte, Terminal JK, domingo, 17 de fevereiro de 2019, 21h
Somos anfíbios,
sobrevivemos igualmente na casa e na rua
respiramos na casa e respiramos na rua
entramos em casa com os pulmões cheios de ar da rua
e devolvemos depois à rua um punhado do ar da casa
em casa trocamos de pele para sair à rua
levamos coisas como quem parte em uma excursão
adendos, próteses, maquiagem, enfeites
saíamos para a casa para fora da rua, dobramos as ruas
para dentro de casa – o lado de fora do lado de fora –
e não nos cega a luz súbita da rua, nossos olhos
se adaptam, somos anfíbios.
Ana Martins Marques.
3 de setembro de 1974
Escrever o corpo.
Nem a pele, nem os músculos, nem os ossos, neo os nervos, mas o resto:
um isto balofo, fibroso, peluciosos, esfiapado, o casacão de um palhaço.
Roland Barthes.
Miro está no Terminal JK partindo para Montevidéu. Primeiro, vai para Foz do Iguaçu no ônibus dos comerciantes do Shopping Oiapoque, que descem com suas sacolas para o Paraguai em busca de baratas novidades. São 1500 km. De lá, ele ainda anda mais uns 1300 km de chão para o Estádio Luis Franzini, onde o Atlético joga contra o Defensor na quarta-feira. Essa maneira foi a única possível encontrada por Miro, a viável financeiramente. Assim, em cima da hora. Afinal, só hoje pela manhã foi confirmado o adversário do Atlético na última fase da pré-Libertadores, impedindo que ele pudesse comprar a passagem aérea para Montevidéu com antecedência. Hoje, o bilhete não saía por menos de R$ 2.300,00. E para quem ganha não mais que o dobro disso…
Tudo indicava que o Atlético voltaria mesmo ao Uruguai, como já divulgado pelas tabelas. Na fase anterior, dentro de campo, o Defensor fracassou duas vezes – 1 a 2 e 1 a 0. Jogou mal. É um time fraco. Mas, fora dele, venceu, por conta da escalação de jogador irregular do Barcelona, de Guayaquil. Vacilo desse tipo é amadorismo demais da diretoria do clube equatoriano, um desrespeito com os seus profissionais e torcedores.
Enfim, o Atlético já começa com muita sorte, pois enfrentará um adversário mais fraco e voltará a jogar no mesmo local onde estivemos semana retrasada, eu e o Miro, para empatar com o Danubio por 2 a 2. Vale lembrar que, na última terça-feira, no jogo de volta em casa, eliminamos esse time no sufoco por 3 a 2. O Galo estava ganhando por 3 a 0 até o finalzinho do primeiro tempo, porém, o Patric, O Alegórico, simplesmente quase arrancou a cabeça do adversário dentro da área. O Independência estava abarrotado, metade dos torcedores já estava se levantando para ir ao banheiro e para as filas de cerveja, mas, tipo, do nada, o juiz apitou um pênalti para os uruguaios. Não seria estranho se a bola nem estivesse em jogo, pois com ele em campo sempre pode ocorrer uma jogada muito inusitada, contra ou a favor do time. Neste início de temporada, o lateral-direito tem sido, sem dúvida, o jogador mais destoante do time, muito cheio de rompantes, além de já ter sido amarelado nos dois jogos da Libertadores e de já ter até cumprido suspensão no início do Mineiro.
Miro escreve no seu caderno de viagem: “É muito interessante ver o Patric em campo pelo Galo”. Pela janela, compra duas garrafinhas d’água da ambulante. O ônibus parte. Miro está voltando novamente a Montevidéu. Ele percorrerá cerca de 6000 km de estrada para ver o seu time jogar mais uma vez.

– Então, deixa eu repetir pra ver se entendi direito. Veja se é isso mesmo: a saída é hoje, 17 de fevereiro, às 21h, de ônibus, do JK?
– Isso, senhor. No letreiro do ônibus, estacionado em frente ao terminal, vai estar escrito Foz do Iguaçu.
– Entendi… A previsão de chegada em Foz do Iguaçu é amanhã às 21h?
– Isso, senhor, são 24 horas de viagem. Chegando lá, vai ter gente da empresa pra atravessar a Ponte da Amizade até a Ciudad del Leste, no Paraguai, onde o senhor pegará o ônibus às 23h59, sem atraso, para Encarnación, ainda no Paraguai, já na divisa com a Argentina.
– Chego em Encarnação por volta das 5h da manhã?
– Isso, senhor.
– Perfeito…! E, lá, terá uma van da empresa esperando pra atravessar a outra ponte?
– Isso, senhor, a Ponte Internacional San Roque González de Santa Cruz, que liga Encarnación a Posadas, na Argentina, onde o senhor pegará o ônibus às 7h da manhã pra Montevidéu. Muito em breve, esse trajeto será de balsa. Mais alguma dúvida, senhor?
– Chego a Montevidéu depois de amanhã, terça-feira, dia 19, às 22h?
– Por volta disso…
– Ou seja, dois dias de viagem pra ir e dois dias pra voltar…?
– Por volta disso, senhor, não menos. Com café da manhã, almoço e lanche noturno incluídos. Nossos motoristas são excelentes. Há muito entretenimento na viagem, o senhor não vai achar nada melhor. Eu trabalho no ramo há 20 anos, sei o que estou falando. O senhor volta na quarta às 23h59, não é mesmo?
– Então, era sobre isso que eu estava falando… O jogo acaba por volta das 23h30, você acha que dá tempo, senhora?
– Já disse que dá tempo, senhor. Posso emitir o bilhete?
– R$ 800,00?
– São R$ 800,00 à vista ou quatro parcelas de R$ 225,00. Vai querer a reserva daquela hospedagem perto do estádio, senhor? De terça pra quarta…
Miro, nosso professor de Educação Física, já aposentado, aos 40 e poucos anos, por invalidez, recebe em torno de quatro salários mínimos. O dinheiro sempre deu, sempre dá, não reclama. Nunca reclamou de dinheiro, não faz dele um problema. “Esse negócio de dinheiro é tudo imaginário”, costuma dizer. Vive bem, sem grandes infortúnios, só tem esta excentricidade: acompanhar o seu time de perto na competição sul-americana. No mais, vive sua vida sozinho em sua casa na rua Erê, no Prado, herdada do seu tio-avô, o Belmiro, um amanuense. Tem grandes amigos, preza muito a amizade. Atualmente, não tem mais gastos com o sua prótese mecânica. Um dia, posso contar os detalhes de seu acidente ao aterrissar na Pampulha, voltando de uma partida do Atlético no Morumbi. Ele perdeu o braço esquerdo.
Segunda-feira, 18 de fevereiro, 11h
– Bom dia, pessoal, bom dia! Trinta minutos de parada. Quem quiser almoçar, escovar os dentes, ir ao banheiro, tomar banho, fumar, tomar café… A próxima parada será só daqui a quatro horas.
Miro está sonolento, dormiu praticamente direto. Por volta das 9h, recebeu um áudio lhe informando sobre o assassinato de um amigo de infância. Eles estudaram juntos de 1981 a 1988. Foi o primeiro amigo que Miro conheceu quando se mudou da capital para o interior, onde estudou todo o seu primeiro grau. Eles jogavam bola. Eles eram os únicos atleticanos da sala. Agora, ele está ali meio atordoado. Não quer sair do ônibus. Só ele fica no ônibus. Está meio abobado. Não conseguiu chorar. Muitas lembranças do amigo profusas na cabeça. Sente que algo morre nele também. Miro pega seu caderno de capa preta e começa a escrever para tentar se organizar. Primeiramente, ele rabisca à procura de sentir a pulsação e o peso da sua mão, meio trêmula e exasperada. E escreve o que lhe vem à cabeça.

– Você sabe que eu vou com você até a morte, né? Você sabe que você vai morrer primeiro. E eu vou lá colocar a bandeira do Galo no seu caixão. O meu amigo falava isso direto, porque eu era apenas um dia mais velho do que ele. E ria. – E depois que o Zé da Cova jogar a última pá de terra, eu ainda vou dar aquela mijadinha, emendou uma vez o safado. E riu. E rimos. E ríamos muito.
Estou apaixonado, apaixonado estou
Estou apaixonado, apaixonado estou
Pela dona do primeiro andar
Pela dona do primeiro andar
Pela dona do primeiro andar
Pela dona… do primeiro andar
Pela dona do primeiro andar
Pela dona do primeiro andar
Pela dona do primeiro andar
Pela dona…
Seu sorriso de criança era o que eu mais queria
Implorei o seu amor ao menos por um dia
Agora estou sofrendo, apaixonado estou
Pela dona do primeiro andar
Pela dona… do primeiro andar
Pela dona do primeiro andar
Pela dona do primeiro andar
Pela dona do primeiro andar
Pela dona… do primeiro andar
Pela dona do primeiro andar
Pela dona do primeiro andar
Pela dona do primeiro andar
Pela dona…
E cantávamos esta música d’Os Originais do Samba num repeteco imortal. A gente fechava o olho e cantava. E ria. E ria e ria e ria. E girava a cabeça, o corpo, a cantar. E caíamos no chão de tanto rir, extenuados. Era um prazer. A gente sabia que aquela música era nossa, porém fingíamos não saber. A sala se enchia de amor, era visível. Era nessa atmosfera que a gente vivia quando a gente estava a sós. Agora, ele está morto. Agora, é ele quem está morto. E eu não estou lá pra lhe estender a bandeira do Galo.
Uma única vez, ele foi a Belo Horizonte me visitar. Fomos naquela semifinal do Brasileiro de 1999, no jogo em que o Vitória levou três do Atlético, escalado assim, lembro-me bem: Velloso; Belletti, Caçapa, Galván e Ronildo; Valdir, Gallo, Bruno e Robert; Marques e Guilherme, que meteu dois. A gente não se via há uns dez anos. Depois, fomos para uma gafieira e relembramos as músicas d’Os Originais:
Pra ser feliz é preciso cantar
Canto e desfaço a tristeza que trago no olhar
Sei que há perigo na briga cruel dessa vida
Quando a cilada armada conduz à descida
E quem se esconde na sombra a se lastimar
Vai colher ódio somente por tudo que há
Canto o amor e me esquivo dos males da vida
Zombo de quem só odeia com medo de amar
Canto amor e me sinto feliz em cantar
Amor que trago no peito amor que tenho pra dar.
E rimos muito, falamos muito, excitados que estávamos com o jeito um do outro. SERÁ QUE ELE MORREU COMO? QUEM O MATOU?
Terça-feira, 6h
E riram e riram. E rirão? E Miro adormeceu. A caneta e o caderno caíram de suas mãos. Agora, ele está saindo do café e entrando no ônibus: Posadas-Montevidéu. Fez a última baldeação, do Paraguai para a Argentina. Conseguiu comer, conseguiu chorar. Teve pesadelos durante toda a madrugada. Teve bons sonhos também, esteve no mundo das gargalhadas. Miro só dorme. Está tonto, pálido, estranho. O seu melhor amigo de infância morreu. Miro perdeu um depositário de suas memórias. E, agora, confia algumas delas ao seu diário, embora um pouco desacreditado de sua potência. Passar a vida a escrever, para quê? Escrever não vale a pena. E se ele escrever, por exemplo, sobre todas as coisas de que ele gosta e de que ele não gosta? Teria isso importância para alguém?

Terça-feira, 7h
Gosto de: salada, gengibre, queijo, pimenta-do-reino, festas populares, cheiro de dama-da-noite e de grama cortada, pelos, cuecas curtas, vinho, teatro, Clarice, chás (qualquer um), dormir sozinho com travesseiros, café com leite, baseado, Pasolini, andar a pé, banana, morango, frutos do mar, cozinhar, esportes coletivos com bola, pouco sal, romances de um só personagem, goleiros, água, Caetano, Marina, toda a MPB, Herberto Helder, Noll, madrugadas, Al Berto, Foucault, Llansol, lavar, substância volátil, êxtase, foder, cenas, iniciativas, mochila, Deleuze e Guattari, andar descalço, jogos do Éder, gatos, ovos etc.
Não gosto: de brincos, de homens de calça, de espinhos, de ressaca, de mentiras, de dormir pouco, de certezas, de desenho desanimado, de faladores (quem mal escuta), de residir em prédio, de DSTs, de preservativo, de quem não abraça, de música instrumental, de motel, de gente rígida, de Rolling Stones, de grupos de WhatsApp, de criança com pais por perto, de temperatura abaixo de zero, de cigarro, de incenso, de dirigir, de sua arrogância e de seus rompantes, de polarizações, de monogamia, de espertos ao contrário, de me privar com desafetos etc.
Gosto não gosto: Tudo isto quer dizer: o meu corpo não é o mesmo que o seu. Neste gosto/não gosto, desenha-se o enigma corporal pedindo para concordar ou não. Aqui começa a intimidação do corpo que obriga o outro a suportar-me liberalmente, a ficar silencioso e cortês perante prazeres ou recusas que ele não partilha. (Miro transcreveu este trecho remendando, modificando, partes do seu livro de cabeceira: Roland Barthes por Roland Barthes).

Quarta-feira, 20 de fevereiro
Miro se hospedou na pensão reservada pela simpática moça do Terminal JK, que lhe atendeu ao telefone. Ele resolveu acordar naturalmente, sem despertador. Ele chegou com uma dor fodida no cóccix, cabeça pesada… Desta vez, não teria que sair para comprar os bilhetes do jogo, pois estariam à venda pela internet.
Depois do almoço, Miro comprará flores para deixar, anonimamente, no Hospital Italiano de Montevideo, destinadas à dermatologista que me atendeu, há duas semanas, e bem diagnosticou aquelas manchas vermelhas na minha pele. Ele andará o dia todo. Ele já deixou sua bagagem no ônibus. Miro quer andar muito para muito se cansar e dormir durante toda a viagem de volta para sua casa.
Agora, a pé, ele está indo em direção ao estádio, resoluto. O jogo será às 21h45. Ele está triste por causa do infortúnio do amigo, de seu infortúnio, mas muito confiante que levará, daqui, a vitória, com muita força, em sua homenagem. Imagino que ele vai chorar ao cantar o hino do time, pois lembrará do amigo e das muitas vezes que cantaram a vida juntos. “Tem dia que é foda; ou melhor, tem dia que não é foda. Faz parte…” – pensou e sorriu.
Quanto ao jogo, o Atlético entrará em campo com a mesma formação, ofensiva, da partida anterior: Victor; Patric – O Alegórico –, Réver, Igor Rabello e Fábio Santos; Adilson, Elias, Cazares, Luan e Chará; Ricardo Oliveira. Hoje, o Juan Cazares e o Luan podem desmontar os defensores uruguaios. Eles têm uma visão de jogo muito acima da média. Arrisco a dizer que a noite será do nosso craque equatoriano, que por sinal, adaptou-se muito bem em Belo Horizonte, já está em sua quarta temporada, e que o Galo ganhará os dois jogos, entrando definitivamente para a fase de grupos da competição. A estreia será em casa contra o Cerro Porteño, do Paraguai. Depois, retornaremos para Montevidéu e enfrentaremos o Nacional. O grupo conta ainda com o pouco expressivo Zamora, de Barinas, na Venezuela.
Estamos mirando as oitavas. A cova, por ora, não; só uma mijadinha. A vitória de hoje é sua, meu amigo. Um abraço forte e um beijo. Avante! Essa bandeira será sempre nossa.
– Ôôôôôôôôôôô-ôôô!, vai pra cima deles, Galô!