117.15

O Atlético pela terceira vez em Montevidéu: os pródromos do Miro

 

[…] A vida eterna não existe
Sentou-se arranjando as saias, para assistir à produção do texto.
Este texto é um texto que assiste à produção do texto.
Este texto é a cena primitiva do texto.

Uma data em cada mão, Maria Gabriela Llansol.

 

Bagagem do Miro a dois dias da viagem: máscara tapa olhos, garrafinha d’água vazia, Uma data em cada mão, duas canetas, caderno e sacola plástica com objetos de uso pessoal – escova e pasta de dentes, fio dental, desodorante, sabonete, própolis, luva, lubrificante, preservativos, nitrato volátil, citrato de sildenafila e um êxtase.

Objetos pessoais do Miro.

 

Geralmente, Miro não toma remédios, às vezes, usa alguns aditivos para a prática sexual. Seu maior plano é mesmo nunca ficar doente. Para isso, ama, joga e andarilha, além de comer absolutamente de tudo, tudo. Tem um respeito imenso pelo alimento que o nutre e o faz melhor sonhar. 

No intervalo de aproximadamente um mês, Miro volta a Montevidéu pela terceira vez, por conta da tabela da Copa Libertadores que levou o Atlético a jogar por lá, contra o Danubio e o Defensor, pela fase preliminar, e, desta vez, contra o Nacional, um dos dois times de mais tradição do Uruguai. Consequentemente, Miro passou o último mês em viagens, sempre com a estranha sensação de nunca regressar a lugar algum, vagando por embarcações, rodoviárias, aeroportos, transportes públicos, hotéis, bares, danceterias, restaurantes, estádios de futebol e locais anômalos, fora dos mapas turísticos. Lugares de passagem, movimentados, onde, por um lado, somos anônimos, graças à identidade quase em suspensão, e, por outro, não os somos, porque, a qualquer momento, podemos ser chamados a mostrar a cédula de papel, como a nos convocar para operações de guerra que desconhecemos.

Quanto à batalha de hoje à noite, no estádio Gran Parque Central, não há dúvidas de que será duríssima. Afinal, as maiores glórias do Nacional foi atingir as finais dessa competição em seis oportunidades, vencendo a metade delas e os três mundiais disputados: em 1971, com o extraordinário brasileiro Manga no gol, em 1980, destacou-se o goleiro Rodolfo Rodríguez, que atuou por uma década no futebol do Brasil, e em 1988, quando igualmente o goleiro, Jorge Seré, El Superman, foi um dos personagens principais da histórica final, em Tóquio, definida dramaticamente na mais emocionante disputa por pênaltis da Copa Intercontinental: Nacional 7 a 6 PSV. No tempo normal, seguido de prorrogação, o resultado foi, respectivamente, 1 a 1 e 2 a 2, com gols dos sensacionais Romário e Ronald Koeman, para os holandeses, e do predestinado Santiago Ostolaza, para os uruguaios, um deles no último minuto do jogo.

Bagagem do Miro complementada, um dia antes da viagem: short de pijama, uma bermuda e uma calça, camisa do Atlético, lenço, boné, sandália e três camisas, cuecas e pares de meia.

“A eternidade inexiste. Sentou-se ajeitando os testículos entre as pernas para escrever o texto que assistirá à produção do texto. Este texto é a cena primitiva do texto – tradução ao meu bem português”. Encontrei isto anotado na primeira página do caderno de viagem do Miro, esquecido por ele na poltrona do traslado tomado, antes de mim, do aeroporto ao mesmo hotel. Deixei-o na portaria, mas não sem antes bisbilhotá-lo, fotografando alguns trechos, durante o trajeto.

Excerto do caderno de viagem do Miro.

 

Toda vez que Miro se depara com palavras, frases e expressões duplas, faz com que elas conservem seus dois sentidos. Pródromo é uma dessas, que ao mesmo tempo pode dizer texto inicial e sinal de doença. A escrita, sempre iniciática de Miro, parece ser o seu sintoma. A escrita parece ser o seu maior remédio.

Excerto do caderno de viagem do Miro.

 

É preciso ler o poema [em voz alta] para perceber melhor su[as vol]tagens. 
É preciso sair [e ca]minhar, refletindo so[bre el]e.    

É preciso sentir [o p]oema, no estômago.

 

Sempre estive nos mesmos lugares onde o Miro esteve, dando-lhe voz. Miro é o melhor que pari para o mundo. Porém, agora, ele parece não precisar mais de mim. Ele começa a andar sozinho pelas ruas, a falar outra língua, outro sotaque. Ele se esconde de mim e guarda segredos. Funda-se, então, uma voz criando outra voz: ____________. Mas a voz é o que falta ao texto.

No mês passado, um amigo me disse ter visto o Miro caminhando na Praça da Liberdade, assobiando e cantarolando, daquele seu jeito, meio distraído, a música “Termina aqui”, do Jorge Aragão, gravada no Patota do Cosme, do Zeca Pagodinho:

          Meu amor se fosse assim – assim
          Bem calmo e mais sereno
          Seria bem melhor pra mim – pra mim
          Um sorriso mais ameno.  
  
          Nosso amor está pequeno
          Cada vez mais dispersivo
          O ciúme é um veneno
          Não se encontra lenitivo.  
 
          Se entre nós houvesse a paz dos bons casais
          Sem receios, sem conflitos  
          Eu acredito que haveria mais amor
          Sem nossos gritos tão aflitos de pavor.
 
          Mais calor na relação, mais desejo de viver  
          Mais pureza, mais prazer, mais amor, mais união  
          Mas não deu termina aqui – eu vou partir
          Mas não deu termina aqui – sofreu, sofri
          Mas não deu termina aqui.  

Eu não sei mais como o Miro canta, como ele anda, e o que ele poderá vir a ser. Mas parece continuar só. E o solitário é o libidinalmente ativo, para quem o viver e a sua forma são vivencialmente indissociáveis. A solidão é a defesa do texto? Ele, agora, lê, copia e escreve por não ter mais nada o que fazer ou a quem amar sem o risco do desengano. Afinal, o casamento é uma ilusão sobre a perenidade das relações, diminui a força e o impacto da palavra. Confrontada à realidade, a palavra não é mais aceitável. Contexto de permanente esgotamento. ____________ não mais o vejo, não mais o miro.

Bagagem do Miro finalizada: garrafinha d’água cheia, óculos escuros, jaqueta, amuleto e chaves, carteira, cigarro e celular.

Chave, carteira, cigarro e celular, Miro agrupou e memorizou estes objetos iniciados pela letra cê. Ele não vai a lugar algum sem, antes, pronunciar, em voz alta, o nome de cada um deles, batendo as mãos nos bolsos: “chave, carteira, cigarro e celular”. Depois que parou de fumar, ele fala outro nome qualquer iniciado pelo cê, tipo cânhamo, coisa, carregador, colírio, chapéu, cachecol, cumbuca, corda, chupeta, capanga, caixa, crianças. Despedindo-se, afaga as gatas e vai para o aeroporto.

– Ufa! Ainda bem que cheguei. O embarque ainda está aberto?

– Está, sim, senhor. Sua identidade e passagem…

– Acabei de perder minha identidade, acho que a deixei no ônibus, só pode… E não deu tempo de fazer ocorrência alguma. Aqui, está a passagem.

– Sua identidade…

– Veja, aqui, ó, sou eu mesmo!

– Mas sua identidade ou seu passaporte…

– Pois, então, acabei de perder. Mas, veja, sou eu mesmo neste documento aqui, ó, com os números do CPF e da identidade… fotografia super recente. Olha pra ela e olha pra mim, ó.

– Precisamos de sua identidade ou passaporte, senhor.

– Poxa, mas quem precisa da minha identidade, qual o problema de eu embarcar sem ela…? Não é só passar por esta linha aqui, ó? Fui…! Não muda nada, nada muda.

– É pra segurança de todos, senhor!

– Mas eu viajo sempre, sempre por esta empresa. Possuo programa de milhagem e o escambau, confira aí. Vocês já me conhecem.

– Seu destino é Montevidéu, senhor. Mesmo que embarcasse, não conseguiria entrar no país.

– Não, não, não, espera, a senhora está antecipando demais as coisas. Lá, é outra história… falo que estou a trabalho, que sou cronista, que vou procurar a embaixada do Brasil, o consulado, o Mujica, sei lá… que soy loco!

– O senhor está dificultando as coisas. Assim, está me comprometendo…

– Meu São Victor, São Victor! Minha senhora, me escuta: sinceramente, eu estou comprometendo o seu trabalho, a sua dignidade? Olha pro meu braço, senhora – arregaçando as mangas e apontando para o membro esquerdo, uma prótese mecânica –, acha que sou terrorista ou que meto medo em alguém? Sou só o Belmiro Borba.

– Belmiro Borba… cara do nome do vovô, hein?

– Tio-avô, minha senhora, de Vila Caraíbas, Minas Gerais.

– Olha, minha família é daquela região…

– Então, minha senhora, eu sou da paz. A senhora já sabe disso. Eu quero mais é assistir ao jogo do Atlético contra o Nacional. É jogo de Libertadores, senhora, é pela Libertadores! Olha o ingresso com o meu nome, com o número da minha identidade e tudo. Eu sou eu mesmo. Sou eu, sou eu! Sou atleticano!

– Ok, moço de sorte! Mas diga que embarcou no Brasil com sua identidade, e que ela foi perdida no trajeto do desembarque. Tenha uma ótima viagem! E sorte também pro nosso Galo! Porque ganhar do Nacional, na terça-feira, só mesmo com muita sorte!

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gustavo Cerqueira Guimarães

Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG. É graduado em Psicologia e Letras pela PUC-Minas. Autor dos livros de poesia Língua (2004) e Guerra lírica (no prelo). Coorganizou os livros Futebol: fato social total (2020) e Problemáticas e solucionáticas do futebol em Minas Gerais (no prelo). Desenvolveu pesquisas sobre futebol e artes no pós-doutorado na Faculdade de Letras da UFMG (PNPD-CAPES, 2013-2018) e no Leitorado Guimarães Rosa em Maputo/Moçambique (2019-2023). Atualmente, atua na Secretaria Municipal de Educação de Lajinha/MG e como vice-líder do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, como coeditor-chefe da FuLiA/UFMG (https://periodicos.ufmg.br/index.php/fulia/issue/archive). 

Como citar

GUIMARãES, Gustavo Cerqueira. O Atlético pela terceira vez em Montevidéu: os pródromos do Miro. Ludopédio, São Paulo, v. 117, n. 15, 2019.
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