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O bem público está se tornando cada vez mais privado

Filipe Fernandes Ribeiro Mostaro 23 de fevereiro de 2017

Final de domingo quente no Rio de Janeiro. Enquanto dividia a atenção entre meu feed de notícias do Facebook e o jogo Flamengo e Madureira, vi uma novidade que me encheu de esperança: o clássico Atletiba seria transmitido via Youtube e Facebook nos canais oficiais dos clubes. Sim, também fiquei com vergonha de só saber da transmissão minutos antes do jogo começar. Porém os acontecimentos atuais no país do golpe colocaram como minha prioridade a indignação da venda de tudo que nosso país tem: da água, passando pelo petróleo, chegando a empresas estatais fundamentais para o crescimento do Brasil. Voltando ao jogo e deixando, por enquanto, de lado nossa caótica situação de desmonte e desprezo pelo bem público, achei uma grande sacada dos clubes paranaenses, pois qualquer pessoa no mundo poderia ver o jogo, via web, seguindo uma tendência mundial. Não é de hoje que a mediação pelo computador, sejam filmes, séries e eventos esportivos retiram audiência da televisão. Ao possibilitar ao torcedor ver pela web e tirar o “monopólio” televisivo, mexe-se em um vespeiro em que as mais recentes investigações na FIFA, que levaram vários dirigentes para a prisão, demonstraram ser um ponto nevrálgico da corrupção no futebol e da disputa pelo poder: o direito de transmissão no futebol.

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Jogadores do Atlético-PR e do Coritiba se unem no círculo central. Foto: Youtube (reprodução).

O sistema atual de cotas de TV e de negociação por direitos de transmissão é alvo de críticas por parte de dirigentes, jogadores de grupos como o “Bom Senso F.C.” e torcedores. Atlético-PR e Coritiba reagiram no último domingo contra esse sistema, mas foram reprimidos pela Federação Paranaense de Futebol. O futebol perdeu mais uma batalha para garantir os seus valores básicos, como ser, acima de tudo, popular.

Pagam-se milhões para se apropriar de algo que é muito mais parte da cultura nacional, como no Brasil, do que um negócio. Vender os clubes passa a ser a única estrada possível para se ter “sucesso” no futebol e não um dos objetivos. Nessa pegada de que o dinheiro precisa entrar aconteça o que acontecer, muitos vão defender que os clubes ganham muito mais hoje do que antes, os jogadores ganham mais, a imprensa ganha mais, etc…Claro que isso é verdade, porém, como na recente pesquisa que demonstrou a forma com que o capital se concentra na mãos de poucos em todo o mundo, esse cenário não é diferente no futebol, sejam clubes, jogadores e imprensa. . As grandes equipes ganham mais, muito mais, e, em breve, sua distância para os “pequenos” será cada vez mais abissal. Com mais dinheiro você monta uma “seleção do mundo” em seu clube e com os torneios por pontos corridos que privilegiam o “planejamento” de quem tem mais grana, as zebras como Leicester na Inglaterra serão cada vez menos frequentes. Há quem goste dessa financeirização e a entenda como a oitava maravilha do mundo. Não a desprezo, mas quando o sentido social de um clube é um detalhe e seus valores em cifrões superam o valor emotivo estamos perdendo um bem precioso, um bem público, cultural e que antes de movimentar milhões de “verdinhas” também mobilizava e emocionava milhões de pessoas.

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Leicester campeão. Foto: Peter Woodentop.

Estudo elaborado pela empresa de consultoria esportiva “Delloite” aponta que somente na temporada 2014/2015 a diferença de arrecadação entre Real Madrid e Leicester superou R$ 1,5 Bilhão. O título inédito do Leicester na Premier League resgatou valores cada vez mais esquecidos no mundo do futebol: a comunidade local se engajando pelo clube e a superação de atletas, como o ex-presidiário Vardy.

Não, a chama apaixonada pelo futebol ainda não foi apagada pelos rios de dinheiro muitas vezes sujos que são jorrados sem pudor em nossa paixão nacional. É como se no meio da sujeira provocada pelas barragens da impune Samarco, algumas flores ainda permanecessem e resistissem. É preciso dizer, reforçar e até gritar para ver se o ódio que cega e deixa surdo muitos setores do nosso país escute. Por mais que soe chato, implicante e estraga prazer, o monopólio das transmissões esportivas no Brasil mostram claramente nosso contexto atual: o bem público (como o futebol) se torna cada vez mais privado. Muletas ridículas são usadas como desculpas para interromper um jogo que inovaria na exibição. Não acho que a transmissão via internet seja a única saída para o nosso futebol, mas é um caminho que se abre, uma opção que os clubes podem e devem ter. Ao exibir na internet eles geram fluxos de informação e acessos em seus canais, sendo rentabilizados por isso também. Reparem, é possível ganhar dinheiro de outra forma, sem ser refém de emissoras que se especializam em incentivar golpes de estado. Notem também que minha posição, se ainda não ficou clara, é que o dinheiro precisa entrar no futebol, mas não pode ser o único objetivo de um clube. Em resumo: parceiro sim, dono nunca!

Os rivais, que ontem se tornaram aliados em um belo exemplo de que os clubes são mais fortes do que essas corporações, mostraram isso. Preferiram inovar a ganhar os valores oferecidos pela Rede Globo. Seria um marco. O experimento poderia ser analisado e adotado por outros clubes. Por que não ter o seu canal e transmitir seus jogos sem intermediários. Se a paixão pelo esporte e pelos times é algo que “não tem preço”, por que enxergá-la apenas como potenciais clientes? O jogo poderia ser visto por mais pessoas, que não podem pagar os valores cobrados pelo Pay-per-view e são igualmente apaixonados pelos clubes quanto os que podem pagar. Desde as Novas Arenas, vemos uma escolha pelo “torcedor cliente que pode pagar tudo que eu quiser vender no preço que eu quiser nas minhas arenas”. Privatizar a paixão pelo esporte, como se aproxima a privatização da previdência, da saúde e da educação, é designar que aquele que não tem dinheiro não serve para nós. Mais do que isso, ao se tentar apresentar um novo modelo de transmissão e “fugir do sistema”, a federação, que mais vende seus clubes federados do que realmente melhora o esporte em seu estado (qualquer semelhança com os outros estados não é mera coincidência), inventa algo para cancelar o jogo.

As relações de poder no Brasil perpassam pela poderosa empresa de comunicação dos Marinho. Não, não é teoria da conspiração. É um jogo de coincidências implacáveis que persegue essa organização. O que ela perderia com a transmissão via youtube? Logo ela que odeia monopólios midiáticos, que jamais teve relações com as federações? Será que os “não-credenciados” provocariam o cancelamento do jogo se a emissora estive transmitindo a partida? Os milhões que ela paga aos clubes, que devem agradecê-la eternamente pela boa ação, valem qualquer tipo de sacrifício dos times e torcedores para seguir sua grade, afinal o bem público chamado paixão pelo torcedor é muito menor perto do direito a propriedade de quem pagou por este bem e pode decidir quem vê o que, a que horas, pagando quanto ou se contenta a acompanhar minuto a minuto em seu site. A dose de ironia é para macular a ira por perceber que o potencial de crescimento do nosso futebol é ceifado por esses monopólios. Quem duvida basta se perguntar o motivo dela inventar nomes de times apenas para não citar os patrocinadores. Red Bull Brasil vira RB Brasil. Nem mesmo o nome dos estádios que recebem patrocínios são respeitados. Tudo para defender seus interesses comerciais. Para quem gosta de comparações e venerações ao modelo de negócio de esporte americano, basta pesquisar como é feita a distribuição dos direitos de transmissão e se alguma das emissoras oculta os “naming rights” das Arenas em qualquer modalidade.

Nos falidos estaduais, que já foram o grande objeto de desejo dos clubes em um passado bem recente, a dupla paranaense ensaiou uma revolta necessária. Por mais que a nota dos envolvidos tentem retirar suas intenções por trás da transmissão e do cancelamento dela, os clubes saíram mais fortes. Bem mais fortes! Que sirva de lição para os outros que ainda enxergam que seu clube é um patrimônio invendável e muito maior do que federações e emissoras.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Filipe Mostaro

Doutorando em Comunicação pelo PPGCOM - Uerj com bolsa CAPES. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UERJ (2014). Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2006), especialização em Jornalismo Esportivo e Negócios do Esporte pela FACHA-IGEC-RJ (2012). Foi bolsista de Apoio Técnico a Pesquisa do CNPq - Nível 1A no projeto LEME (Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte) - UERJ de 2014 a 2015. Pesquisador do Grupo Esporte e Cultura da UERJ. Integra também o Grupo de Pesquisa Comunicação e Esporte, da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Autor do livro GARRINCHA X PELÉ: influência da mídia na carreira de um jogador (2012). Atua principalmente nos seguintes temas: comunicação com ênfase em Rádio, TV, Jornalismo Esportivo, Copas do Mundo, representações, narrativas midiáticas e identidade nacional.

Como citar

MOSTARO, Filipe Fernandes Ribeiro. O bem público está se tornando cada vez mais privado. Ludopédio, São Paulo, v. 92, n. 20, 2017.
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