145.1

O boicote Olímpico

José Paulo Florenzano 1 de julho de 2021

A expressão “uso político do esporte” comparece com frequência nas discussões sobre os Jogos Olímpicos. Ela pressupõe a existência de uma prática por neutra, apolítica, a qual, no entanto, acaba sendo utilizada de forma indevida para finalidades que lhe são estranhas. No que nos diz respeito, ao contrário, consideramos que a esfera esportiva se constitui em uma trincheira estratégica na guerra de posições travada para a construção da hegemonia -, na acepção gramsciana. Nesse sentido, em vez de postularmos idealmente a disjunção entre esporte e política, devemos formular as questões norteadoras da análise a respeito do entrelaçamento dos dois termos: quais são os agentes históricos envolvidos na batalha pelo controle da trincheira; em defesa de quais objetivos ou causas eles se encontram engajados na luta; e quais são as estratégias empregadas para obter a hegemonia? Nos limites do presente artigo, pretendemos abordar as questões formuladas a partir de duas edições das Olimpíadas marcadas pelo “uso político do esporte”.

Conforme nos mostra a análise acurada de Alexandre Roos, pesquisador francês da área de Relações Internacionais, a proposta de boicote aos Jogos do México, em 1968, foi organizada por um grupo de atletas afro-americanos que almejava utilizar o palco olímpico para expressar a mensagem de repúdio ao racismo dentro e fora dos Estados Unidos. O Projeto Olímpico para os Direitos Humanos, conforme se autodenominava o movimento dos atletas negros, envolvia uma ação em três frentes de combate, a saber: 1), local, contra a New York Athletic Club, prestigiada associação de atletismo que celebrava cem anos de existência e de discriminação racial; 2), nacional, contra a opressão da minoria negra na sociedade estadunidense; 3) global, contra o convite ao “País do Homem Branco” (África do Sul) para participar da Olimpíada, formulado pelo Comitê Olímpico Internacional .

Bem sucedido no boicote à efeméride da New York Athletic Club, assim como no veto à presença da África do Sul nos Jogos do México, o Projeto Olímpico para os Direitos Humanos, no entanto, não obteve o mesmo êxito na mobilização da categoria social que ele pretendia representar. De acordo com as sondagens realizadas à época entre os atletas afro-americanos, apenas 1% apoiava a proposta, 28% diziam-se indecisos e 71% se manifestavam contra o boicote. Além dos problemas de organização e da dificuldade de comunicação com todos os centros esportivos do país, pesaram também as críticas ao líder do movimento, o professor de sociologia e ativista antirracista, Harry Edwards, visto como autoritário e radical.[1] 

Embora o movimento não tenha conquistado a adesão esperada do conjunto da categoria, durante a competição ocorreram manifestações individuais de protesto, como as de Tommie Smith e John Carlos, realizadas a um alto custo para os envolvidos, os quais, como se sabe, foram banidos dos Jogos Olímpicos.[2] Mas o “uso político do esporte” não esteve restrito ao protesto simbólico dos atletas negros contra o racismo nos Estados Unidos. Os estudantes mexicanos também se posicionaram contra a realização do evento esportivo, que o governo do Partido da Revolução Mexicana (PRI) pretendia utilizar como propaganda política, projetando para o mundo a imagem de um país embalado pelo desenvolvimento econômico no quadro de paz social. Às vésperas da abertura dos Jogos Olímpicos, as manifestações pacíficas dos estudantis irromperam como contrapropaganda, questionando a legitimidade de um sistema politicamente autoritário e socialmente desigual. Acuados, porém, pelo aparato repressivo,  cerca de 300 manifestantes perderiam a vida na Praça das Três Culturas, em Tlatelolco. A disputa pela trincheira muitas vezes se reveste de um caráter sangrento, desvelando o valor estratégico que ela possui para a dominação simbólica.[3]    

Tommie Smith (centro) e John Carlos (direita) no momento do protesto. Foto: Angelo Cozzi/Mondadori Publishers.

O segundo episódio de boicote olímpico refere-se aos Jogos de Moscou, em 1980. Ele surge como fruto de uma ação capitaneada pelo governo Jimmy Carter contra a invasão soviética do Afeganistão, deslanchada, por sua vez, em dezembro de 1979. A decisão do boicote, imposta de cima para baixo, sem consulta prévia aos atletas estadunidenses, não foi aceita, entretanto, como um fato consumado. [4] Alguns competidores, inconformados como o “uso político do esporte” nos Jogos da Guerra Fria, enviaram uma carta aberta ao presidente Jimmy Carter, enquanto outros recorreram à justiça, como nos mostra o relato da atleta do remo, Anita DeFrantz:

Eu tinha 27, e aquele ano de 1980 mudou a minha vida. Deu-me percepção de outras coisas além do esporte e senti a necessidade de agir, tentar fazer algo. Não achava justo negar a centenas de atletas a chance de realizar um sonho. Eu resolvi ir atrás disso pelos meios que tinha à disposição. Foi-me tirado algo que era muito precioso.[5]

Segundo Anita DeFrantz, não havia coerência entre os princípios morais alardeados pelo governo democrata para justificar o boicote olímpico, e os interesses políticos e econômicos do país: “Em junho, recebemos a notícia de que os EUA estavam vendendo trigo para a União Soviética. Realizavam negócios entre eles, mas nós não podíamos ir aos Jogos”.[6]  A contradição era flagrante, não resta dúvida, mas isto não significa dizer que a defesa dos direitos humanos esgrimida pelo governo democrata constituísse mera retórica.

Aliás, sentindo-se profundamente identificado com ela, Muhammad Ali concordou em interromper a turnê que realizava pela Índia para atender ao chamado do presidente Jimmy Carter, o qual lhe atribuía como “missão diplomática” percorrer a África Negra em busca de apoio ao boicote olímpico. Todavia, em todos os países visitados – Tanzânia, Quênia, Nigéria, Libéria e Senegal -, Muhammad Ali foi questionado sobre a omissão do governo estadunidense na campanha de boicote aos Jogos de Montreal, em 1976, empreendida pelos países do continente africano contra o regime do apartheid. O próprio boxeador não teve alternativa senão admitir a contradição: “Os africanos têm todo o direito de nos dizer: se vocês não nos apoiaram”, então, “por que” agora “devemos apoiar vocês?”[7] Ora, à luz do “fiasco” da “missão diplomática”, podemos nos perguntar, afinal de contas, quais foram os motivos que levaram Muhammad Ali a se engajar em uma causa inscrita na geopolítica da Guerra Fria? Deixemos a palavra com o Atleta de Alá:  

Eu estou indo como um guerreiro por Alá, como um lutador pelo Islã, como um lutador por todas as pessoas de todas as raças, de todas as cores, que foram privadas dos direitos humanos.[8]

A posição de Muhammad Ali em defesa do boicote olímpico precisa ser contextualizada. Ele acusava o governo de Moscou de querer “matar a religião” com a qual se achava identificado.[9] De fato, mais de noventa por cento da população do Afeganistão seguia o islã. Os mujahedeen, guerrilheiros muçulmanos, promoviam então uma rebelião armada contra o regime comunista de partido único. Para restabelecer o controle da situação, as tropas do Exército Vermelho invadiram o país, ali permanecendo tempo suficiente para que o Afeganistão se transformasse no Vietnã da União Soviética.[10] Dez anos depois da invasão, contabilizando mais de cinquenta mil soldados mortos, as forças de ocupação se retiraram, levando consigo a humilhação da derrota. Em contrapartida, deixaram um rastro de mais de um milhão de mortos e um número incalculável de feridos e mutilados.[11]

Eis a questão: como conciliar o exercício dos direitos individuais dos atletas estadunidenses (o sonho a que se referia Anita DeFrantz), com a violação dos direitos humanos de camponeses muçulmanos (o pesadelo ao qual aludia Muhammad Ali)? A luta nas trincheiras dos Jogos Olímpicos nem sempre permite alinhar os interesses dos agentes históricos, mesmo quando eles se encontram do mesmo lado do campo de batalha.


[1] Roos, Alexandre. Les athlètes africains-américans et les mouvements pour l`égalité raciale. Paris, L´Harmattan, 2006.

[2] Cf. “2 Black Power Advocates Ousted from Olympics”, by Joseph M. Sheehan, The New York Times, 19 de outubro de 1968.

[3] Camin, Héctor Aguilar; Meyer, Lorenzo. “À sombra da Revolução Mexicana: história mexicana contemporânea (1910-1989)”, São Paulo, Edusp.

[4] Ver “O boicote aos Jogos Olímpicos de Moscou – 1980: uma análise da reação do movimento olímpico brasileiro e internacional”, Flávio de Almeida Andrade Lico. Dissertação de Mestrado. Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, 2007, pp.86-99.

[5] Cf. “Boicote à Olimpíada de Moscou há 40 anos ainda marca vida de ex-atletas”, Alex Sabino e Marcos Guedes, Folha de S. Paulo,1 de agosto de 2020. Cf. “Petition is Mailed to Carter”, by Thomas Rogers, The New York Times, 1 de março de 1980.

[6] Cf. “Boicote à Olimpíada de Moscou há 40 anos ainda marca vida de ex-atletas”, Alex Sabino e Marcos Guedes, Folha de S. Paulo,1 de agosto de 2020

[7] Cf. “Ali Says Aim of Trip  is to Avert War”, The New York Times, 5 de fevereiro de 1980.

[8] Cf. “Ali Flies from Kenya to Nigeria”, 7 de fevereiro de 1980. Sobre a avaliação da turnê como um “fiasco”, ver “Ali`s Comeback”, Dave Anderson, coluna: Sports of the Times, 2 de março de 1980. Ambas os textos publicados no The New York Times.

[9] Cf. “Muhammad Ali will Visit Africa for Carter”, The New York Times, 1 de fevereiro de 1980.

[10] Hobsbawm, Eric. “Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991)”, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p.464.

[11] Cf. “Relevo torna improvável vitória de Americanos no território afegão”, José Arbex Jr., Folha de S. Paulo, 18 de setembro de 2001.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. O boicote Olímpico. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 1, 2021.
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