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O Bra-Pel não é só mais um derby, ele é rivalidade contabilizada em emoção

Nem todos os clássicos podem entrar no grupo seleto dos confrontos centenários. Entre eles, alguns estão em um grau de rivalidade que exacerba o campo de jogo, influenciando o comportamento dos seus torcedores e de toda uma cidade.

Nesse grupo seleto, dos clássicos centenários, que são verdadeiras batalhas dentro e fora de campo, quero citar o derby do interior gaúcho, o clássico Bra-Pel. Em 2008, a Revista Trivela[1] indicou como o 22º confronto mais importante no país. Em 2016, o Globo Esporte[2] apresentou-o como o 30º embate mais lembrado entre torcedores brasileiros.

Cidade de Pelotas (RS). Fonte: Wikipédia

Uma cidade

O Bra-Pel é o clássico que, em Pelotas/RS, envolve as equipes do Esporte Clube Pelotas e o Grêmio Esportivo Brasil, duas equipes com o maior número de torcedores na cidade. Ao apresentar esse encontro precisamos pensar sobre qual o motivo da rivalidade exacerbar o esporte e transformar os ânimos de um município? A resposta imediata tende a estar orientada aos mitos de origem que remetem a situações encontradas também em outras rivalidades. Envolve a localização dos clubes (periferia e centro), além da associação das condições econômicas, étnicas e sociais de seus torcedores. Uma eterna luta que não basta para justificar a rivalidade, embora possa construir um imaginário identitário.

Ao refletir sobre essa situação quero trazer para o primeiro plano minha própria experiência com o clássico. Todos que nascem na cidade de Pelotas/RS crescem com a influência da mídia nacional e estadual que destaca os grandes clubes e centraliza as informações nos dois principais times da capital, a dupla Gre-Nal. Entretanto, crescer em Pelotas/RS impõe uma condição, escolher entre o áureo-cerúlio (Lobão) e o rubro-negro (Xavante). Opções clubísticas que devem ser as prioritárias e principais.

Tal observação não descarta que os clubes da capital tenham torcedores na cidade, entretanto são considerados como uma segunda opção. A expectativa é, no entanto, torcer apenas para os clubes da cidade de maneira exclusiva, uma postura que alimenta um movimento que de tempos em tempos reacende o sentimento anti-grenal. Esse movimento organizado incentiva torcer apenas para os clubes da cidade, mantendo certa aversão aos grandes, principalmente os da capital gaúcha.

O Bra-Pel é um confronto que carrega o nome da cidade e do país no qual é realizado. O contato com esse clássico se inicia com as relações familiares e de afinidade que influenciam o sentimento de torcer para um dos dois lados. O vermelho e preto tem na letra do hino do clube uma indicação que diz: “(…) as tuas cores são o nosso sangue e a nossa raça”. Pessoalmente, cresci aprendendo a gostar do lado Xavante, reconhecendo também qual a minha identidade ao compreender o significado desta frase.

O estádio

Estádio Bento Freitas. Fonte: Wikipédia

Quantas vezes andei da Avenida República do Líbano, imediações da minha casa, até o estádio da Baixada (Estádio Bento de Mendes Freitas) terra sagrada do G. E. Brasil e algumas vezes à Boca do Lobo, casa do E. C. Pelotas. Andava com passos firmes pensando no jogo, imaginando o resultado e cantando as músicas enquanto seguia em direção ao estádio. O retorno envolvia as mesmas ações com euforia na vitória, tristeza na derrota ou com resmungos sobre a injustiça no empate.

Lembro algo simples e que marca uma das condições de ser torcedor, vestir o manto sagrado, a camisa do clube. Devido às condições familiares, nunca tive a oportunidade de comprar uma camisa oficial de jogo para ostentar meu pertencimento. O mais próximo foi um blusão de lã vermelho, gola redonda preta, bolso preto no peito e com faixas pretas nas mangas. Não importava o clima, uma tarde ensolarada escaldante ou uma noite com vento Minuano cortante, nada impedia de ir ao estádio com ele. Confesso que não posso ser identificado como um torcedor que tem os fundilhos gastos pela arquibancada, o que nunca impediu de estar no estádio e ver a mágica acontecer, alimentando minha paixão pelo time.

O clima do estádio, que metaforicamente lembra um caldeirão, tem barulho da torcida que pulsa ao som da charanga. O cheiro de churrasquinho e de pipoca são outros elementos que compõem um cenário de movimentos em cores e sons, afirmando uma poética inesquecível presente no campo de futebol. Esse duelo, em campo, nem sempre é um baile com movimentos sinuosos, em vai e vem como uma valsa. O espetáculo se assemelha mais a uma arena, repleta de gladiadores que lutam pela honra do Imperador, que, nesse caso, é o coração de cada torcedor.

Uma sonora

Como não era um torcedor assíduo, em muitas oportunidades o rádio era quem contava o jogo gerando angustias e euforias conforme a narração dos acontecimentos no duelo. Meu Bra-Pel inesquecível foi escutando a transmissão via rádio. O confronto, não lembro a data exata, foi nos anos iniciais na década de 1990, só sei que aconteceu, pois, não esqueço. As equipes disputaram uma partida que fazia jus ao clássico, que permanecia empatado até os minutos finais. Um jogo parelho e que próximo da última volta dos ponteiros teve a marcação de um pênalti para o E. C. Pelotas. Não era novidade situação como essa gerar discussão entre os jogadores, então depois de longos minutos a bola foi para a marca da cal, o juiz deu o sinal, o batedor correu para bola, chutou e perdeu o pênalti.

Barra do E.C. Pelotas. Fonte: Wikipédia

O jovem torcedor que escutava acompanhando no rádio se ergue, pois de joelhos esperava a cobrança. Enquanto eu comemorava pulando na sala de casa a chance perdida pelo adversário no final da partida, vou ao êxtase quando o narrador grita gol do Xavante. Logo após a cobrança do pênalti, ao repor a bola em campo, o lance de ataque foi convertido, dando a vitória ao G. E. Brasil. Ainda hoje lembro daquele torcedor em casa pulando de euforia, compartilhando um sentimento com muitos outros anônimos torcedores rubro-negros que cantavam de alegria, em mais uma vitória sobre o rival. Um momento que se mantém eternizado na mente de um torcedor que em cada jogo rememora a esperança da vitória triunfal.

No Rio Grande do Sul, tem-se o hábito de numerar os clássicos, não recordo o número daquele Bra-Pel especial, mas ele está registrado na história do torcedor, como um exemplo de derby que tem o estatuto de centenário e que adquire maior jovialidade com o passar dos anos.

Ser um Xavante

Escrever sobre o clássico a partir do viés de um torcedor Xavante, não deve servir como menosprezo ao clube adversário. Na verdade, a paixão pelo G. E. Brasil só existe porque o coirmão se coloca tão grande quanto. Ambos são lados opostos e dessa maneira só atingem sua potencialidade ao reconhecerem a existência um do outro. Portanto, falar de um é falar do outro, suas histórias que correm paralelas se cruzam em um clássico que emerge cheio de rivalidade. Fazer uma opção, escolher uma das cores, é decidir de maneira emocional e esse sentimento divide uma cidade no interior do país, na zona sul do estado do Rio Grande do Sul.

Escudos do Brasil de Pelotas. Fonte: Wikipédia

Próximo clássico

Com o retorno do futebol gaúcho, mais um Bra-Pel deve acontecer e sem torcida no estádio, mas não é motivo para falta de celebração. A pandemia tem alterado o calendário esportivo e os procedimentos para realização dos jogos. O confronto dos clubes no campeonato gaúcho ainda tem impasses por razões da ausência de datas e a possibilidade de classificação de um deles para a próxima fase da competição.

Na última semana de julho, a Federação Gaúcha de Futebol terá de decidir sobre o confronto, mas de qualquer forma o jogo será realizado, valendo classificação ou não, o objetivo para sua realização não passa pela soma de pontos. O embate dos clubes será mais uma vez celebrado, pois, o que está em jogo é a manifestação de um conflito simbólico regido pela paixão. O mais importante para o torcedor é ter a esperança de, no final, triunfar sobre o rival, algo que só pode ser encontrado em um clássico que não precisa valer nada para atingir sua exaltação.

Notas

[1] Revista Trivela, outubro de 2008, edição de número 32.

[2]Ranking: com mesmo número de votos por estado, elegemos os 30 maiores clássicos do Brasil.” Acesso em: 25 de jul. de 2020.


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Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da. O Bra-Pel não é só mais um derby, ele é rivalidade contabilizada em emoção. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 63, 2020.
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