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O Campeão Brasileiro de 1987

Em 1978, o antropólogo Roberto DaMatta publicou “Carnavais, Malandros e heróis”, um clássico nas Ciências Sociais do Brasil. Aí, ele diagnosticava que o dilema brasileiro estaria centrado na tensão entre códigos impessoais e pessoais. O imbróglio que persiste até hoje sobre o campeão brasileiro de 1987 expressa este dilema.

A chamada Copa União, idealizada pelo então recém-fundado Clube dos 13, vencida pelo Flamengo, foi um marco no futebol brasileiro, obtendo a segunda melhor média de público até aquele momento. A presença do dilema brasileiro aparece já nos antecedentes.

As regras do campeonato de 1986 haviam sido modificadas para favorecer um grande clube a entrar na segunda fase da competição, sem que ele tivesse se classificado pelo regulamento. Com isso, o campeonato de 1986 retornou em 1987, gerando complicações, pois os clubes que disputavam as semifinais recusaram-se a competir, naquele período, em seus campeonatos locais.

Em maio de 1987, a CBF afirmou que não tinha recursos para organizar o campeonato. Em 1985, um presidente civil assumiu o poder, após duas décadas de ditadura, sendo que desde 1984 a luta por eleições diretas e uma nova constituição espalharam-se pelo país. É neste cenário que surge o Clube dos 13.

Entre outras coisas, o Clube dos 13 propunha o campeonato com 13 clubes e a adoção do voto proporcional na CBF. A política de troca de favores sustentava o poder político da CBF que, sob a égide do voto unitário, proporcionava às pequenas ligas e clubes um poder de decisão maior do que o dos grandes clubes.

Flamengo87
Em pé: Leandro, Zé Carlos, Andrade, Edinho, Leonardo e Ailton. Agachados: Bebeto, Ailton, Renato Gaúcho, Zico e Zinho.

De um lado, a CBF, entidade amparada na legislação e, de outro, o Clube dos 13, integrando os grandes clubes. Um campeonato sem esses clubes seria inconcebível. Mas se abandonassem a CBF, a FIFA não os reconheceria. Estávamos diante de uma disputa entre o legal e o legítimo.

No dia 4 de setembro de 1987 foi noticiado o acordo. O campeonato teria 16 times no módulo verde (primeira divisão) e 16 no amarelo (segunda divisão). O Clube dos 13 negociaria o evento e a CBF incluiria três times. No comunicado entregue à imprensa pela CBF lia-se que “a classificação dos representantes do Brasil na Taça Libertadores da América ocorrerá na abertura da temporada de 1988, sob forma de um torneio quadrangular, integrado pelos dois primeiros colocados dos módulos verde e amarelo” (O Globo, 04/09/87). Não se falava em campeão. E o Clube dos 13 afirmara ser contra o quadrangular.

A imposição do quadrangular devia-se provavelmente ao fato de o poder da CBF estar assentado no apoio de clubes de menor expressão, em uma política nociva de troca de favores que, por muitos anos, produzia campeonatos deficitários.

O Clube dos 13 – e não somente o Flamengo e Internacional, campeão e vice da Copa União – não aceitou o quadrangular, visto como um retrocesso em relação as suas reivindicações. Na final do módulo amarelo, o Sport sagrou-se campeão e o Guarani vice. Após uma disputa de pênaltis que terminou empatada em 11 a 11, a CBF deu o título ao Sport.

Fora do âmbito das relações jocosas entre torcidas, a desconsideração da CBF ao título do Flamengo em 1987 é um desrespeito aos atletas, torcedores e dirigentes dos clubes que participaram da competição. Retirar do Sport um título que ele ostenta há 30 anos seria indigno. A conciliação tornou-se inexorável. Em 2011, a CBF declarou dois campeões em 1987: o Flamengo e o Sport. Não seria a primeira vez com dois campeões. O campeonato carioca, por exemplo, teve dois campeões durante os anos de 1933 a 1936, já que a então CBD não reconhecia a recém-criada liga profissional. E o título do carioca de 1907 passou a ser dividido entre Fluminense e Botafogo, após uma decisão judicial de 1996. Só que o Sport recorreu junto à Justiça Federal de Pernambuco e a CBF voltou atrás da decisão de considerar o Flamengo também campeão. Uma pena.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ronaldo Helal

Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979), mestrado em Sociologia - New York University (1986) e doutorado em Sociologia - New York University (1994). É pesquisador 1-C do CNPq, Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (2006). Em 2017, realizou estágio sênior na França no Institut National du Sport, de L'Expertise et de la Performance. É professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi vice-diretor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (2000-2004) e coordenador do projeto de implantação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj (PPGCom/Uerj), tendo sido seu primeiro coordenador (2002-2004).Foi chefe do Departamento de Teoria da Comunicação da FCS/Uerj diversas vezes e membro eleito do Consultivo da Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uerj por duas vezes. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: futebol, mídia, identidades nacionais, idolatria e cultura brasileira. É coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura (www.comunicacaoeesporte.com) e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte - LEME. Publicou oito livros e mais de 120 artigos em capítulos de livros e em revistas acadêmicas da área, no Brasil e no exterior.

Como citar

HELAL, Ronaldo. O Campeão Brasileiro de 1987. Ludopédio, São Paulo, v. 97, n. 27, 2017.
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