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O Cartola F. C. e a subversão sub-reptícia e canalha do torcer

Georgino Jorge de Souza Neto 1 de setembro de 2020

Tomei um susto quando vi o amigo cruzeirense do meu filho atleticano dizendo a ele ter vibrado com os gols de Marrony na vitória do Galo sobre o Ceará. Com minha cara de não ter entendido nada, explica-me o primogênito que o seu amigo havia escalado Marrony no seu time do Cartola. E por isso, passou a torcer (sic) por uma vitória do Galo, de preferência com muitos gols do jovem atacante alvinegro. O cruzeirense em questão não é um torcedor “modinha” (designação abrasileirada para explicar uma das tipificações de torcedores na clássica taxonomia proposta pelo sociólogo britânico Richard Giulianotti). Muito pelo contrário, ele é um daqueles espécimes de torcedores passionais, típico aficionado (ou o que Giulianotti designou como fanático). Afinal, o que faria um sujeito desse vibrar com um gol do time rival? Ao que meu filho responde: – “Pra mitar no Cartola, pai”.

Eu, que me dedico a entender melhor esse universo fantástico e complexo do futebol e do torcer, me deparo com mais uma questão merecedora da mais profunda análise: estaria o torcer passando por uma ressignificação mutante – do fanático para o modinha – em função de um jogo que trata exatamente sobre o jogo do futebol? A visão mercadológica teria força suficiente para promover a subversão torcedora? Para obliterar uma paixão?

Movido por essas inquietações, cá estou a escrever, tentando alcançar algumas respostas, sabendo que a reflexão questionadora importa mais que o almejo do intento conclusivo. Para tanto, penso ser fundamental olharmos com mais acuidade para o novo modelo de gerenciamento do futebol, cada vez mais espetacularizado pelo empuxo mercantil, e como isso tem provocado um reordenamento da lógica do torcer, dos torcedores e das torcidas.

O processo de mercantilização do futebol brasileiro que se encontra em curso articula-se com uma série de estratégias para atingir suas metas. É, assim, um empreendimento de caráter tentacular, criando canais de penetração no interior de sua estrutura. Este projeto vem se materializando na construção das arenas; no maior investimento dos clubes em uma gestão empresarial; na aposta dos programas de sócio-torcedores como política estruturante (atingindo fortemente o sentido e o valor das torcidas organizadas); na elaboração de uma justificativa para ingressos caros (já que o serviço ofertado será de maior qualidade, selecionando o público presente e promovendo uma elitização asséptica dos torcedores); na aposta em mídias sociais e ferramentas virtuais de promoção do clube; no ganho financeiro a partir da exploração da marca do clube em produtos oficiais (as lojas oficias físicas e virtuais pululam fartamente); e no incremento do retorno televiso através dos programas de pay-per-views.

Tudo isto, aliado ao entendimento do futebol como um negócio altamente rentável, tem ressignificado a cultura simbólica do pertencimento identitário, bem como da própria noção do jogo em si.

Imagem: Facebook

É neste cenário, portanto, que a presença do Cartola F. C. se constitui – e vem se constituindo – ao longo da última década e meia. Sobre este produto, podemos entender que é um jogo eletrônico de futebol no estilo fantasy game, ou seja, é um jogo fictício no qual as pessoas montam seus times com jogadores de futebol da vida real. Foi lançado no ano de 2004.

Criado e mantido pelo site Globo.com e promovido pelo canal de TV por assinatura SporTV e também pela Globo, esse jogo de futebol virtual já conta com mais de 5 milhões de usuários cadastrados. Logo na abertura da temporada de 2016, o jogo registrou a sua melhor marca entre times escalados em uma única rodada em 12 anos de história do fantasy, incríveis 2.723.915 de usuários montaram as suas equipes para a primeira rodada do Campeonato Brasileiro de 2016. A 10ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2017 instituiu um novo recorde, onde 5.540.835 times foram escalados no jogo.

A disputa do Cartola FC é realizada utilizando todos os jogadores inscritos oficialmente na Série A do Campeonato Brasileiro e suas escalações em súmula, como acontece nos moldes dos fantasy games da NFL e da NBA americanas.

No último ano, com os dados consolidados, a Globo faturou mais de 17 milhões de reais[1], tendo a assinatura Pro sendo contratada por 433 mil pessoas. Vale lembrar que o faturamento da emissora com o game não vem apenas da assinatura. O jogo é vendido no pacote comercial da Globo para patrocinadores, custando cerca de R$ 12 milhões. Esse ano, o game conta com Chevrolet, Itaú, Casas Bahia e Brahma entre os parceiros.

Tendo virado uma febre (relembrando a “febre esportiva” decantada por Sevcenko, quando se referia à mania do futebol no início do século XX), este game é absolutamente revelador do novo contexto do futebol brasileiro. Ao explorar a maior paixão nacional, capaz de mobilizar cada sujeito e uma multidão ao mesmo tempo, o Cartola FC reelabora, a partir do seu interesse econômico, as bases relacionais entre o torcedor e seu clube. De maneira sutil, faz alterar signos e sentidos dos torcedores, fragilizando sub-repticiamente os vínculos identitários e passionais, marca inconteste do pertencimento clubístico.

Me recuso a participar deste movimento. Jamais serei um cartoleiro (nem desvalido, muito menos Pro). Continuarei firme no meu torcer apaixonado pelo Galo, por sua torcida maravilhosa e pelo encantamento da possibilidade sempre à espreita do próximo título do Brasileirão (agora com Sampaoli vai)!!

Que me perdoem os torcedores flâneurs modinhas, mas fanatismo é fundamental no futebol. Como afirma Giulianotti, “os fanáticos são guardiões do futebol, enquanto jogo, e são também participantes quentes em rivalidades ativas com outros clubes, especialmente aqueles de comunidades vizinhas” (nada mais exultante que ver o Cruzeiro jogando a série B).

Às favas com a mania do Cartola, com os cartoleiros e com a cartolagem. Sigo torcendo por um gol do meu time, que seja de canela em impedimento aos 49 do segundo tempo. Mas jamais, nunca, em tempo algum, torcerei para o gol de qualquer outro clube. Neste caso, sou devoto de Campanella, ao afirmar sabiamente: “as pessoas podem mudar tudo: de cara, de família, namorada, religião, de Deus. Mas tem uma coisa que não se pode mudar. Não se pode trocar de paixão”. É isso: não há Cartola no mundo que me faça mudar de paixão.

 

Notas

[1] Este valor refere-se ao faturamento de 2019, com as assinaturas Pro do jogo. Neste ano, o valor desta assinatura era 39,90. Em 2020, o valor da assinatura Pro custa 49,90. Provavelmente, a arrecadação será ainda maior em 2020.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Georgino Jorge Souza Neto

Mestre e Doutor em Lazer pela UFMG. Professor da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Membro do Grupo de Estudos Sobre Futebol e Torcidas/GEFuT-UFMG. Membro do Laboratório de Estudo, Pesquisa e Extensão do Lazer/LUDENS-UNIMONTES. Membro do Observatório do Futebol e do Torcer/UNIMONTES. Torcedor do Galo...

Como citar

SOUZA NETO, Georgino Jorge de. O Cartola F. C. e a subversão sub-reptícia e canalha do torcer. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 5, 2020.
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