Gil do Vigor Sport

 

O alívio da indignação no Sport: há muitos Gil do Vigor nas arquibancadas do Brasil

por Daniel Leal

A sensação é de alívio. Pode soar contraditório, desconexo, mas meu coração está leve, esperançoso. É o reflexo do típico tiro que sai pela culatra. Do ódio represado que vem da indignação por meio de uma fala homofóbica, isolada – porém não desarticulada de uma parcela que insiste em refletir no futebol as mazelas da sociedade -, à consternação que uniu rivais e excedeu os limítrofes de uma torcida que se viu perplexa com o desprezo pelo orgulho de ter envergando a sua camisa um dos maiores ícones da representatividade do que há de mais genuíno no termo “vitória” no país em nossa atualidade.

A torcida do Sport sangrou com as falas homofóbicas sobre Gil do Vigor, integrante do último Big Brother Brasil dos mais carismáticos do reality show da TV Globo em todas as 21 edições. Mas não foi ferida sozinha. Acompanhada por alvirrubros, tricolores e uma gama de outros torcedores Brasil afora (e de tantos mais que nem acompanham o futebol, mas prezam pela pluralidade), os rubro-negros pernambucanos responderam ao ódio com o melhor remédio: amor e solidariedade.

Quando tudo em torno parece escuridão, a fagulha de luz refletida em voz praticamente uníssona nas redes sociais ganha a força de um imenso holofote que grita em resposta: o futebol é, sim, um espaço plural, democrático, progressista. Não há mais espaço para o racismo, a homofobia, os preconceitos. Não há mais espaço para pessoas como Flávio Koury, membro do Conselho Deliberativo do Sport Club do Recife, que lançou a Gil do Vigor declarações de ódio, de relutância, de ojeriza, quando todos esses males encontravam-se no próprio reflexo de sua perversidade. 

Não há mais espaço para quem vê o esporte mais popular do país como um reduto do passado em que, permeado por estruturas masculinas, elitistas, misóginas, simplesmente excluiu. Não há espaço para quem não enxerga o futebol como espaço do mercado. Quanto Gil do Vigor agregou à imagem do clube nos últimos dias? Quantas camisas não ajudou a vender aparecendo gratuitamente em seguidas ações de marketing do clube, em programas da TV Sport e demais canais oficiais? É mais do que raso pensar em Gil como um “veado” que suja a instituição por ser justamente quem ele é e o que fez dele um sucesso nacional: é obscurantismo, limitação intelectual.

Gil do Vigor é abraçado pelo público porque ele representa justamente o povo. O ex-BBB está em cada esquina do país. Há nele uma representação para uma infinidade de perfis de brasileiros: o do pobre da periferia que passou necessidade; o estudante que não tem apoio das instituições públicas; o do homossexual reprimido; o do religioso sem espaço nos templos; o do filho vítima de violência doméstica; o do torcedor capaz de amar o time do coração sem nunca ter sequer pisado no estádio. Uma série de dramatizações imensa capaz de refletir em cada um de nós um pedaço de Gil. E quando essa figura é atingida, a dor é na gente também.

Gil representa a torcida do Sport, mas representa o momento de progresso que o futebol precisa encarar. Que a indignação generalizada que tomou conta dos rubro-negros e de toda a classe de torcedores pelo Brasil possa ser uma semente a ser plantada para o desenvolvimento de ações de políticas afirmativas, de campanhas que desenvolvam na mente de quem ainda vive no passado uma nova cultura. Não há espaço para provocações pejorativas, homofóbicas. Não há “barbies”, não há “bambis”, não há “cachorras de perucas”. Há Gilbertos. Muitos Gil do Vigor espalhados pelo Brasil. Respeitem Gil, respeitem as diferenças.

* Daniel Leal é jornalista pernambucano com mais de dez anos de atividade como repórter esportivo. Mestre e doutorando em Comunicação pela Universidade Federal do Pernambuco (UFPE).

Flávio Koury Sport
Flávio Koury, o conselheiro do Sport Recife que criticou Gil do Vigor com ofensas homofóbicas, ao lado do presidente Jair Bolsonaro. Fonte: Diário do Centro do Mundo

 

Barbies, Susis e Gil do Vigor: a homofobia é um mal a ser combatido no futebol pernambucano

por Emanuel Leite Junior

O ataque homofóbico do conselheiro do Sport Recife Flávio Koury contra o ex-BBB Gil do Vigor nesta sexta-feira 14 de maio, infelizmente, não é um caso isolado no futebol pernambucano. As lastimáveis e repugnantes declarações do advogado rubro-negro (alô OAB-PE, e sua comissão de Direitos Humanos, vai haver um posicionamento a respeito?) refletem não apenas as ideias preconceituosas de uma só pessoa, mas uma prática, lamentavelmente, comum em meio às torcidas pernambucanas. Expressões homofóbicas há anos dominam as arquibancadas do estado, sem que nunca tenha havido um combate sério, efetivo, nem mesmo com campanhas educativas, por parte de clubes e da Federação.

O maior alvo das ofensas homofóbicas no futebol pernambucano, sem dúvida, é o Clube Náutico Capibaribe. Isso porque o “apelido” de Barbie passou a ser uma provocação cotidiana, adotada quase que como um sinônimo pelas torcidas dos dois grandes rivais do Alvirrubro: Sport e Santa Cruz. No discurso-imagético do futebol pernambucano, o Náutico é sinônimo de Barbie, como no futebol Paulista o São Paulo é “Bambi” ou em Minas Gerais o Cruzeiro é “Maria”.

O tradicional e charmoso Estádio dos Aflitos é, no linguajar dos rivais, a “Casa da Barbie”, em alusão ao acessório comercializado pela empresa detentora da marca da boneca Barbie. Há um famoso cântico da torcida rubro-negra que diz “não somos as putas da Barbie” que é entoada em diversas ocasiões por grande parte da Ilha do Retiro.

Por falar na casa do Leão, vale lembrar o episódio em que o Náutico, cumprindo suspensão, mandou uma partida pela Série B de 2004 no estádio do rival e sua diretoria se queixou de que o vestiário cedido pela direção rubro-negra se encontrava decorado com balões rosas. Na Série B de 2006, um ano após a Batalha dos Aflitos, quando Sport x Náutico se enfrentaram na Ilha do Retiro, um trio-elétrico circulou no entorno do estádio, passando várias vezes em frente à área de concentração da torcida alvirrubra, com um anão fantasiado de “Anãoderson” (Anderson foi o autor do gol da vitória do Grêmio na Batalha dos Aflitos) e uma drag queen fantasiada de Barbie como os principais destaques.

Os insultos homofóbicos das torcidas rivais contra o Náutico também são vistos regularmente na imprensa esportiva pernambucana. É muito comum as torcidas rubro-negra e tricolor aparecerem, por exemplo, em entrevistas televisivas se referindo ao Alvirrubro como “Barbie”, sem que haja qualquer repreensão por parte da equipe de reportagem ou da edição do programa. Segundo relatos no Twitter, na quinta-feira, 13, após uma reportagem precisamente sobre Gil do Vigor (vítima de homofobia por parte do conselheiro do Sport), no Globo Esporte, apareceram torcedores rubro-negros falando sobre o Clássico dos Clássicos deste domingo, 16, em que um se referia ao adversário da final do Campeonato Pernambucano como “Barbie” e outro segurava uma caixa de boneca.

Homofobia vs. homofobia

A torcida alvirrubra, vítima de ostensiva e constante provocação homofóbica, entretanto, ao invés de combater o preconceito contra a comunidade LGBTQIA+ reage à homofobia como? Com insultos homofóbicos, principalmente contra o seu maior rival, o Sport Recife. Assim, na tentativa de rebater a ofensa de “Barbie”, parte da torcida do Náutico se refere ao Leão como Susi, rubro-neca ou cachorra de peruca.

Aqui é preciso chamar a atenção para dois termos. Primeiro, o “cachorra de peruca”, que também é usado pela torcida Tricolor. É que muita gente não vê homofobia na expressão, entendendo que aí só há uma mera diminuição do Leão. Mas, por que não se referem, então, a “cachorro de peruca”? O que está por trás desta opção pela expressão no feminino (cachorra)? Evidentemente que se trata de uma ofensiva de cunho misógino e homofóbico, porque usa o sexo feminino como forma de menosprezo ao rival e a ao associar a imagem do clube rival ao feminino há a ideia subjacente da fragilidade da sua masculinidade.

A segunda provocação a ter em atenção é a “Susi”. Aqui temos a interseção de dois preconceitos. O homofóbico, pela redução à condição de “boneca”, mas também o preconceito de classe, afinal, se o Náutico é Barbie, a boneca mais famosa do mundo, o Sport é a Susi, uma concorrente mais barata no mercado brasileiro.

Preconceito se combate com educação e respeito

Estas manifestações preconceituosas, como a que Gil do Vigor foi vítima nesta sexta-feira, 14, e aquelas recorrentes nas arquibancadas e discussões futebolísticas em Pernambuco apenas reforçam como o futebol, como uma das maiores manifestações culturais da contemporaneidade, não se encontra isolado do seu meio. Pelo contrário, o futebol é reflexo do seu contexto social, político e econômico. E em uma sociedade marcadamente racista, machista, misógina e homofóbica é evidente que todos estes preconceitos vão se expressar e exteriorizar também no futebol.

Este episódio de homofobia por parte de Flávio Koury contra Gil do Vigor e a repercussão nacional que isto gerou não pode se perder em uma perseguição punitivista contra o agressor homofóbico. Claro, Flávio Koury tem que ser excluído não apenas do Conselho Deliberativo do Sport Recife, mas do seu quadro social; a OAB-PE tem que se pronunciar a respeito.

Que também não se perca em discursos meramente moralistas e oportunistas. É preciso que os clubes pernambucanos e a Federação Pernambucana de Futebol façam aquilo que negligenciam há anos: que enfrentem o problema com firmeza e que ajam de forma educativa, com campanhas constantes (e não efêmeras e superficiais), no intuito de se trabalhar na desconstrução desses discursos preconceituosos. Afinal, o futebol deve ser o espaço de quem quiser o ocupar.

* Emanuel Leite Júnior é doutorando em Políticas Públicas na Universidade de Aveiro (Portugal)

Gil do Vigor Sport
Foto: Reprodução Sport

 

Homofobia nos estádios de Pernambuco

por Rodrigo Carrapatoso de Lima

Historicamente os estádios de futebol se constituem como um espaço legitimado para os “homens” e infelizmente, episódios de homofobia no futebol pernambucano não são novidade. Muito comum, os gritos e músicas homofóbicas estão na ponta da língua das três maiores torcidas do Estado. Só para citar alguns exemplos, os atos homofóbicos das torcidas recifenses incluem:

– Ao enfrentar o Santa Cruz, as torcidas adversárias cantam “ÔôÔ, todo «viado» que eu conheço é tricolor, ôôô…”
– Ao ter como adversário o Náutico, a manifestação preconceituosa das torcidas adversárias é chamá-los de «Barbie».
– Para o Sport, o termo «Susi» e «cachorra de peruca» foram os escolhidos pelos seus adversários.

Durante muito tempo esta homofobia foi ignorada como forma de violência. Através destas “provocações”, a homofobia[1] das arquibancadas recifenses expõe também o padrão machista e misógino de um sociedade orientada pelo patriarcalismo.

Desta forma, permeado de preconceito e violência simbólica, estes estádios de futebol (um esporte supostamente viril) são ambientes extremamente hostis para aqueles que não se enquadrem dentro dos atributos de “macho”.

Assim, nesta sociedade heterenormativa, uma simples dança é considerada uma ofensa aos valores da masculinidade. A rejeição a homossexualidade só queria uma motivo para ser verbalizada.

O revide a esta “masculinidade hegemônica” passa não somente pelas autoridades e estruturas jurídicas, mas também por cada (a) torcedor (a), que deve agir com tolerância zero a qualquer tipo de violência, não permitindo que haja qualquer tipo de discriminação nos estádios.

Notas

[1] A homofobia é uma categoria polissêmica e merece uma discussão mais abrangente. Aqui utilizo-o como um termo genérico que abarca diversas variantes.

* Rodrigo Carrapatoso de Lima é torcedor e sócio do Sport Club do Recife e doutorando em História na Universidade de Coimbra.

Gil do Vigor Sport
Fonte: Reprodução Globoplay

 

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Daniel Leal

Jornalista pernambucano com mais de dez anos de atividade como repórter esportivo. Mestre e doutorando em Comunicação pela Universidade Federal do Pernambuco (UFPE). Especialista em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais, pela Faculdade Estácio de Sá, e graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo, pela Universidade Católica de Pernambuco. Membro do Observatório de Mídia: gênero, democracia e direitos Humanos (OBMIDIA UFPE) e da Rede nordestina de estudos em Mídia e Esporte (ReNEme). Pesquisador das temáticas ligadas ao Futebol, Jornalismo, Audiência e Comunicação. E-mail: [email protected]

Rodrigo Carrapatoso de Lima

Possui graduação em História (2008), especialização em História do Século XX (2010) e mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2013). Atualmente é doutorando na Universidade de Coimbra (UC) e Técnico em Assuntos Educacionais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme) e Pesquisador das temáticas ligadas a ditadura e futebol.

Como citar

LEAL, Daniel; LEITE JúNIOR, Emanuel; LIMA, Rodrigo Carrapatoso de. O caso Gil do Vigor e a homofobia no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 25, 2021.
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