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O chocolate e o peixe

Melina Nóbrega Miranda Pardini 4 de agosto de 2009

Destaca-se no ritual do futebol uma personagem das demais: o jogador. Ele intermedeia a relação entre a divindade do ritual, o próprio clube de futebol, e seus fiéis, os torcedores desses clubes. A ira dos deuses e dos mortais seguidores do futebol recai sobre eles, assim como as glórias – aqui, falaremos sobre as últimas.

No ritual futebolístico, há jogares que conquistam uma qualificação especial, em relação aos demais, por terem realizados fatos considerados incríveis. Esses são os heróis, e no jogo de futebol eles se revelam, na maioria das vezes, na figura dos goleadores – seja o center foward de antigamente, ou o artilheiro de hoje. São eles os oficiantes encarregados de realizar o ponto máximo da partida de futebol, aquele dado na própria “meta”, o gol.

Nas décadas de 30-40 do século XX, o futebol brasileiro, ou melhor, o Brasil, tinha em seu panteão nacional de heróis um jogador de futebol, negro, carioca e de origem humilde – Leônidas da Silva. A idolatria daquele que teria como epíteto “Diamante Negro” era enorme. Lembrado para sempre pelo mito de ter sido o inventor da jogada “bicicleta” no futebol brasileiro, Leônidas sempre foi adorado pelos fãs de futebol em sua época de jogador.

O estereótipo criado pelos jornais censurados no Estado Novo, onde sua figura e atitudes eram vistas como as de um malandro, apenas auxiliaram para aumentar a identificação entre Leônidas e os amantes do futebol.

Em um período onde o regionalismo entre os Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro era latente e o Estado Novo tentava amenizá-lo para fazer vingar o seu projeto de unidade nacional, a figura de Leônidas foi muito trabalhada pelo aparato propagandista do governo para auxiliar nessa construção de um Brasil uno e homogêneo em sua identidade.

O “Diamante Negro” jogou dezenove anos pela Seleção Brasileira, atuou tanto na Seleção Paulista, como na Seleção Carioca de futebol, foi jogador de clubes cariocas (como o Vasco da Gama e o Flamengo) e do clube paulista São Paulo Futebol Clube. Nesse último, além de herói, foi um importante elemento para o crescimento e fortalecimento do futebol paulista e do próprio São Paulo Futebol Clube em âmbito nacional.

Seu primeiro jogo pelo São Paulo contra o Corinthians Paulista por ter contabilizado um gigantesco público, foi apelidado pelo jornalista Thomás Mazzoni como “Majestoso”. Já o seu primeiro jogo com a camisa do tricolor paulista contra o Palmeiras, onde fez seu primeiro gol jogando pelo São Paulo – de bicicleta – foi tão espetacular que o mesmo jornalista nomeou tal encontro de “Choque – Rei”.

O herói nacional das décadas getulistas teve a impressão de ter feito “uns seiscentos gols” ao longo de sua carreira, sendo “uns quinze, vinte gols” pela seleção brasileira. Sem dúvida alguns números tão impressionantes quanto sua carreira e vida1.

Porém, para os nostálgicos sempre presentes em nosso futebol, o tempo cíclico do ritual futebolístico fez reaparecer na primeira década do século XXI um outro herói, que tal como Hércules e seus incríveis doze trabalhos, realizará seus incríveis mil gols.

Romário de Souza Faria foi considerado herói nacional durante a Copa do Mundo de Futebol de 1994, nos Estados Unidos. Goleador, carioca e de origem humilde como Leônidas, iniciou sua carreira futebolística no clube carioca Vasco da Gama. Atuou pela Seleção Brasileira principal setenta e quatro partidas, onde fez cinqüenta e seis gols.

Assim como o “Diamante”, além de inúmeros títulos, Romário, conhecido pelo epíteto “Baixinho”, foi por diversas vezes o artilheiro das competições por ele disputadas. Outra semelhança entre esses heróis do futebol brasileiro consiste na caracterização como malandro. Sempre considerado um jogador oportunista, um artilheiro nato, aquele que malandramente espera dentro da pequena área aparecer a oportunidade para vencer a “meta” e realizar o gol, Romário parece hoje nos desmentir tal mística, pois só oportunismo não seria suficiente para tamanha quantidade de gols.

Não poderia haver melhor momento para o futebol nacional estar preste a realizar, novamente, o incrível fato de ter um herói com mil gols. Em um momento onde o futebol e a própria sociedade brasileira carece de heróis, nada mais estimulante e conhecido do que a uma história mítica, onde um velho conhecido volta para socorrer a pátria.

O clube do heróico feito será o Vasco da Gama, time por onde passou vários ídolos e heróis, como o próprio Leônidas da Silva. Clube de origem portuguesa – povo de poetas e epopéias heróicas. Se o estádio for o Maracanã, palco da tragédia épica da Copa do Mundo de 1950, com o milésimo gol poderemos diminuir a dor que ainda lateja, cotidianamente, em nossa memória.

Fazer uma multidão de fiéis e simpatizantes festejarem, desconhecidos se comungarem, e cidadãos de uma mesma pátria se reconhecerem como tais, constituem-se em fatos possíveis de ser realizado por poucos mortais. Esses são semideuses, heróis de uma dúbia imortalidade, cientes, ao fundo que, jamais morrerão. Leônidas da Silva, herói nacional em uma época faz parte desse restrito grupo. Assim como faz Fausto, Friedreich, Garrincha, Pelé e agora Romário, mil vezes legitimado.


[1] Essas informações sobre a carreira de Leônidas da Silva se encontram no Acervo Futebol, fitas 45.1 e 45.1-2, no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo (MIS – SP).
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

PARDINI, Melina Nóbrega Miranda. O chocolate e o peixe. Ludopédio, São Paulo, v. 02, n. 2, 2009.
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