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O clássico (da vez) da imprensa clubista

Leandro Marçal 1 de abril de 2022

Um indício de que os clubes brasileiros são mal administrados é o dinheiro gasto à toa com advogados. Os rivais da vez poderiam economizar quantias milionárias no campo jurídico se convocassem o exército de “doutores” voluntários com diploma de Jornalismo. Tais profissionais aproveitam um generoso espaço na grande imprensa e espumam para defender suas agremiações contra notícias negativas pipocando no campo da realidade. Umas são sérias, outras bem tolas, fazendo os advogados não remunerados se alternarem entre divertidos e patéticos.

É importante deixar claro que a imprensa esportiva brasileira está recheada de excelentes profissionais. Gente estudiosa e séria, capaz de esmiuçar cada vírgula de seus textos para não cometer injustiças e leviandades, com habilidade para destrinchar aspectos táticos e técnicos de um jeito simples sem ser raso. Há incontáveis setoristas dedicados e muito trabalhadores, vivendo o dia a dia dos clubes de forma intensa e que merecem reconhecimento. O mesmo vale para comentaristas que explicam para o espectador comum a história de um jogo.  

Também é obrigatório ressaltar que no esporte de alto rendimento ninguém está à frente dos rivais à toa. Entre erros e acertos, Flamengo e Palmeiras colhem frutos plantados anteriormente e talvez o mesmo possa ser dito do forte Atlético-MG. Nem discuto méritos esportivos, tampouco questões técnicas e táticas. Muito menos desejo pregar contra o jornalismo profissional, longe disso. Tento não ser um idiota a maior parte do tempo e lamento ver jornalistas em sentido oposto.

Meu incômodo com a cobertura diária é ver a realidade distorcida ou escondida no canto da sala ao lado da credibilidade de jornalistas gabaritados para defender seus clientes, sem contrato assinado, a todo custo. Numa rápida passada pelo Twitter, é fácil se deparar com comunicadores esquecendo as aulas de Ética e dando um jeito de expor colegas de profissão para defender o rubro-negro ou o alviverde, como se os clubes fossem verdadeiras seitas e a informação tivesse papel secundário na gritaria insana. Alguns chegam a desdenhar a apuração alheia, numa prepotência de fazer estátuas corarem.

Não faz muito tempo que parte considerável dos jornalistas esportivos brasileiros pensou ter reinventado a roda ao se dar conta de uma obviedade, a de que revelar o time de coração não é crime inafiançável. Então, abriu-se a caixa de pandora: malucos sem diagnóstico acreditam que críticas a dirigentes passageiros são ofensas aos clubes; desocupados têm certeza de que apontar erros no desempenho de atletas é jogar merda na história de um time; alucinados acusam federações de conspirarem pela derrota de suas seitas, para eles tudo é armado para o rival ganhar, e mesmo assim continuam gastando horas e mais horas dando audiência para o esporte tão “arranjado”.

Caminham lado a lado o clubismo em estado puro e o ódio gratuito, sem razão de ser. Quando um torcedor, no ápice da irracionalidade, repete esse expediente é até compreensível, embora o inaceitável apareça de tempos em tempos. Mas se isso vira rotina entre profissionais da comunicação é porque há algo de muito errado no reino da imprensa esportiva.

***

Nas sessões de psicoterapia, ouvi diversas vezes que “a lógica da razão é diferente da lógica da emoção”. Isso explica por que muitas vezes, quando olhamos de fora, encaramos atitudes irracionais com perplexidade. Pessoas envolvidas afetivamente em situações com relacionamentos humanos de diversas ordens metem os pés pelas mãos sem perceber. Ou percebem e negam o óbvio, andando em círculos e se complicando cada vez mais.

Há uma parcela da imprensa esportiva disposta a passar pano ou fazer ataques gratuitos aos rivais da vez sem seguir a lógica da razão e precisando de terapia. Numa analogia meio clichê, mas bem relevante, podemos dizer sem medo de errar que “a lógica das redes sociais é diferente da lógica do jornalismo”. A primeira busca o engajamento e as curtidas e os compartilhamentos a todo custo. Para isso pode apelar aos gritos, berros, montagens e falsidades. A segunda exige seriedade, apuração, fontes e trabalho duro, exaustivo, ingrato. Nesses tempos de personalização desmedida do fazer jornalístico, as duas lógicas se misturam de forma ilógica, privilegiando o ruído e a apelação. 

Há quanto tempo não se ouvia falar do comentarista bigodudo ressurgindo ao atacar gratuitamente o treinador palmeirense? Por que há espaço para um analista grisalho semanalmente aparecendo entre os assuntos mais comentados no Twitter por falar absurdos, quase sempre dos rivais da vez? E aquele outro, o da falsa franja: sempre mais ranzinza, entra em discussões acaloradas na praça pública virtual e até dá para imaginá-lo pedindo a devida vênia ao meritíssimo para cuspir abelhas africanas contra quem ousou citar seu rubro-negro em palavras menos que elogiosas.

Abel Ferreira
Foto: Divulgação/Palmeiras

Uns tratam Abel Ferreira como inventor da bola, outros como destruidor do futebol brasileiro. Há quem o acuse de retranqueiro, como se tivéssemos aí um crime lesa-pátria e não fôssemos resultadistas. E surgem advogados provando que não, o técnico palmeirense coloca em prática o melhor futebol dessa terra sofrida desde que a bola é redonda. Outros se engalfinham com indiretas dignas de casais em crise no relacionamento para provar que o atacante Pedro fará a ponte aérea RJ-SP. Ou não, não fará nunca! Aquela velha rivalidade tosca entre paulistanos e cariocas, dos tempos mais românticos da crônica esportiva, parece voltar à moda com estética digital.

Para alegria de algum ghost writer, houve até resenha do livro “Cabeça fria, coração quente” colocando-o como uma revolução na literatura esportiva. Já me deparei com pseudoanálises provando que Pedro estava praticamente proibido de se transferir para o Palmeiras. Eu me sentia constrangido quando se atacava Vinícius Junior como se ele fosse jogador profissional por acidente ou quando se defendia Gabriel Jesus a todo custo depois de más atuações pela seleção brasileira. E quando o comandante verde foi praticamente sentenciado por toda a colonização portuguesa nos tempos das grandes navegações, lembra?

Certos poços não têm fundo. Dá preguiça só de pensar no eterno retorno da rasa discussão sobre o duelo fictício entre Jorge Jesus e Abel Ferreira. Quem foi melhor?, perguntam. Ninguém nem ousa questionar o fato de que técnicos estrangeiros só migram para nossa terrinha quando não encontram mercado em sua Europa natal.

Cansa.

***

No último bloco da entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, Abel Ferreira respondeu à apresentadora Renata Fan que a imprensa brasileira é tão difícil de lidar quanto a portuguesa, mas que entende bem o trabalho dos profissionais. Segundo o treinador, deveria haver maior destaque ao chamado jornalismo positivo e de inspiração, seja lá o que isso signifique. Se entendi bem, há um incômodo pela quantidade industrial de notícias ruins neste mundo de tantas pessoas ruins.

Abel Ferreira
Foto: reprodução

Não entendo de táticas e técnicas e gestão de grupo como o treinador português. Ele tampouco entende que a função do jornalismo é informar os fatos, bons ou ruins. Jornalismo positivo é assessoria de imprensa. E fica difícil cogitar uma explicação detalhada de uma função tão importante para a democracia quando boa parte dos meus colegas de profissão parece ter esquecido os anos de formação e confunde, alguns propositadamente, informação com deformação, análise com torcida, personalismo excessivo com polêmicas rasas, engajamento com relevância, curtidas com interesse público.

Quando o trabalho de certa imprensa esportiva vira mero espelho de arquibancada, com clubismo raivoso e gritos por cliques, perdemos todos. Antes mesmo do apito inicial.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. O clássico (da vez) da imprensa clubista. Ludopédio, São Paulo, v. 154, n. 1, 2022.
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