156.7

O Clássico delas: o primeiro encontro entre Cruzeiro e Atlético no Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino A1

Em mais de um século de bola rolando em terras mineiras, a prática do futebol como divertimento originou diversos times nos campos de várzea, e a estruturação de muitos deles ao longo das décadas do século XX favoreceu o surgimento de diversos clubes de futebol, em cidades do interior, e também na capital de Minas Gerais.

Em Belo Horizonte, três times se destacam pela longevidade e atuação em campo: o Clube Atlético Mineiro, criado em 1908; o América Futebol Clube, criado em 1912; e o Cruzeiro Esporte Clube, que teve sua origem no ano de 1921. Daqueles tempos remotos até os dias de hoje, cada clube foi construindo a sua trajetória e marcando presença no panorama esportivo mineiro e nacional, colocando em evidência o futebol mineiro, que brotava nas várzeas e se avolumava nos estádios.

Considerando a participação em competições de expressão no panorama nacional e internacional, o Cruzeiro-MG se notabiliza entre os três clubes por ter alcançado uma quantidade expressiva de títulos, sendo campeão: da Copa Libertadores da América em 1976 e 1997, do Campeonato Brasileiro em 1966, 2003, 2012 e 2013, e da Copa do Brasil em 1993, 1996, 2000, 2003, 2017 e 2018. Por outro lado, o Atlético-MG foi campeão da Copa Libertadores da América em 2013, campeão do Campeonato Brasileiro em 1971 e 2021, e campeão da Copa do Brasil em 2014 e 2021. E o América-MG, que embora ainda não tenha alcançado títulos na Copa do Brasil ou no Campeonato Brasileiro Série A, foi campeão do Campeonato Brasileiro Série B em 1997, e no ano de 2022, pela primeira vez em sua história, conseguiu participar da Copa Libertadores da América, terminando sua participação nessa competição na fase de grupos, não conseguindo avançar para a próxima fase, as Oitavas de Final.

Apesar do desenvolvimento que o futebol vem alcançando dentro de campo e das conquistas que esses três clubes foram traçando com suas equipes, quando se observa em suas trajetórias o lugar ocupado pelas mulheres nos times, é possível constatar que havia (e há) um grande desafio para esses clubes. De modo mais amplo, tal desafio demanda a ação não só deles, mas também de outros clubes de futebol: a constituição de equipes compostas por mulheres e a permanência delas no planejamento orçamentário dos clubes, de modo haja para elas condições semelhantes às dos homens em relação à prática e à profissionalização nesse esporte. Por décadas o enfrentamento desse desafio foi postergado por sujeitos e grupos envolvidos com o cotidiano do futebol: nos bastidores dos clubes; nos corredores, gabinetes e nas plenárias dos espaços políticos; ou nas diferentes esferas e espaços sociais.

Nos clubes já constituídos, a ausência de mulheres em campo poderia evidenciar o descaso quanto à essa questão. Embora haja registros de iniciativas que incentivavam a prática do futebol por mulheres, inclusive em períodos de nossa história em que havia normativas que as proibiam de praticar o futebol, tais iniciativas eram ações pontuais, e estavam muito distantes de alcançar a superação efetiva das barreiras que impulsionavam o distanciamento das mulheres em relação aos gramados de futebol e à sua prática de modo amplo entre elas.

No ano de 1958 no município de Araguari-MG, a partir da iniciativa da Diretora do Grupo Escolar Visconde de Ouro Preto, que recorreu aos dirigentes do Araguari Atlético Clube para ajudarem a angariar recursos para salvar as finanças da escola, teve origem a formação do time de futebol de mulheres do Araguari Atlético Clube[1]. O jogo beneficente foi realizado em dezembro de 1958, e seria o primeiro de muitos outros que ocorreriam em outras cidades mineiras, além de Goiânia e Salvador, entre os anos de 1958 e 1959[2]. Essa iniciativa também pode ser identificada como uma das tentativas de inserção de mulheres em times de futebol.

Na dimensão política, a publicação do Decreto-Lei 3199/41 durante o governo de Getúlio Vargas estabeleceria as bases da organização esportiva no Brasil, em um contexto de controle e centralização do esporte brasileiro. Demarcaria também o distanciamento da possibilidade de mulheres praticarem futebol, entre outros esportes, que eram considerados incompatíveis com a natureza feminina. Além de instituir o Conselho Nacional de Desportos (CND), entre outras decisões, também indicava em seu artigo 54, que as mulheres estariam proibidas de praticarem os esportes que fossem considerados “incompatíveis com as condições de sua natureza”[3].

Apesar de não evidenciar quais seriam esses esportes, para aquela época o futebol era compreendido como uma prática incompatível para as mulheres. E as proibições em relação à prática dessa e de outras modalidades esportivas foram explicitadas e ainda mais acentuadas durante a ditadura militar, contando inclusive com o aparato de instrumentos normativos, como ocorrido no ano de 1965, após a publicação da Deliberação Nº 7 do Conselho Nacional de Desportos[4].

Ainda que a proibição não representasse o fim da prática do futebol por mulheres no Brasil, por décadas ela conduziu à invisibilidade aquelas mulheres que resistiram à proibição, limitou também o amplo desenvolvimento do futebol direcionado a este público nos diversos clubes brasileiros, e distanciou muitas mulheres dessa prática ao longo de várias décadas. Embora em 1983 o Conselho Nacional do Desporto tenha regulamentado o futebol para mulheres e autorizado a prática do esporte em todos os municípios no Brasil, ainda hoje, passadas duas décadas do século XXI, é possível observar a existência de muitas barreiras, objetivas ou subjetivas, que perpetuam as lacunas entre o futebol e a sua prática entre as mulheres.

Ao longo das décadas iniciais do século XX e até os dias de hoje, disputas foram e são travadas em diferentes espaços sociais, evidenciando questões relativas aos impedimentos de mulheres praticarem futebol. Se anteriormente havia grupos religiosos, da área médica e da própria área esportiva que compreendiam que o futebol poderia prejudicar a feminilidade das mulheres, é possível observar que existiram grupos que resistiram às proibições e colocaram seus times nas ruas ou nos campos, na busca de realizar o jogo e oportunizar às mulheres o direito de jogar futebol, alimentando ecos de resistência que contribuíram para fortalecer as reivindicações nos dias atuais. Ainda assim, é possível observar que o preconceito em relação à participação de mulheres em determinados esportes não foi superado, sendo inclusive, reforçado por grupos que defendem os valores ditos como pertencentes à família tradicional

Ao longo de mais de um século, entre movimentos de acomodação ou de resistência, de incentivo ou de descaso, o futebol de mulheres se constituiu por trajetórias que foram traçadas de modos diversos e que nos conduzem a diferentes panoramas na atualidade. Ainda temos muito a construir para que as mulheres possam jogar futebol com liberdade, sem receio de receberem estereótipos que dificultam o processo de inserção das mesmas no esporte ou de serem enquadradas em tipos pré-estabelecidos, por exemplo, em função de questões ligadas a habilidade ou de gênero.

Embora o quantitativo de equipes compostas por mulheres ainda seja reduzido, se comparado ao quantitativo de equipes compostas por homens, algumas ações mais recentes estão contribuindo para que mais mulheres estejam inseridas no futebol, fazendo com que agora seja mais acessível vislumbrar a possibilidade de se tornarem jogadoras profissionais.

A estruturação de calendários para a realização de campeonatos regionais, nacionais e internacionais entrou no radar das entidades esportivas, reflexo do tensionamento constante de muitas atletas, dirigentes e outros grupos que vêm reivindicado a maior inserção das mulheres no futebol, no cotidiano dos clubes e almejando melhores condições para as atletas. Assim, a partir do ano de 2013, contando com o apoio do Governo Federal, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) retomou a realização do Campeonato Brasileiro de Futebol para mulheres, que anteriormente teve a sua última edição realizada no ano de 2001.

O Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino-2013[5] contou com a participação de 20 times, distribuídos em 4 grupos: Grupo 1 (Adeco-SP, Rio Preto-SP, Duque de Caxias-RJ, Aliança Futebol Clube-GO e Francana-SP); Grupo 2 (Foz Cataratas-PR, São José-SP, Vasco da Gama-RJ, Kinderman-SC e ASCOOP-DF); Grupo 3 (São Francisco-BA, Vitória-PE, Caucaia-CE, Botafogo-PB e Mixto-MT).

Naquele ano, o título foi conquistado pela equipe Adeco-SP, que após o empate de 2 x 2 contra a equipe São José-SP, no primeiro jogo das finais (realizado no dia 04 de dezembro de 2013 no estádio Joe Sanches, em São José dos Campos-SP), venceu o segundo jogo por 2 x 1 (realizado no dia 07 de dezembro de 2013 no estádio Giglio Pichinin, em São Bernardo do Campo-SP).

Entre os times Mineiros, o primeiro a participar dessa retomada do Brasileirão foi a equipe do América-MG, na edição do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino-2016[6]. Com quatro pontos conquistados na Primeira Fase, a equipe finalizou a sua participação em terceiro lugar no Grupo 2, não conseguindo avançar para a Segunda Fase do Campeonato. E no ano de 2017 participou do Campeonato na Divisão A2.

As equipes do Atlético-MG e do Cruzeiro-MG ingressam no Brasileirão somente no ano de 2019, na Divisão A2, juntando-se ao América-MG no Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino A2-2019[7]. Naquela edição, nenhuma das equipes mineiras se encontraram em jogos durante o Campeonato. O Atlético-MG participou somente da Primeira Fase, terminando na penúltima posição do no Grupo 4, com apenas um ponto que foi conquistado nos jogos contra os outros cinco times do grupo. E o Cruzeiro-MG, que estava no Grupo 5, alcançou o vice-campeonato após perder o primeiro jogo das finais para o São Paulo por 0 x 4 (realizado no dia 18 de agosto de 2019, no estádio Pacaembu em São Paulo-SP) e empatar por 1 x 1 no segundo jogo (realizado no dia 25 de agosto de 2022, no Estádio das Alterosas em Belo Horizonte-MG). O vice-campeonato de 2019 garantiu ao Cruzeiro-MG a possibilidade do acesso à Divisão A-1 do Campeonato Brasileiro no ano de 2020.

Somente no ano de 2022 as equipes do Atlético-MG e do Cruzeiro-MG se reencontraram na mesma divisão do Campeonato Brasileiro, quando a equipe alvinegra mineira conseguiu o acesso para a divisão A1. Nessa primeira fase do campeonato, todas as dezesseis equipes jogam entre si, ao longo de quinze rodadas, em turno único. A previsão de término da primeira fase é o dia 7 de agosto de 2022, finalizando a fase inicial do campeonato. Na sequência, as equipes que estiverem classificadas até a oitava posição prosseguirão para a próxima fase do campeonato.

Esta seria a primeira oportunidade de um confronto entre Cruzeiro e Atlético no Campeonato Brasileiro A1. Na ocasião da realização do primeiro clássico entre o Cruzeiro e o Atlético no Campeonato Brasileiro Feminino A1-2022, no Estádio das Alterosas (SESC Venda Nova-BH), os dois times estavam na parte de baixo da tabela, o Atlético-MG com 4 pontos, na 14ª posição, e o Cruzeiro com 3 pontos, na 15ª colocação.

A partida, prevista para iniciar às 20h da segunda-feira (4 de abril de 2022), contou com a presença significativa da torcedores e torcedoras de diversas idades, das duas equipes. Para assistir ao jogo, cada torcedor(a) poderia trocar o ingresso (social, não foi vendido) por 1 kg de alimento não perecível ou por produto de limpeza.

Cruzeiro
Ingresso para o Clássico entre Cruzeiro e Atlético. Foto: Luciana Cirino

Na arquibancada não houve isolamento entre as torcidas, assim, cruzeirenses e atleticanos permaneceram juntos, sem que houvesse incidentes. Ao longo da partida era possível ouvir os gritos de incentivo, as falas e os xingamentos, inclusive homofóbicos e sexistas, direcionados ora para a arbitragem, ora para as jogadoras (da própria equipe ou da equipe adversária), e nos momentos em que os tentos foram marcados, cada torcida comemorou com muito alvoroço.

A pressão exercida pelo Cruzeiro sobre o time do atlético não foi suficiente para segurar o placar a seu favor e o primeiro gol foi marcado aos oito minutos do primeiro tempo. Após a cobrança de escanteio realizada pelo lado direito, a bola recebida na área pela Bruna Cotrim, foi lançada de cabeça para a Karol Arcanjo, que se valendo de seu bom posicionamento, finalizou com um chute  para dentro do gol, colocando a equipe atleticana em vantagem no placar.

O segundo gol do Atlético foi marcado aos trinta e nove minutos do primeiro tempo, em cobrança de pênalti realizada pela camisa 11, Soraya. Na arquibancada, a torcida atleticana vibrava com o segundo tento, mas a torcida cruzeirense continuava apoiando suas jogadoras.

Ainda no primeiro tempo a equipe celeste conseguiu marcar o seu tento no jogo, após a falha da goleira do Atlético, que não conseguiu segurar a bola lançada na área em cobrança de escanteio. Aos trinta e nove minutos de jogo, durante uma disputa pela posse da bola que estava perdida na área, a jogadora Isa Fernandes conseguiu ser bem sucedida na missão de marcar o gol contra a equipe atleticana, após um chute oportuno e certeiro que deixaria a partida com o placar de Cruzeiro 1 x 2 Atlético.

No segundo tempo, apesar dos esforços das jogadoras do Cruzeiro dentro de campo e da vibração da torcida na arquibancada, o placar do jogo se manteve inalterado. Ao término do jogo, o Atlético-MG somou mais 3 pontos no campeonato e alcançou a primeira vitória no primeiro clássico entre as duas equipes na elite do futebol brasileiro.

Cruzeiro Atlético
A torcida na noite do clássico Cruzeiro e Atlético . Foto: Luciana Cirino

Terminada a partida, os times saíram do campo e nós da arquibancada. Na análise final desse primeiro encontro entre as jogadoras e as torcidas das duas equipes, ficaram algumas reflexões: nossos olhares deveriam melhor se ajustar para compreender que devido também às proibições, o atraso que as mulheres tiveram para jogar futebol impactou o desenvolvimento do jogo delas, não sendo coerente fazermos correlações descontextualizadas entre o modo de homens e mulheres jogarem bola; ainda que o incentivo recente para promover o futebol de mulheres esteja impulsionando a sua prática e avolumando as equipes, ainda há muito a se fazer para garantir um lugar de destaque para as mulheres nesse esporte, que recebe pouco aporte financeiro, em muitos casos, menos estrutura, além de ter pouco espaço em algumas mídias e pouca cobertura por parte da imprensa esportiva; e, considerando que há movimentos corporais que são inerentes à prática dessa modalidade esportiva, tais como o chute, o drible e o cabeceio, e que para serem executados demandarão determinadas habilidades de seus praticantes,  independentemente de serem homens ou mulheres, ao nos posicionarmos com falas sexistas e homofóbicas ou ao nos silenciarmos diante delas, faremos um desserviço para a acolhida de iniciantes, além de ferirmos a liberdade de quem pratica e de quem torce.

Viva o futebol de mulheres e vida longa aos clássicos entre seus times!

Notas

[1] Veja o artigo sobre a constituição do time de futebol de mulheres do Araguari Atlético Clube, em 1958. Disponível em: http://ge.globo.com/mg/triangulo-mineiro/olimpiadas/noticia/2016/08/pioneiras-do-esporte-proibido-historias-do-inicio-do-futebol-feminino-no-brasil.html. Acesso em 28/05/2022.

[2] Veja o artigo sobre as jogadoras da cidade de Araguari, que em 1959 vieram a Belo Horizonte para realizar jogo festivo no Estádio do Independência, entrando em campo com as camisas do América-MG e do Atlético-MG. Disponível em: https://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/interior/2019/03/22/noticia_interior,573982/ha-60-anos-classico-feminino-entre-america-e-atletico-lotou-o-horto.shtml. Acesso em 29/05/2022.

[3] Decreto-Lei Nº 3199, de 14 de abril de 1941. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3199-14-abril-1941-413238-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 06 dez. 2021.

[4] Deliberação Nº 7 Conselho Nacional de Desportes. Disponível em: http://cev.org.br/biblioteca/deliberacao-n-7-2-agosto-1965/. Acesso em: 08 dez. 2021.

[5] A tabela completa dos resultados dessa edição pode ser acessada na página da CBF. Disponível em: https://www.cbf.com.br/futebol-brasileiro/competicoes/campeonato-brasileiro-feminino/2013?phase=917. Acesso em: 30/05/2022.

[6] A tabela completa dos resultados dessa edição pode ser acessada na página da CBF. Disponível em: https://www.cbf.com.br/futebol-brasileiro/competicoes/campeonato-brasileiro-feminino/2016?phase=1075. Acesso em 30/05/2022.

[7] A tabela completa dos resultados dessa edição pode ser acessada na página da CBF. Disponível em: https://www.cbf.com.br/futebol-brasileiro/competicoes/campeonato-brasileiro-feminino/2016?phase=1075. Acesso em 30/05/2022.

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Luciana Cirino

Integrante do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FULIA), da UFMG.

Como citar

COSTA, Luciana Cirino Lages Rodrigues. O Clássico delas: o primeiro encontro entre Cruzeiro e Atlético no Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino A1. Ludopédio, São Paulo, v. 156, n. 7, 2022.
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