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O contexto de adoção das SADs na Espanha: um modelo a não ser seguido

Victor de Leonardo Figols 16 de setembro de 2019

Em 1990, o governo espanhol aprovou a Ley del Deporte, uma lei que forçou os clubes de futebol a mudarem de associações esportivas sem fins lucrativos para sociedades anônimas esportivas. Em outras palavras, os clubes foram obrigados a virarem empresas, com capital social formado por ações. Isso significou que os clubes deixaram de pertencer aos torcedores – os sócios – e passaram a ser fatiados por empresários.

O debate envolvendo as mudanças na razão social dos clubes e, sobretudo, o controle estatal sobre a vida financeira dos clubes são bem anteriores à Ley. Desde a década de 1970, os clubes já apresentavam problemas financeiros, endividamento e até mesmo sonegação de impostos. O controle das dívidas dos clubes passou a ser um problema para o estado Espanhol, principalmente após o país ganhar os holofotes dos grandes eventos esportivos (Copa do Mundo FIFA de 1982 e Jogos Olímpicos de 1992).

Em 1980, a Secretaria de Estado de Deportes criou a Ley de Cultura Fisica y del Deporte. Nesta lei, o estado propunha, entre outras coisas, melhorar a administração esportiva dos clubes, mas ainda não vislumbrava um caráter empresarial para as agremiações. Foi só após a Copa que as entidades esportivas espanholas se voltaram para o problema fiscal das entidades esportivas, e posteriormente para a razão social dos clubes.

A primeira iniciativa do governo data de 1986, quando o Ministerio de Economia y Hacienda criou o Plan General de Contabilidad a los Clubes de Fútbol. Neste documento, o governo entendia que os clubes, mesmo tendo razão social de associação sem fins lucrativos, já adotavam personalidade jurídica e empresarial. E, deste modo, era preciso planificar as contas dos clubes de futebol. O Plan obrigava os clubes a detalhar todas as entradas e saídas de dinheiro: de transação de jogadores às categorias de base; de gastos com estádio à arrecadação de bilheteria; de direitos de transmissão a imóveis no nome do clube; enfim, tudo que movimentasse o caixa. O objetivo era deixar a vida econômica dos clubes o mais transparente possível, e, assim, o estado poderia criar mecanismos para taxar impostos.

Foto: Reprodução.

Vale lembrar que, em 1985, a dívida acumulada dos clubes era cerca de 21.000 milhões pesetas. Mais da metade da dívida era com a Fazenda, bancos estatais e privados, e com seguro social. Um ano após a implantação do Plan General de Contabilidad, o governo espanhol, a partir da Secretaria de Estado de Deportes, já afirmava que era impossível que asociaciones deportivas continuassem com isenção de impostos, e algo precisaria ser feito: a ideia de transformar os clubes em sociedades anônimas. O endividamento dos clubes era um problema do governo, mas também da Liga de Fútbol Profesional (LFP). A associação de clubes da primeira e da segunda divisão estava buscando reduzir a dívida dos clubes, e entendia que era necessário que os clubes passassem a ter uma administrativa menos “amadora”, e mais empresarial.

Enquanto o governo e as entidades esportivas suspeitavam da existência de “Caixa 2” nos clubes e denunciavam a falta de clareza das contas dos clubes, jogadores de futebol denunciavam fraudes no recolhimento de impostos. Em 1988, os jogadores do FC Barcelona exigiram, entre outras coisas, explicação sobre a existência de contratos duplos e sobre o recolhimento de impostos. O clube catalão firmava dois contratos com alguns jogadores: um contrato de trabalho e outro contrato de imagem. O clube só declarava os impostos referentes ao contrato de trabalho, e alegava que o pagamento de impostos sob o direito de imagens era de responsabilidade dos jogadores. Essa prática se seguiu por mais alguns anos, mesmo com denúncias de jogadores na imprensa.

A falta de clareza nas contas dos clubes e a grande circulação de dinheiro no futebol espanhol eram motivos de preocupação do governo, que passou a procurar medidas para controlar os gastos dos clubes. Por outro lado, outros grupos também estavam interessados em controlar o futebol e a circulação de dinheiro envolvida: a mídia televisiva, que cada vez mais passava a investir grandes quantias na transmissão e na compra de direito de imagens; e o interesse de empresas privadas em patrocinar, ou até mesmo controlar, os clubes de futebol. Vale lembrar aqui que, nesse período, o dinheiro das televisões representava uma das maiores formas de receita dos clubes, e o direito de imagem estava entre as três principais receitas dos clubes, junto com a transação de jogadores e o investimento de patrocinadores.

Assim, a Ley del Deporte surgiu nesse contexto. A sua principal proposta era solucionar o endividamento dos clubes, e, para isso, era necessário que os clubes se tornassem Sociedad Anónima Deportiva (SAD), isto é, empresas.  Enquanto um terço dos clubes da primeira e da segunda divisão se mostrava favorável à mudança, FC Barcelona e Real Madrid eram completamente contrários.

Tanto o FC Barcelona quanto o Real Madrid usaram de sua força política (e econômica) dentro das principais organizações esportivas da Espanha para fazer oposição à proposta. Durante os anos de 1988 a 1989, houve um amplo debate entre clubes, LFP, federações e governo para que a Ley del Deporte fosse estruturada. Os dois maiores clubes alegavam que possuíam receitas positivas nas últimas cinco temporadas. Entretanto, o fato de terem receitas positivas não significava que não possuíam dívidas, significava apenas que possuíam receitas superiores ao montante devido. Mesmo assim, FC Barcelona e Real Madrid escaparam do modelo de sociedad anónima com base em suas receitas; o mesmo aconteceu com Athletic Club e CA Osusuna, que também possuíam receitas positivas na época. Pouco tempo depois, o CA Osusuna foi obrigado a virar SAD, pois não conseguiu manter suas receitas.

Em 1990, a Ley del Deporte foi aplicada, e todos os clubes foram obrigados a assumir um caráter empresarial de capital aberto. No primeiro momento, muitos sócios antigos se tornaram acionistas de seus clubes, entretanto, os clubes foram, cada vez mais, sendo fatiados entre empresários e patrocinadores. O modelo de sociedad anónima significou, assim, uma crise no modelo associativo espanhol, na qual grande parte dos sócios tradicionais deixou de fazer parte da vida política do clube. Foi um duro golpe para aqueles sócios acostumados com poder de decisão e participação em seus clubes de coração.

Clubes da Espanha
Lista dos 20 clubes da Primeira divisão da Espanha – Temporada 2019-2020. Detalhe para sigla SAD adotada no final do nome dos clubes.

Desde a adoção da Ley, as SADs na Espanha não garantiram maior controle das dívidas dos clubes e ocasionaram o rebaixamento ou a extinção de clubes que não conseguiram se enquadrar ao modelo. Mesmo após a adoção de um modelo empresarial, o governo não conseguiu controlar os gastos dos clubes, muito menos obter transparência nas contas. Pelo contrário, houve um crescimento nas denúncias de sonegação de impostos, fraudes fiscais e até mesmo caso de corrupção, além dos pedidos de recuperação judicial.

E, para aqueles que viraram empresa, a expectativa de sanar suas dívidas nunca se concretizou de fato. O que se viu foi um aumento da circulação de dinheiro e um progressivo endividamento dos clubes, que acirrou o abismo existente entre os clubes grandes e pequenos. Clubes como o FC Barcelona e Real Madrid foram os grandes privilegiados, pois usufruíram do seu caráter associativo – escapando de impostos mais altos –, e se beneficiaram do dinheiro das televisões e de patrocinadores. Se antes esses dois clubes já eram potências esportivas, recebendo mais investimentos e dinheiro das televisões; após a Ley, esses clubes obtiveram maior força política, econômica e esportiva. O FC Barcelona e Real Madrid concentraram ainda mais poderes, assumindo maior protagonismo esportivo no futebol espanhol e europeu.

Em suma, o modelo de SADs na Espanha não conseguiu cumprir nenhuma das expectativas propostas e, pior, lançou os clubes em uma disputa desigual e desleal, em termos esportivos e econômicos.

Nota

Agradecimento ao Daniel Vinicius Ferreira pela conversa que gerou este texto.

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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. O contexto de adoção das SADs na Espanha: um modelo a não ser seguido. Ludopédio, São Paulo, v. 123, n. 18, 2019.
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