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O craque que nos deixa: recordações de Carlos Alberto Torres (1944-2016)

Minha primeira lembrança de Carlos Alberto Torres é a da semifinal do Campeonato Brasileiro de Futebol de 1976, entre Fluminense e Corinthians. A história é conhecida: frente a cento e quarenta e seis mil espectadores, o time paulista venceu a “Máquina Tricolor” nos pênaltis, classificando-se para a decisão contra o poderoso Internacional de Porto Alegre. Oito dias depois, contra os gaúchos, prevaleceu a lógica e não foi ainda daquela vez que o time mais popular de São Paulo saiu da fila de mais de duas décadas sem celebrar um título. Há poucos dias, quando da inesperada morte do grande capitão da vitoriosa campanha da Seleção em 1970, lembrei-me deste e de outros episódios de futebol em que aquele que provavelmente foi o maior lateral-direito da história tomou parte, frequentemente como protagonista.

Foi em uma tarde de sábado de dezembro que assisti, ainda criança pequena, com meu pai e meu irmão, à semifinal do Maracanã. Éramos todos corintianos na sala de casa, frente ao aparelho de televisão em cores adquirido para a Copa da Alemanha Ocidental, dois anos antes. Fiquei impressionado com a festa que a torcida do Fluminense fez quando da entrada do esquadrão bicampeão carioca em campo. Uma avalanche de vozes, bandeiras e muitíssimo pó-de-arroz para celebrar a equipe favorita, repleta de estrelas: Carlos Alberto Torres, seu xará Pintinho, Dirceu, Edinho, todos frequentadores da seleção nacional. Destaque dos destaques, Roberto Rivellino, que dois anos antes deixara o adversário daquela tarde, onde fora criado como jogador e em cuja sede era chamado de “Reizinho do Parque”. Não foi diferente com a entrada em campo do time do Corinthians. Metade do Maracanã era, naquela tarde, alvinegro. A força da fiel torcida me acalmou um pouco, éramos muitos no estádio, naquele episódio que ficou conhecido como “Invasão corintiana”.

Tenso com o andamento do jogo, vi-me frustrado com o gol de Carlos Alberto Pintinho para abrir o placar, tento que me pareceu feito com a absoluta naturalidade de quem dominava a partida. Parecia que apenas se abria o caminho para uma vitória tranquila dos cariocas. Mas não foi assim. Aos trinta minutos ainda do primeiro tempo, um improvável e lindo gol do meio-campista Ruço recolocou o Corinthians na disputa que, debaixo de um verdadeiro dilúvio, arrastou-se pelo que restou da contenda, incluindo a prorrogação. Nos pênaltis, quis o destino que Carlos Alberto Torres desperdiçasse sua cobrança defendida pelo goleiro adversário, cabendo a Zé Maria a definição da vitória paulista. Discreta ironia, o mesmo lateral corintiano que fora seu reserva imediato seis anos antes, na seleção tricampeã. Voluntarioso, seguro na marcação e eventual presença no ataque, o “Super Zé” não foi sombra da habilidade do “Capita”, como Torres foi muitas vezes chamado ao longo da vida.

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Costuma-se dizer que a derrota frente ao Corinthians foi o epílogo daquela incrível equipe de Laranjeiras, impedida de fazer a esperada final do Nacional com o Inter. É verdade, a finalíssima poderia ter sido tecnicamente melhor se o Colorado de Falcão tivesse enfrentado o Flu de Rivellino e Carlos Alberto Torres, e não o limitado, ainda que bem montado por Osvaldo Brandão, Corinthians.

Mas a “Máquina” não era apenas um ótimo time. Seus jogadores eram contemporâneos da vida hedonista de um Rio de Janeiro distendido no espírito, que talvez ainda pudesse ser chamado de Cidade Maravilhosa, o dos anos 1970. Eles frequentavam a praia e as boates de Nelson Motta, vestiam roupas coloridas e deixavam crescer os cabelos. Carlos Alberto não ficava para trás, casado com a atriz Terezinha Sodré, bem vestido e já sem o corte discreto da Copa de 1970, substituído por outro, tendendo ao black power.

Um ano depois da semifinal contra o Corinthians, Carlos Alberto deixou o Rio de Janeiro para integrar o projeto do New York Cosmos, e formar o alegre esquadrão que rodou os Estados Unidos dando espetáculo, ao lado de astros como o artilheiro Chinaglia, o maestro Franz Beckenbauer e, claro, nada menos que Pelé. Em Nova York, cidade em que Carlos Alberto, segundo ele mesmo, viveu seus melhores anos, a grama sintética dos estádios de futebol americano adaptados ao soccer viu desfilar a categoria superior do craque que, no Brasil, se destacara em todas as equipes do Rio de Janeiro, com exceção do Vasco – onde jogou seu filho, o bom zagueiro Alexandre Torres – e ainda na segunda geração do grande Santos.

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Carlos Alberto Torres ao lado de Jairzinho e Dadá Maravilha em evento realizado em 2011. Foto: José Cruz/Agência Brasil.

Carlos Alberto chegou a Nova York na noite de 13 de julho de 1977, a mesma do famoso blackout daquele verão escaldante, marcada por uma onda de saques e depredações e por mais de uma centena de pessoas detidas pela polícia. O episódio e toda a temporada de calor infernal daquele ano fora tema do excelente filme O verão de Sam, de Spike Lee. Com a falta total de energia, a estrela recém contratada pelo Cosmos subiu os sete andares do hotel que o hospedava pela escada, fato sempre relatado por ele aos risos, marca da relação mais que amistosa com a singular cidade que tão bem o recebeu. Se no Rio de Janeiro o endereço a ser visitado era o da Boate Dancing Days, em Nova York os astros do Cosmos frequentavam o badaladíssimo Studio 54. Futebol, cinema, champanhe e música se combinavam naquele universo de puro prazer.

Carlos Alberto apareceu naquele mesmo ano ao lado de um emocionado Pelé em sua despedida do futebol, em amistoso contra o Santos, em que o Rei jogou um tempo para cada uma das equipes em que brilhou. É certo que perto de Pelé todo jogador era quase sempre coadjuvante, mas não se pode desprezar o craque que vestiu a camiseta número 5 nas cores verde e branca do Cosmos, o mesmo que do eterno camisa 10 recebeu o passe para o gol que arrematou a goleada brasileira sobre a Itália em 1970. Na Liga norte-americana, além dos noventa minutos da partida em que aparecia por todos os lados do campo – ele que sempre jogou de forma polivalente –, Torres ainda se destacava em outra disputa, uma invenção vinda a calhar para uma sociedade que não tolera a igualdade ao final da contenda, cuja excitação passa pela clareza sobre quem saiu vencedor. Nada de disputa de pênaltis: o desempate se dava por desafios de seis segundos que um jogador tinha para, com a bola a partir do meio de campo e apenas contra o goleiro adversário, tentar o gol. Ali também a habilidade, a técnica e o sangue frio de Carlos Alberto prevaleciam.

A mesma fleuma que o fez capitão de grandes equipes também lhe deu a convicção de jogar duro contra adversários desleais, assim como a força de fazer comentários enfáticos e nem sempre felizes sobre política e até sobre futebol. Talvez ela tenha também limitado sua carreira como treinador. Mas, como comparar tudo isso à experiência que teve como futebolista? Gênio da bola, tem toda a minha admiração.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. O craque que nos deixa: recordações de Carlos Alberto Torres (1944-2016). Ludopédio, São Paulo, v. 89, n. 3, 2016.
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