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O dérbi eterno

Há 22 anos, uma icônica semifinal de Copa Libertadores atraia os olhares do mundo do futebol. No gramado do Morumbi, mais um Palmeiras x Corinthians, porém, não apenas mais um, e sim o clássico que entraria para a história como o Dérbi Eterno.

O espetáculo que aconteceu no dia 06 de junho de 2000 fincou lugar entre as partida mais importantes do estádio e estampou uma memória indelével nos mais de 45 mil torcedores nas arquibancadas e incontáveis aflitos que aguardavam o resultado do clássico imortal. 

Contexto histórico

O clima de rivalidade entre os já tradicionais adversários foi alimentado por quase uma década até aquela noite de junho. Bons elencos, jogadores com qualidade técnica e táticas, investimento, entre outros fatores, desenvolveram o acirramento dos ânimos e, ao passo que as temporadas reiniciavam, Palmeiras e Corinthians empilhavam ótimas equipes e títulos. 

Entre 1993 e 1999, os times paulistas protagonizaram outros confrontos decisivos, como o Campeonato Estadual de 94, título que ficou com o Palmeiras, e o de 95, do Corinthians. Não se pode esquecer da final do estadual de 1999, marcada pela pancadaria dentro e fora de campo desencadeada pelas famosas embaixadinhas de Edílson. Ainda naquele ano, o alviverde bateu o time corintiano nas quartas de final da Libertadores e, em seguida, sagrou-se campeão continental. 

Já em 2000, quando a “Liberta” começou a desenhar seu caminho para a glória eterna, os cruzamentos da fase eliminatória geraram um anseio imenso para uma possível revanche. Havia chances de um confronto brasileiro, e isso se confirmou quando Palmeiras e Corinthians avançaram para uma nova semifinal.

Esses episódios determinaram o ápice da rivalidade. O clima bélico invadiu também os vestiários. Os jogadores passaram a refletir o sentimento ensandecido da arquibancada. 

Marcos Libertadores 2000
Goleiro Marcos comemora vitória na disputa de pênaltis. Fonte: reprodução YouTube

Pré-jogo

Na partida de ida, o Corinthians havia vencido por 4 a 3, o que obrigava a equipe de Felipão a vencer, caso quisesse a vaga na final. Com o placar e a qualidade dos jogadores corinthianos, havia quem desacreditasse do Palmeiras, que, em relação ao seu rival, era um time menos preparado, mas ainda assim, movido pela emoção e pela garra.

Dentro e fora de campo, o clima era de tensão e expectativa. Antes da bola rolar, em um treino que aconteceu depois do jogo de ida, a imprensa registrou um dos momentos mais extravagantes de Felipão, algo que nunca havia sido capturado. Os repórteres conseguiram acesso aos fundos dos vestiários palmeirenses – há quem diga que com anuência do próprio Felipão, que queria mandar um recado claro -, e, como bons bisbilhoteiros que só o jornalismo consegue formar, ouviram o técnico pedir para que os jogadores tivessem “mais raça”, cobrou “pontapés e cascudos”, e, por fim, proferiu,  certamente, uma das falas mais marcantes da história do dérbi: 

“Vocês têm que ter na cabeça tudo que estou falando para vocês. Raiva dessa porra de Corinthians”.

O clima no vestiário parafraseava um mar revolto. Luiz Felipe Scolari nunca foi um homem de ânimos calmos e sempre fez questão de repassar isso também aos seus comandados. Se era motivação que o Palmeiras precisava, Felipão o fez como ninguém e a partida que sequer havia começado já tinha seu primeiro lance de mais emoção.

O jogo do século

Aquela semifinal era o momento de consagração de algum dos dois times. Apesar do resultado do primeiro jogo, de um lado, havia um Corinthians que nem de longe transpirava tranquilidade – o time foi eliminado precocemente do estadual e não teve a chance de conquistar a Copa do Brasil, ambos naquele ano -, do outro, um Palmeiras que precisaria dar a vida em campo até o último segundo para vencer o arquirrival que era mais qualificado naquele momento.

As duas equipes precisavam vencer. Se o placar da partida de ida não foi suficiente para amenizar a situação corintiana, que não era das melhores, imagine como estava o clima do lado verde e branco.

Quando o árbitro Edilson Pereira de Carvalho deu início ao jogo, certamente os mais de 45 mil torcedores nem imaginavam o que estaria por vir. 

Como o privilégio do empate estava do lado branco e preto, os palmeirenses não tinham outra opção a não ser tentar a vida no contra-ataque e foi justamente isso que fizeram. A insistência resultou no gol de Euller, o Filho do Vento, aos 34 minutos do primeiro tempo, de um jeito, como já bem dizia Renato Russo, “quase sem querer”. Júnior fez um cruzamento e após Adílson falhar, a bola se apresentou nos pés do camisa 7 palmeirense, que estava parado atrás do adversário e só empurrou para o fundos da redes.

A torcida mal havia recuperado o fôlego da comemoração, quando, poucos minutos depois, Marcelinho Carioca cobrou um escanteio certeiro, na cabeça de Luizão, e deixou o placar igual. As equipes foram para o intervalo sob os gritos da arquibancada incendiada, que bem lembrava sobre a vantagem do empate. 

A volta do vestiário não poderia ter sido calma, dada a proporção daquele jogo. Logo aos sete minutos de bola rolando, Luizão recebeu um cruzamento de Edílson e levou a torcida corintiana à loucura, foi o segundo gol dele, o que complicou ainda mais a situação do Palmeiras.

Mas o que poderia ser o fim das chances alviverdes se tornou, na verdade, motivação. A equipe de Felipão tanto fez que buscou o empate e ele veio, depois de Euller servir Alex com um belo passe e, em seguida, o camisa 10 estufar as redes. 

Àquela altura, não havia mais sanidade mental em nenhum indivíduo dentro do Morumbi. O Corinthians ainda tinha a vantagem do empate, mas o Palmeiras seguia no ataque, até que o relógio se aproximou da marca dos 26 minutos da segunda etapa. 

A arrancada, a respiração ofegante, a cabeçada e, por fim, mais um gol. Galeano, que não é aquele escritor sobre o qual eu já me atrevi a escrever, não só colocou o Palmeiras à frente no placar, como deu ao seu time e a sua torcida, a chance de acreditar na magia do futebol. Esse foi o Galeano Obstinado.

Durante os 90 minutos, as arquibancadas assistiram às jogadas trabalhadas, a um show de desempenho tático e, principalmente, a uma lição de perseverança, garra e coragem. O que ninguém esperava, ou pelo menos não a maioria, aconteceu. O time comandado por Scolari havia igualado o placar do jogo de ida e conseguiu fazer com que a partida fosse decidida nos pênaltis.  

E como todo bom espetáculo, o gran finale foi ainda mais estonteante que toda a beleza do tempo normal. 

Veja aqui os melhores momentos daquela inesquecível partida.

A eternidade

A torcida ainda estava incrédula diante do que estava acontecendo. Em campo, Marcelo Ramos, Roque Júnior, Alex, Asprilla e Júnior converteram para o Palmeiras, enquanto Ricardinho, Fábio Luciano, Edu e Índio foram certeiros do lado corinthiano.

O pênalti decisivo foi batido pelo Corinthians, precisamente por Marcelinho Carioca. Eu não posso nem imaginar o que passou pela cabeça dele enquanto se dirigia até a bola, mas arrisco dizer que ninguém, naquele Morumbi, tinha ideia de que a distância entre a bola e o goleiro palmeirense era o caminho até o infinito.

Marcelinho Carioca era o ídolo máximo daquela geração corintiana. O camisa 7, conhecido como Pé de Anjo, era extremamente identificado com a torcida alvinegra, carrasco dos rivais e o símbolo de um Corinthians vencedor nos anos 1990. Quando Marcelinho se apresentou para a cobrança, nas palavras de José Silvério, na icônica narração da partida pela Rádio Bandeirantes, esse era o sentimento do palmeirense:

“…para o palmeirense se o Marcelinho perder, o gosto será especial, porque é do Marcelinho que a torcida queria arrancar o sangue…”

Quando a cobrança foi autorizada, a torcida calou. Marcelinho bateu forte, mas São Marcos espalmou a bola com a elegância de quem levava seu time à final daquela Libertadores.

Renato Russo também cantou que “o infinito é realmente um dos deuses mais lindos” e naquele 06 de junho, os segundos que duraram entre o chute e a defesa certamente marcaram a linha temporal do universo. 

A festa palmeirense inundou São Paulo, mas com data para acabar em breve, quando o time de Felipão perderia a final diante do Boca Juniors. Mas há 22 anos, tudo o que interessava era a história do Dérbi Eterno.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lúcia Oliveira

Amante da comunicação, da escrita, da fotografia, do futebol, da literatura, do jornalismo, entre outras coisas. Escrevo para eternizar e vivo para escrever.

Como citar

OLIVEIRA, Lúcia. O dérbi eterno. Ludopédio, São Paulo, v. 156, n. 6, 2022.
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