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O dérbi mais pobre do mundo – Nouâdhibou, Mauritânia

Tiago Carrasco, João Henriques, João Fontes 21 de fevereiro de 2010
jogo de futebol em nouadhibou  Sexta  feira 22 de Janeiro  2010 (Fotografia/Joao Henriques)
Jogo de futebol em Nouadhibou. Foto: João Henriques.

Imagine-se o dérbi de Milão, em Itália, entre o AC Milan e o Inter. As bancadas do estádio de San Siro a rebentarem pelas costuras, com 70 mil adeptos sentados em cadeiras confortáveis, protegidos da chuva e do sol intenso. Os tiffosi organizados cantam e acendem tochas, há placares electrónicos de alta definição e câmaras de vídeo de última geração. Lá em baixo, numa relva lisa e bem tratada, desfilam futebolistas milionários cotados entre os melhores do Mundo, com a pele suave e impecavelmente penteados. No fim do jogo, lavam-se em balneários climatizados e com ginásio e dirigem-se para hotéis espampanantes (espalhafatosos), onde podem amolecer em água de jacuzzi. Os adeptos, por sua vez, apanham o metro ou vão de carro para casa, para ver no plasma da sala o resumo do jogo. É assim um grande dérbi num grande país europeu.

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Banco de suplentes do SNIM após o final do jogo com o F.C. Nouadhibou. Foto: João Henriques.

Agora, imagine-se o dérbi de Nouâdhibou, a segunda maior cidade da Mauritânia, entre o actual campeão nacional, o SNIM (Societé National Industrielle et Minière), de equipamento amarelo, e o vencedor da última Taça da Mauritânia, o FC Nouâhdibou, de laranja. Um campo sem bancadas plantado entre as dunas imaculadas do Sahara. A duna poente é como uma bancada de sócios. Uma fila de adeptos mouros e negros, vestidos de boubou azul, a roupa tradicional da Mauritânia, assiste ao jogo de pé e em silêncio, ocultando as suas emoções por baixo dos turbantes brancos que lhes tapam todo o couro cabeludo, o queixo e a boca. Só nos olhos e no nariz se pode ler uma expectativa de golo ou a fúria contra uma decisão de arbitragem. A duna oposta é uma espécie de central e é a mais concorrida, porque tem um muro. Num estádio no deserto, um muro faz toda a diferença. Além de dar lugar a centenas de espectadores, faz sombra, o bem mais precioso no Sahara. No meio dessa sombra, está a claque do SNIM, a jogar em casa, cujo elemento mais velho não deve ter mais de 10 anos. Exibem uma faixa amarela rasgada com o nome da equipa e não param de gritar. Nos poucos lances de perigo, mandam-se duna abaixo, entrando mesmo dentro do terreno de jogo. Na zona do meio-campo estão aqueles que calculo serem os presidentes dos clubes, distintos pelas suas roupas mais ornamentadas e postura respeitável no meio de miúdos (crianças) esfarrapados. Em vez de sentarem o rabo nas dunas, têm uma cadeira branca de plástico, igual às que se juntam a um banco sueco para fazer os dois bancos de suplentes. No topo norte, logo atrás da baliza, uns dez carros estacionados com pessoas no seu interior, assistindo à partida como a um filme num drive-in. Na duna oposta, o extremo sul, há canas secas e atrás delas a praia, onde pastam dromedários e repousam dezenas de barcos encalhados no Oceano Atlântico. No campo, a bola saltita em areia solta do deserto, ou nem chega a saltitar, porque o terreno é tão mau que os jogadores preferem chutar para o ar como no futebol de praia. As quatro linhas são pretas e foram calcadas na areia, não sei se com uma máquina ou com várias passagens de um calcanhar humano, tal como se delimitam os campos nos jogos realizados por amigos na praia. As balizas estão tortas e tão ferrugentas que já nem se vê a tinta branca nos postes. O jogo, o primeiro do campeonato, no Campo Cansado, é pachorrento e aborrecido, e à entrada para os descontos o resultado permanece, teimoso: 0-0.

Derby  de nouadhibou  entre o FC Nouadhibou e o Snim na localidade de Cansado Sexta  feira 22 de Janeiro  2010 (Fotografia/Joao Henriques)
Torcida. Foto: João Henriques.
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Foto: João Henriques.
Derby  de nouadhibou  entre o FC Nouadhibou e o Snim na localidade de Cansado Sexta  feira 22 de Janeiro  2010 (Fotografia/Joao Henriques)
Derby de Nouadhibou entre o FC Nouadhibou e o Snim na localidade de Cansado. Foto: João Henriques.

Este é um dos dérbis mais pobres do Mundo. A República Islâmica da Mauritânia, país do tamanho da França e de Espanha juntas, mas com menos de metade da população de Portugal, é o terceiro país africano pior classificado nos rankings da FIFA, ocupando o 168º lugar, somente à frente da Guiné-Bissau e do Djibouti. Aqui o futebol está por todo o lado nas ruas mas não nos estádios. Até porque não há muitos. As 9 equipas da capital Nouakchoutt, as duas de Nouâdhibou e a de Zerouat que constituem a primeira liga só têm dois estádios relvados (gramados), a que se vai somar o Municipal de Nouâdhibou que dentro de 15 dias terá um tapete sintético, deixando o Campo Cansado, no deserto, pronto para a reforma. Abou Sy, 16 anos, vive no bairro ao lado do estádio municipal e acaba de ser chamado à equipa principal do FC Nouâdhibou. Vive com os pais, dez irmãos e seus maridos e esposas e mais uma mão cheias de familiares. Serão, seguramente, mais de 20. O bairro é muito pobre, tal como toda a cidade, com lixo acumulado e cabras a passear livremente, como cães, ao lado de crianças que jogam futebol. “Há três coisas que amo: o futebol, o Corão e a música, especialmente o hip-hop”, diz Abou, entre uma peça de louça com passagens do Corão inscritas e um computador com uma foto sua em campo como papel de parede, na sala de visitas. Na sala ao lado, usada pela família para rezar e para os serões em frente à televisão, um papel quadriculado está colado à parede com o nome Fabio escrito a caneta cor de rosa. “Sou líbero e o meu ídolo é Fabio Cannavaro, o defesa italiano”, diz Abou, alto e magro, com um fino buço sobre o lábio e vestido com uma camisola (camisa de time) de alças do Olympique de Marselha. Na cozinha, pequena e apinhada de utensílios, a sua irmã prepara um prato familiar de arroz com peixe com um bebé ao colo. O pai de Abou é marabú, um líder espiritual e religioso, e tal como a esmagadora maioria das crianças mauritanas, frequenta a escola corânica. Está dividido entre as mesquitas e as balizas. “Ele é um dos melhores jogadores do país e já representou a selecção nacional de juvenis num torneio em Espanha. Na Europa, podia chegar longe mas na Mauritânia ninguém vive do futebol”, diz-me Abdul Karim Djaló, 22 anos, médio ofensivo do FC Nouâdhibou. Karim joga num dos melhores clubes do país mas tem um salário de 30.000 ouguiyas – 60 euros mensais. “No fim da primeira semana, já não tenho dinheiro”, diz. “Por isso, também tenho de ter outros trabalhos temporários e de treinar os escalões jovens de outros clubes e associações”.

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Abou posa para a fotografia em sua casa em Nouadhibou. Foto: João Henriques.

Abou é Pular, uma das etnias negras da Mauritânia, maioritárias no país mas dominadas pelos mouros Hassaniya, de pele mais branca. Durante anos, os soninké, os fula, wolof e os hassaniya negros foram perseguidos, assassinados e deportados por sucessivos governos Hassaniya de origem árabe. O flagelo abrangeu toda a sociedade excepto o futebol. “No futebol, nunca houve divisões e problemas” diz Afflouat Ould Raghiem, secretário-geral da associação regional de futebol de Nouâdhibou. Os mauritanos são parcos em palavras no que toca a política e à hierarquia social. Apesar das tentativas consecutivas para abolir a escravatura no país, calcula-se que 20% da população ainda seja escrava e nem mesmo as promessas de um regime um pouco mais liberal proliferadas pelo General Aziz após o golpe de estado de 2008, eliminou do ar a atmosfera de medo que se vive. Mas constatamos que, de facto, o futebol não mostra castas. Num sábado de manhã, acompanhamos Abou num jogo do torneio Mouhammed Abbas, para colégios secundários islâmicos, que decorre no Campo Cansado. Mouros e negros confraternizam nas instalações da escola do bairro de Zem-Zem, partilhando baguetes com manteiga e chá enquanto se equipam para a partida. Na sala de aula, o treinador Eli dá a táctica à equipa, escrevendo a giz o nome dos atletas no quadro de ardósia. Vão jogar em 3-3-4 e Abou é o único central da equipa. Metem-se amontoados na parte de trás de uma carrinha branca, cantando alegremente durante os sete quilómetros até ao campo.

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Abou equipa-se momentos antes de receber as instruções do treinador. Foto: João Henriques.
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Treinador do Zemzem dá as instruções finais antes da partida para Cansado. Foto: João Henriques.
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Viagem da equipa do Zem-Zem para Cansado. Foto: João Henriques.
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Abou à chegada ao campo de Cansado. Foto: João Henriques.

Menos de 24 horas antes, ninguém gritava no complexo desportivo do deserto. Dunas mudas. SNIM 0 – FC Nouâdhibou 0. Aos 89 minutos, uma boa jogada do lado direito resulta num cruzamento perfeito, a que o avançado do SNIM corresponde com um excelente cabeceamento. A bola dirige-se para as malhas de pesca da baliza. Os miúdos da claques rebolam pela duna, levanta-se areia, caem cadeiras de plástico e turbantes. A tarja rota levanta voo, assustam-se os camelos, os espectadores do drive-in preparam-se para saltar do carro. Caprichosamente, a bola bate na barra, vai ao chão, acerta num monte de areia do terreno irregular e não entra na baliza. O treinador e os jogadores estão desesperados. O árbitro apita para o final da partida. A multidão invade o campo, não para correr atrás dos jogadores, mas para jogar a bola. Há pessoas a tentar encontrar a marca da bola na areia depois de ter batido na barra, outros falam no círculo de meio-campo e uma criança escreve com o dedo, dentro da grande área, o número 20 – a quantidade de ouguiyas que quer receber de esmola. Os jogadores laranja do Nouâdhibou, fazem estiramentos (alongamentos) antes de recolherem ao autocarro da equipa, estacionado atrás da baliza. Têm areia na cara e no cabelo, o deserto espalhado pelo corpo. Os atletas do SNIM vão para casa a pé, frustrados com o lace bizarro, e desaparecem equipados por trás das dunas. Também os adeptos regressam, fazendo o resumo do jogo no plasma da sua memória, vendo mil vezes a repetição do cabeceamento azarado e discutindo a jogada com os rivais. Assim é um dérbi na Mauritânia; pobre, mas com tudo a que um dérbi tem direito.

Derby  de nouadhibou  entre o FC Nouadhibou e o Snim na localidade de Cansado Sexta  feira 22 de Janeiro  2010 (Fotografia/Joao Henriques)
Derby de Nouadhibou entre o FC Nouadhibou e o Snim na localidade de Cansado. Foto: João Henriques.
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O campo. Foto: João Henriques.

Uma sociedade dividida em castas

Nas ruas, é difícil perceber a enraízada divisão da sociedade mauritana. Mas, segundo relatórios das Nações Unidas, a escravatura e os trabalhos forçados continuam a existir no país, vitimando 600 mil pessoas, 20% da população – a maior taxa mundial. No topo da pirâmide, estão os mouros Hassaniya, descendentes dos árabes. Logo abaixo, as suas mulheres, seguidas da população mestiça – mistura entre hassaniya e outra etnia africana. Quase na base, aparecem os africanos negros, das etnias soninké, fula e wolof, originárias do Senegal e do Mali. Por fim, os negros escravos, dependentes dos seus senhores Hassanyia. Escravos e dominantes vivem, muitas vezes, na mesma casa e é comum que uma criança escrava comece a servir o seu amo a partir dos seis anos. Apesar das várias leis que tentaram abolir a escravatura, a pirâmide social está interiorizada pelos mauritanos há séculos. “Os escravos pensam que se passarem a ser livres não irão para o Paraíso”, disse Boubacar Messaoud, da SOS Slaves, numa entrevista à BBC. Joaquim Henrique, um português que vive há dez anos em Niuâdhibou, também não tem dúvidas: “Os negros são escravos dos brancos”, diz. “O primeiro homem a ter um frigorífico grande para congelar peixe na cidade foi um negro, há 20 anos. Só há uns tempos é que pôde utilizá-lo porque os bancos fecharam-lhe as portas devido à sua cor de pele”.

Nouâdhibou – Peixe, ferro e futebol

Nouâdhibou é a capital económica da economicamente débil Mauritânia. Mas nem por isso é cosmopolita. Muito pelo contrário. Com 150 mil pessoas, vive essencialmente da sua actividade piscatória e da rota do ferro no país. A costa marítima é uma das mais ricas do mundo em fauna marinha e o porto recebe pescadores de todos os cantos. A sete quilómetros de Nouâdhibou, a vila mineira de Cansado vê chegar nos vagões do mais longo comboio do Mundo o ferro extraído em Zouerat, no interior do país. O SNIM, um dos clubes de Nouâdhibou na primeira divisão, actual campeão nacional, pertence à empresa mineira do Estado, responsável por 40% da riqueza do país. O FC Nouâdhibou, detentor de dois campeonatos e de duas taças, foi criado somente em 1999 e pretende revolucionar o futebol mauritano. A equipa histórica do futebol local é o KSAR, clube com mais títulos.

A coragem de Madamme Traore

Nabou Traore é uma mulher mauritana. Isso normalmente invalida qualquer tipo de ascensão social. Mas Traore estudou e especializou-se em gestão. Hoje, com 48 anos, dirige uma ONG e um clube de futebol da segunda divisão mauritana, que também tem secções de basquetebol e de râguebi (rúgbi) – o LASA (Luta Anti-SIDA e para a Alfabetização). “Percebi que o futebol era o melhor modo de alertar os jovens para problemas sociais”, diz Traore. Pela sua coragem, já foi convocada pela FIFA para seminários internacionais e foi uma das pessoas que recebeu a Taça do Campeonato do Mundo aquando da sua passagem por Nouakchoutt, capital do país.

*Tiago Carrasco, João Henriques e João Fontes estão rumo à Àfrica do Sul no projeto Road to World Cup. Foi mantida a grafia original, de português de Portugal. Algumas palavras foram acrescentadas, entre parênteses e em itálico, para facilitar a compreensão de alguns termos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Tiago Carrasco

Tiago Carrasco é jornalista e tem 34 anos. Publicou dois livros, centenas de reportagens nos mais prestigiados órgãos de comunicação social portugueses e é autor de dois documentários. Em 2013, ganhou o Prémio Gazeta Multimédia, da Casa de Imprensa, com o projecto "Estrada da Revolução". Com uma carreira iniciada em 2014, tem assinatura em trabalhos exibidos pela TVI e RTP, e impressos pelo Expresso, Sábado, Sol, Record, Notícias Magazine, Maxim e Diário Económico, para além dos alemães Die Welt e FAZ. Em 2010, desceu o continente africano de jipe num projecto que daria origem ao livro "Até lá Abaixo" (na terceira edição) e a um documentário com o mesmo nome. Em 2012, fez a ligação terrestre entre Istambul e Tunes durante a Primavera Árabe, que originou o livro "Estrada da Revolução" e o documentário homónimo. Foi responsável pelos conteúdos do documentário "Brigada Vermelha", sobre a luta de um grupo de adolescentes indianas pelos seus direitos enquanto mulheres. Cobriu importantes eventos internacionais como a guerra civil na Síria, o pós-revolução no Egipto, Líbia e Tunísia, o Mundial de futebol em 2010, a anexação da Crimeia por parte da Rússia, o referendo pela independência da Escócia, o movimento de independência da Catalunha, a crise de refugiados na Europa e a crise económica na Grécia e em Portugal. Muito interessado em desporto, esteve presente no Mundial'2010 e no Euro'2016 e já entrevistou grandes figuras do futebol: Eusébio, Madjer, Paulo Futre, Rivaldo, Deco, Roger Milla, Abedi Pelé, Basile Boli, Ricardo, Abel Xavier, Scolari, Chapuisat, Oscar Cardozo.

Como citar

CARRASCO, Tiago; HENRIQUES, João; FONTES, João. O dérbi mais pobre do mundo – Nouâdhibou, Mauritânia. Ludopédio, São Paulo, v. 08, n. 6, 2010.
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