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O desaparecimento dos negros argentinos e seus reflexos no futebol do país

Fernanda Lima Lemos 11 de maio de 2020
Pelé argentino? Designer coloca ídolos com camisa do rival ...
Ilustração feita pelo designer Marco Aurélio Valentim.

Essa imagem causa estranhamento em muita gente. Alguns dirão que é pelo Pelé, maior jogador brasileiro, estar vestindo o uniforme da arquirrival Argentina, outros não saberão responder. A grande questão da imagem é um jogador negro com a camisa da Argentina. Pense em quantos você já viu. Há algumas razões para o estranhamento e elas podem ser entendidas conhecendo um pouco da história do país vizinho.

Segundo estudos, a população negra da Argentina é de 6%. Esse dado provoca algumas indagações, visto que o país foi explorado pela Espanha e chegou a ter cerca de 50% da população composta por negros escravizados. É bem verdade que os exploradores europeus preferiam escravizar os índios e só utilizavam negros quando a primeira opção era dificultada por algum motivo. Mesmo assim, a compra de africanos escravizados nos portos de Buenos Aires foi enorme. Então, o que aconteceu com os negros argentinos?

Após a abolição oficial da escravidão, as pessoas escravizadas foram abandonadas à própria sorte. Com péssimas condições de moradia, alimentação, higiene e saúde, elas foram os principais alvos das epidemias de cólera e febre amarela que assolaram o país nas décadas de 1860 e 1870. Aqueles que não morreram doentes, morreram nas guerras da Independência, na Guerra contra o Paraguai e em outros confrontos. Os homens negros do país eram enviados para as lutas nas linhas de frente, mesmo sem receber treinamentos e instruções. Isso explica os motivos da facilidade com que morriam enfrentando tropas adversárias bem preparadas.

Mortes por doenças e nas guerras são um ponto, mas há outro fato importante para entender a questão: mulheres negras não engravidavam de homens negros. Os traficantes de escravos se preocupavam e se empenhavam em barrar as relações sexuais entre as pessoas escravizadas, porque além do preconceito, argumentavam que a gravidez prejudicaria o desempenho no trabalho e que a mãe poderia morrer no parto, passando a ser uma a menos nos afazeres.

Não se pode esquecer que algumas mulheres de pele clara eram estupradas por homens brancos. O pensamento dos homens que as estupravam era que, caso engravidassem, as crianças seriam “menos negras”, logo, dariam menos trabalho. Aliado a baixa taxa de nascimentos de crianças pretas e a pele clara dos que nasciam frutos dos estupros, a quantidade de pessoas negras diminuiu drasticamente com o passar dos séculos e o que se percebeu foi o embranquecimento da população argentina.

Isso, claro, se reflete no futebol. Um exemplo do embranquecimento citado pode ser visto nos Da Graca, uma família de jogadores argentinos:

Por esses motivos é tão difícil que jogadores negros joguem pela seleção e pelos times argentinos; quando se vê algum, é comum que possua descendência indígena ou que seja de outro país.

Argentina | CONMEBOL Copa América 2019
Seleção da Argentina na Copa América. Foto: CA/2019.

A maioria dos atletas argentinos negros que tiveram destaque no futebol do seu próprio país atuaram no século passado. Aqui uma lista dos mais conhecidos e dos clubes onde jogaram:

José Laguna – Huracán (década de 1910)

Miguel Dellavalle – Belgrano (década de 1920)

Alejandro de los Santos – San Lorenzo e Huracán (1921/1931)

Rinaldo Fioramonte Martino – San Lorenzo (década de 1940)

Alberto Arcángel Britos Ramos – Independiente (1952/1959)

José Manuel Ramos Delgado – Lanús, Banfield (década de 1960)

Héctor Rodolfo Baley – Colón de Santa Fe, Talleres e Huracán (1975/1982)

Ernesto Picot – San Lorenzo (1947/1954)

Julio Luis Benavídez – Boca Juniors (década de 1930)

Jorge Trezeguet – Estudiantes de Buenos Aires, Almagro, Deportivo Español e Sportivo Italiano (década de 1970)

Miguel Ángel Ludueña – Belgrano, Talleres, Racing e Independiente (décadas de 1980 e 1990).


Bibliografia

BARREIRO, Ramiro. Onde estão os negros da Argentina?

BRANDÃO, Caio. Afro-argentinos no futebol.

GELEDÉS. A história dos negros argentinos: por que eles quase “sumiram” do mapa por lá?

BBC. Por que a escravidão foi praticamente apagada da história de Chile e Argentina: ‘Aqui não há negros’.  

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fernanda Lima Lemos

Baiana, psicóloga formada pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) no ano de 2019, apaixonada pelas histórias futebolísticas que acontecem fora das quatro linhas, principalmente as que têm relação com política, cultura e sociedade. Por fim, mas não menos importante, do time que acredita que "já é tempo de atribuir-se ao craque uma alma" (Nelson Rodrigues).

Como citar

LEMOS, Fernanda Lima. O desaparecimento dos negros argentinos e seus reflexos no futebol do país. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 24, 2020.
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