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O Dia da Papoula na Premier League e a Memória de Conflitos (I): Derry

Nos jogos realizados pela Premier League entre agosto e novembro podemos ver um desenho que salta aos olhos nas camisas de uniforme dos clubes da principal liga de futebol da Inglaterra. Esse desenho é a flor de Papoula, símbolo usado em homenagem aos soldados que morreram lutando pela Inglaterra no decorrer dos séculos, destacando-se os das duas grandes guerras do século XX. 

As homenagens começam em outubro, fazendo referência ao início da Primeira Guerra Mundial em 5 de outubro de 1914, e se encerram em 11 de novembro, quando é comemorado o “Remembrance Day” (Dia da Lembrança) ou, Poppy Day” (Dia da Papoula). Nessa data, a rainha Elizabeth II cumpre o tradicional ato de ir até o memorial da Primeira Guerra e enfeitá-lo com uma coroa de papoulas. Os broches da flor costumam ser vendidos para arrecadar fundos que serão encaminhados para fundações que amparam soldados que carregam danos causados pelos conflitos.         

Porém, não são todos os atletas que se sentem confortáveis com esse período de homenagens, como é o caso de dois atletas que recusaram-se a usar o símbolo. A atitude desses dois jogadores foi uma forma de protesto pela participação da Inglaterra em dois conflitos que marcaram a história de seus países: a intervenção nos “The Troubles” na Irlanda do Norte e a intervenção da OTAN contra a Iugoslávia na Guerra do Kosovo (1998/99). 

Um desses atletas foi James McClean, nascido na cidade norte-irlandesa de Derry. Na temporada 2016/17, quando atuava pelo West Bromwich, criou-se uma polêmica quando, ao contrário de seus companheiros de equipe, ele não trazia em seu uniforme a flor. Em entrevista ao site britânico Express, McClean disse:

Se a papoula fosse apenas sobre as vítimas da Primeira e Segunda Guerra Mundial, eu a usaria sem problemas. Eu a usaria todos os dias do ano se fosse esse o caso, mas não é – ela representa todos os conflitos em que a Grã-Bretanha esteve envolvida. Por causa da história de onde venho, em Derry, não posso usar algo que represente isso”. (Tradução Nossa).

Segundo o Express, o jogador recebeu ameaças de morte pela internet e gritos vindos de torcedores que diziam: “Foda-se o I.R.A”.

James McClean sem o símbolo em sua camisa.
James McClean entrando em campo sem a “poppy” na camisa. Foto: Reprodução Twitter.

A história citada por McClean tem início no dia 23 de dezembro de 1920, quando os condados de Antrim, Armagh, Down, Londonderry (Derry), Fermanagh e Tyrone, se uniram para formar a Irlanda do Norte. Desde sua criação, até 1972, o estado norte-irlandes foi governado por um único partido, os Unionistas do Ulster, apoiado exclusivamente pelos protestantes que formavam quase dois terços do país. Um dos grandes pilares do partido era a Orange Order que, segundo Miguel Ramos (2013, p.38) foi “estabelecida em 1795 por lavradores e tecelões no Condado de Armagh, a Ordem Laranja tornou-se uma força poderosa dentro do Protestantismo irlandês […]”, com o objetivo de defender a união da Irlanda do Norte à Coroa Britânica. Nesse contexto, a cidade de Derry foi importante, como o berço da NICRA (Northern Ireland Civil Rights Association) e pelos protestos de 5 de outubro de 1968 que chamaram atenção da comunidade internacional para o que se passava naquele país. No ano seguinte, as tensões explodiram após um confronto entre a Royal Ulster Constabulary (RUC) e a população católica de Derry, sendo a cidade o epicentro de violentos conflitos que se espalharam por todo o país.

Com o estabelecimento da chamada Free Derry (Derry Livre), áreas católicas em que a RUC ficou impedida de entrar pelos moradores, novos embates entre a população local e as forças inglesas de repressão tiveram lugar. O governo de Londres enviou para a Irlanda do Norte o exército britânico para restabelecer a ordem. De acordo com Miguel Ramos (2013, p.45), “em agosto de 1971, tropas britânicas foram enviadas para muitas áreas católicas  para implementar a política que se tornou um desastre. Muitos inocentes e poucos líderes actuais foram presos”. No ano seguinte, em 1972, foi na cidade de nascimento de McClean, que teve lugar o mais marcante acontecimento ocorrido durante o “The Troubles” e que estará para sempre na memória de toda sociedade irlandesa: o famoso Bloody Sunday. O massacre perpetrado pelas forças repressoras enviadas pelo governo de Londres a Derry, abriram fogo contra uma manifestação a favor dos direitos civis, tirando a vida de 14 manifestantes.

Representar a seriedade dos The Troubles na cidade de Derry.
“Você está entrando em Derry Livre” Foto: Reprodução Twitter

O atleta que, apesar de nascido na Irlanda do Norte, defende a seleção da República da Irlanda, ao negar a flor de papoula em seu uniforme, traz de volta a memória dos conflitos em sua cidade natal, e como versa a teoria sobre memória e identidade coletiva do sociólogo Michael Pollak (1992), as memórias traumáticas podem ser uma grande formadora de identidades. O fato do futebolista atuar pela seleção republicana e não a de seu país de nascimento, reforça essa ideia.   

 

Referências

PARFITT, Tom. Outrage as football star James McClean REFUSES to wear poppy on his shirt. Express. 2016. Acesso: 08 de Novembro de 2020. 

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992.

RAMOS, Miguel Gomes. O Conflito Anglo-Irlandês. Aspectos políticos e religiosos. 2013. Dissertação de Mestrado. Universidade de Évora.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Matheus Henrique Silva de Rezende

Graduando em História pela PUC Minas; co-coordenador do Mediaevalis - Grupo de Estudos sobre o medievo, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa Memória FC e Cruzeirense!

Luiz Marcelo Viegas

Graduando em História pela PUC-MG; cruzeirense, integrante do grupo de estudos e pesquisas Memória FC e co-coordenador do Mediaevalis - Grupo de Estudos sobre o Medievo.

Como citar

REZENDE, Matheus Henrique Silva de; VIEGAS, Luiz Marcelo. O Dia da Papoula na Premier League e a Memória de Conflitos (I): Derry. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 32, 2020.
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