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O efeito Leicester e a potência do contra-ataque: uma Eurocopa para a história

No futebol, há sempre duas opções muito claras a escolher: ou você joga com a bola ou você joga sem a bola. Parece óbvio, não é? Mas é justamente a partir de uma decisão estratégica como essa que nascem as grandes histórias, os duelos lendários, as surpresas inimagináveis, os títulos improváveis, os tabus quebrados e as súbitas transformações de heróis em vilões, de vilões em heróis na história desse esporte.

A temporada 2015/2016 nos reservou todos esses ingredientes e mais um pouco com a campanha histórica do Leicester City – de candidato a virtual rebaixado a campeão inglês –, o vice-campeonato do Rostov na Rússia – por pouco não destronou o tradicional CSKA Moscou –, a inédita qualificação do modesto Arouca da liga portuguesa para uma competição continental, e as classificações emocionantes de seleções até então inexpressivas, como Albânia, Irlanda do Norte, País de Gales e Islândia, para o segundo torneio mais relevante entre países do mundo, a Eurocopa.

Seriam todas essas campanhas um mero fruto do acaso? Uma rara temporada entre dezenas de outras que mostrou ser somente um ponto fora da curva? Ou será possível traçar uma razão comum para o sucesso de todas elas? Seria, então, uma certa tendência incipiente que, por alguma conjunção de fatores, se perpetuará nos próximos anos?

O lateral-direito Phillip Lahm, capitão da seleção alemã no título mundial de 2014 e, há anos, a principal referência tática do Bayern de Munique, em depoimento concedido ao jornalista espanhol Martí Perernau, autor da biografia, Guardiola confidencial, sobre Josep Guardiola, um dos técnicos mais vitoriosos da história recente do esporte, explicou que há dois modos muito distintos de jogar futebol: um com a bola e um outro sem a bola. “Muitos adversários jogam muito fechados contra o Bayern e, de repente, armam um contra-ataque veloz. Não querem ficar muito com a bola, preferem ser defensivos. Acho que é uma diferença entre o futebol espanhol e o alemão, mas é um processo que um ensina ao outro”.

MUNICH, GERMANY - AUGUST 05:  Press conference after the Audi Cup match between FC Bayern Muenchen and Real Madrid at Allianz Arena on August 5, 2015 in Munich, Germany.  (Photo by Lennart Preiss/Getty Images for Audi)
Guardiola, então técnico do Bayern de Munique, concede entrevista em 2015. Foto: Lennart Preiss / Getty Images for Audi.

Essa foi, inclusive, a tônica entre a rivalidade de Guardiola e Jurgen Klopp, então técnico do Borussia Dortmund, o rival mais competitivo do Bayern nos anos em que o espanhol esteve à frente da equipe bávara, entre 2013 e 2016. O primeiro optava por praticar um futebol ofensivo, buscando o tempo todo o gol através da intensidade na troca de posições, passes rápidos no meio de campo e uma marcação alta e agressiva com zagueiros e laterais técnicos, visando uma saída de bola refinada. Um estilo de jogo que, portanto, privilegia a bola nos pés para o controle de jogo.

Já Klopp, no Dortmund, e outros técnicos de ponta, como Carlos Ancelotti, Jose Mourinho e, posteriormente, Diego Simeone com seu emblemático grupo de colchoneros, precisaram, nas últimas temporadas, desenvolver um antídoto para frear a filosofia de jogo vencedora e hegemônica de Guardiola, e serem capazes de baterem de frente nas disputas de títulos nacionais e continentais. A estratégia encontrada por eles, como bem disse Lahm, é o jogo sem a bola. Eles passaram a adotar um estilo de contra-ataque, com jogadores que abdicam da posse de bola para se posicionarem de maneira ordenada e estratégica em campo, preenchendo todos os espaços possíveis, com auxílio de uma linha de marcação defensiva profunda, esperando o erro do adversário no ataque para ser letal na resposta com passes longos e a velocidade nas extremidades do campo.

Confira o texto “O ‘futebol de prosa’ e a vitória sobre a poesia dos pés”.

A medida, mesmo que não tenha evitado por completo as conquistas de Guardiola nas temporadas conseguintes, proporcionou um reequilíbrio técnico e tático no mundo do futebol. O antídoto se mostrou eficiente, mas, acima de tudo, tem se perpetuado competitivamente. Além do recente exemplo de sucesso do técnico Claudio Ranieri com o Leicester City, estamos vendo o fenômeno acontecer novamente nesta atual edição da Eurocopa. O futebol de contra-ataque tem neutralizado as ações das principais seleções da competição, tornando os jogos imprevisíveis em resultados.

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Jogadores e Comissão Técnica do Leicester City celebram a conquista da Premier League de 2015-16. Foto: Peter Woodentop / CC BY-SA 2.0.

Mesmo com limitações técnicas, seleções menores como Albânia, Hungria, Irlanda do Norte, País de Gales e Islândia têm mostrado uma aplicação tática de alto nível. O velho rótulo de “saco de pancadas” parece perder cada vez mais sentido no atual cenário do futebol – vide também, no cenário sulamericano, as atuações competitivas de Peru e Venezuela na Copa América. Em quatro jogos, seleções como Islândia e Irlanda do Norte, por exemplo, levaram apenas quatro e três gols, respectivamente, até o fim das oitavas de final. Para o poderio técnico de ambas e o que se esperavam delas, os números são surpreendentes.

Inspiradas ou não no modelo de jogo dos especialistas em contra-ataque, como Simeone, Klopp e Ranieri, estas seleções têm optado por formações táticas que buscam preencher os espaços do campo. Pode parecer paradoxal, mas elas são capazes de controlar o jogo mesmo não estando com a bola. A Islândia, que se classificou como segunda colocada de seu grupo – à frente de Portugal de Cristiano Ronaldo – e ainda eliminou a Inglaterra nas oitavas de final, adota o esquema clássico de 4-4-2 com uma linha defensiva rígida, no qual os jogadores priorizam mais a proteção do que o apoio, um meio-campo com forte poder de marcação no centro e meias extremos atentos nas investidas dos laterais adversários, além de dois atacantes na frente para o contra-ataque.

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Comemoração da Islândia. Foto: Youtube (reprodução).

No caso de País de Gales, a preocupação defensiva é ainda maior. Os galeses jogam com três zagueiros e dois alas defensivos e contam com a criatividade de um articulador flutuante em campo, Aaron Ramsey, e a rapidez com poder de decisão do craque do país, Gareth Bale. Nas jogadas de contra-ataque, Bale faz o papel de arranque com Vokes de referência. No segundo tempo, para manter a intensidade nas respostas, o técnico Chris Coleman costuma sacar o centroavante e colocar Robson-Kanu, deslocando, assim, Bale para uma posição mais central. Depois de surpreender na fase de grupos, com vitórias contra Eslováquia (2 a 1) e Rússia (3 a 0), por pouco não saiu invicta – o time perdeu para a Inglaterra, de virada, no último minuto. Na fase mata-mata, a equipe fez história na última quinta-feira (1/7), ao chegar nas semifinais, eliminando a Irlanda do Norte (1 a 0) e, posteriormente, a geração de ouro da Bélgica (3 a 1).

 

Outro país surpreendente foi a Hungria, embora não tanto como os islandeses e galeses. Apesar de ter tido um histórico importante no cenário mundial entres as décadas de 1930 e 1950, chegando a dois vice-campeonatos em Copas do Mundo – o país vivia um ostracismo que já durava muito tempo no esporte. Mesmo sem uma geração talentosa, o time terminou em primeiro lugar em seu grupo de maneira invicta (uma vitória e dois empates), à frente até dos portugueses semifinalistas do torneio. Os húngaros, inclusive, protagonizaram um dos jogos mais eletrizantes desta Euro contra Cristiano Ronaldo e seus companheiros lusitanos. O empate em 3 a 3 foi o placar que garantiu a liderança do grupo.

A Eurocopa vem chegando ao fim. Até a finalização desse texto (01/07), País de Gales e Islândia se mantêm vivas na competição. No caso dos galeses, que representam uma nação de 3 milhões de habitantes, em sua participação de estreia, têm chances reais de chegar à finalíssima. Já a Islândia, não obteve tanta sorte no chaveamento e terá que superar a anfitriã França para chegar entre as quatro melhores. Entretanto, os vikings já chocaram o mundo do futebol, desde as emocionantes performances teatrais após as vitórias até a gana e a paixão que emanam de suas chuteiras, e não se pode duvidar mais da capacidade deles. Independentemente do que aconteça nos próximos dias, o esquema pragmático de contra-ataque fez história mais uma vez na temporada 2015/2016.

É como dizia um certo ex-jogador e treinador “mediano” que já passou por esse esporte. “Jogar futebol é muito simples, mas jogar um futebol simples é a parte mais difícil do jogo”.

Sábias palavras de Johan Cruyff.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Canuto Nogueira da Gama

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG (Teoria da Literatura e Literatura Comparada), Graduado em Bacharelado no curso de Letras da PUC-MG. Graduado em Comunicação Social (Jornalismo) pela PUC-MG.Foi editor de seção da revista FuLiA / UFMG, periódico quadrimestral da Faculdade de Letras da UFMG, e membro do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.Tem ampla experiência na área de jornalismo esportivo. Foi co-fundador e editor-chefe do Observatório do Esporte, portal de notícias premiado em 2º lugar na versão online do programa "O aprendiz" da Rede Record de Televisão, em 2011. Exerceu a função de repórter do Grupo Estadão na Copa do Mundo de 2014 como correspondente em Belo Horizonte-MG. Tem experiência como editor de texto no programa "Globo Esporte", da TV Globo Minas.É autor dos livros de poesia: "Nós Dois: mais cedo que antes, mais tarde que depois" e "Para Não Desistir".

Como citar

GAMA, Gabriel Canuto Nogueira da. O efeito Leicester e a potência do contra-ataque: uma Eurocopa para a história. Ludopédio, São Paulo, v. 85, n. 2, 2016.
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